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— Aldous ficará bem? — questionou Sigmund.
— Sim, só partiu para casa. Como está?
— Ele atou e desatou nós bem rápido, me aturdiu — respondeu. — A senhora me ajuda com as cicatrizes? Talvez um banho ajude.
— Ajudarei, vamos! Se sentir algo, me avise!
Ambos caminharam para fora do grande salão.
— A primeira porta à direita nos corredores é um banheiro. — Ela disse. — A porta ao final dos corredores é um armário. Tem roupas, toalhas, roupas de cama, sandálias, velas, incensos, ataduras, insumos medicinais e estéticos, papéis, canetas-tinteiro, tintas e instrumentos musicais. Deixarei unguentos em seu armário.
— Obrigado, Althea Gyi.
— Aguardarei no grande salão para a lição — disse, deixando-o.
Sigmund banhou-se. No quarto, aplicou os unguentos e ao terminar foi até Althea, que já recebia os sacerdotes e designava tarefas. Ele sentou-se para aguardá-la.
Althea lecionou por uma hora e ao fim, voltou ao trabalho.
— É possível treinar aqui, Althea Gyi?
— Sim. Peça que uma das moças o leve lá fora.
Sigmund foi ao salão principal, onde parou Samina, uma moça com traços similares aos dele, e a cumprimentou.
— Samina Gyi, pode me levar ao local onde treinam? — pediu.
— Claro, lindo. — Samina sorriu, seguindo para fora. — Burma!?
— É de onde vim.
— Da cidade grande ou algum lugar isolado?
— Aakash, bem isolada, eu acho.
— A montanha!? — Ela pasmou, perplexa por nunca ter ouvido falar de ninguém na grande montanha, esquecida pela civilização.
— Sim, tem um monastério e uma vila... ou tinha, pelo menos.
— Nunca imaginaria. Se bem que um lugar tão grande deve ter tido contato com a civilização. É óbvio! — riu. — Lethwei?
— É o que os monges ensinavam.
— Se quiser continuar aprendendo, posso ajudar!
— Tudo bem, nunca vi uma moça lutando.
— As meninas não lutavam de onde vem? Isso é incomum!
— Não treinávamos juntos. Sei que se machucavam muito, é provável que fosse mais intenso com elas, não sei.
Ambos seguiram pela floresta, na direção oposta do local dos funerais. Algumas matilhas passaram, sem sequer olhar a dupla.
— Estes lobos não são agressivos?
— São agressivos com vivos ou mortos. Como não estamos nem vivos, nem mortos, eles nos entendem como parte da espécie. Sempre que vier a floresta, lembre-se de ter um de nós com você.
Samina parou de frente a uma floresta morta que se dividia perfeitamente da viva. Ela sorriu apontando para a natureza morta.
— Este é o local onde treinamos. Treine à vontade, desde que tenha cuidado para não atingir a natureza viva.
— As árvores estão mortas!? — Ele se surpreendeu, indo até uma delas e pondo sua mão. — Nunca vi nada assim! Nossa.
— Nosso toque seca plantas vivas e mata animais pequenos. A natureza se adaptou conosco. Demorou, mas, hoje, nossos pequenos cérberos e as árvores suportam o toque — explicou, acariciando uma árvore viva —, mas vamos ao treinamento, rapazinho. Dê seu melhor!
Samina sorriu, correndo na direção de Sigmund, que defendeu para medir sua força, sendo arrastado e derrubado.
— Vem! — Gargalhou, ajudando-o a levantar. — De novo!
Eles treinaram, sem usar energia, por toda a manhã. Apesar de magra e baixa, Samina era forte e ágil. Foi um embate mais intenso que o habitual e Sigmund gostou. Mesmo com a moça dosando sua força, ela o propôs um desafio, instruindo em meio ao embate.
Ao término, ela sentou.
— Senta! — chamou, batendo no chão — Após o treinamento, sempre verifique se tem ferimentos e os cure, tudo bem!?
Sigmund assentiu e ela tratou os poucos arranhões e outras feridas com sua energia, levemente gélida.
— Sempre optaremos pela prática ao treinar, mas, como pôde perceber, não usamos letalidade e suavizamos o impacto dos golpes para evitar feridas graves. Sei diferir nas escadarias... — Sorriu. — Podemos voltar? Logo é hora da refeição, precisamos de um banho.
— De onde é? Você é muito forte! — elogiou, levantando.
— Sou bengali, sua vizinha. Pode não parecer, mas conheço pouco do lethwei, só tenho inteligência marcial.
— Se com pouco é boa, aprimorando seria difícil pará-la! — riu.
— Sou uma lathial. Não gosto das mãos nuas, prefiro o bastão — cumprimentou, agradecendo pelo elogio —, amanhã eu mostro!
Sigmund banhou-se e foi ao salão de jantar. Tiana e Dieter estavam arrumando a mesa enquanto a moça cantarolava. O menino ficou em silêncio, refletindo sobre o treinamento que Aldous o proporia enquanto todos se juntaram, se cumprimentando.
— Espero que tenham tido uma ótima manhã! — Sorriu Althea. — Estarei desperta nessa sesta, aos que quiserem, recolham-se!
— Ficarei acordado. Estou inspirado! — Sorriu Karrick.
— Não recusarei a folga — brincou Dieter.
***
— Posso acompanhá-la? Não sinto sono — pediu Sigmund.
— Claro. Adorarei a companhia! — assentiu.
Althea levou uma pequena mesa e duas cadeiras para perto da estátua, convidando Sigmund a sentar e servindo canecas de vinho.
— Treinei com Samina Gyi, ela é forte e rápida. Entendi porque não treinávamos com as meninas. A senhora combate também?
— Sim, gosto das adagas porque elas têm quase o tamanho de minha flauta, facilita o transporte e o manuseio.
— O que acha de Aldous Gyi? — Ele sentou, pegando a caneca.
— Aldous é fantástico! Pouco compreendido. Está curioso?
— Treinei mais cedo e lembrei dele, já que ele quer me treinar.
— Aldous faz tudo com muita paixão — sorriu nostálgica. — Ele chegou pouco antes da Grande Guerra. Eu o conheci em seu primeiro mês, Esmond o enviou à minha mestra por estar fora de si. Foi difícil fitar olhos desesperados, sedentos, loucos!
O menino arregalou os olhos, preocupado.
— Coloquei minhas mãos em seu rosto e fitei seus olhos, orando para ele usar meus olhos como farol para voltar. Fiquei ajoelhada por horas. Quando ele voltou, chorei! Ele enxugou meu pranto, pediu perdão e prometeu se esforçar para não me entristecer de novo.
Melancólica, Althea bebeu um gole do vinho para seguir:
— Após isso, nos aproximamos. Sempre instável, ele veio muitas vezes. Quando o primeiro ato da Guerra atingiu seu ápice, o fluxo de almas nas escadarias intensificou e a Loucura levou Algos Esmond.
Respirando fundo para conter a tristeza, ela seguiu:
— Aldous parou de treinar e assumiu a liderança. Não havia outro herdeiro e Algos só aceita desafio entre os seus escolhidos. Foi uma troca difícil, manchada com sangue de irmãos e vivos inocentes.
— Nossa! Que difícil. — disse, tocado pela tristeza de Althea.
— Muito! Aldous foi a julgo muitas vezes, foi punido, às vezes vítima de excessos. Intercedi por ele, sempre que pude, porque sei quem é Aldous e sei quem ele se torna tomado pela Loucura!
— Essa Loucura também me afetará? — preocupou-se Sigmund.
— Sussurros são personificações de aspectos da existência, daemons e outros, manifestados. Daemons serviam antigos deuses, caídos e selados após uma guerra. Divididos entre os vitoriosos, a maioria dos daemons foi entregue a Hades para não impactar na vida.
— Funcionou? — O menino indagou.
— O fim da Titanomaquia impactou na existência, refletindo nos daemons. A adaptação lhes seria abrupta, levando males ao todos. Hades, sábio, selou a consciência dos que lhe foram entregues para diminuir seus confusos impactos na criação e teve êxito!
Althea serviu-se com água e tornou a sentar-se.
— O tempo passou, Macária nasceu e amadureceu como deidade. Hades a presenteou com a responsabilidade sobre alguns, não só por sua bondade e passividade, mas para eles contrabalancearem sua natureza pacífica, impedindo-a de falhar por ingenuidade. Temos registros destas entregas e é impossível falar de todas em um dia.
— Algos é um daemon — refletiu Sigmund.
— Sim. Personifica o sofrimento, a dor física e emocional; é aquela que traz lamentos e lágrimas à criação.
— Aldous descreveu Sussurros como gritos ocos, por quê?
— É como entendemos. O grito oco da essência de um daemon, sua fala abafada, manifestada fisicamente no céu das escadarias. Macária permitiu aos seus servos compartilhar o mesmo lar. Daemons tem natureza forte e, às vezes agressiva; não podem tocar o plano vivo, em nome de seu dever, habitam um sacerdote.
— Sofrerei com alguma Loucura, Althea Gyi? — insistiu Sigmund, preocupado, afinal já se considerava ensandecido.
— Já sofreu e continuará. É sutil! Até aprender, só perceberá quando estiver irascível. Começa com um pensamento ou mau humor, avança como um impulso sádico, até que, se não resistir...
A mulher não terminou a fala, vendo a preocupação do menino.
— As Loucuras são comuns e a de Algos é terrível. Diagnosticar o princípio de um surto não é difícil, por isto Aldous deu a taça. Já estava nervoso, mas algo simples lhe desestabilizou mais.
— Aquilo incomodou... achei que quebraria a taça... não sei...
— É inexperiente. Se seguisse, seria hostil com palavras. O ar faltaria com a sensação de pulmões cheios d'água. A cor dos olhos oscilaria. Viriam dor, corpo tenso, sinfonia agitada, semiconsciência.
— Sempre que senti o ar faltar, ele falou comigo.
— Pense na primeira vez. — Althea serviu uma taça. — Como foi? — Ela pôs a flauta no colo e o deu a taça, olhando-o nos olhos.
— Tarusa... disse que Ranna foi punida por uma peta, no caso, eu... ele... nós! — lembrou, pegando a taça. — Ele me ofendeu e saí, mas ele xingou Ranna. O corpo tremeu; o ar faltou; suei frio!
Althea observou o vinho se mover com o estremecer do menino.
— Temia machucar. Ele falou. Foi horrível... confuso... dolor-
O vinho agitou mais na taça o incomodando e ele pôs na mesa.
— Podemos parar. — Althea lhe disse, vendo-o imergir na lembrança. — Calma... pensa na segunda, como aconteceu?
— Ranna morreu... pedi para ela usar ajuda de Ketu, mas foi a pior ideia que tive. Não a vi por uma semana e, quando vi, estava mal. Acordei-lhe, ela... não quis... comer... conversamos... e esfriei!
— Esfriou?
— O perfume, o frio, algo estava errado! Não parava de tremer. Falei ser a última vez. Ela disse algo, não lembro, e o frio foi pior. Creio que só tristeza e solidão são assim. Aí desisti e falei.
O olhar do menino perdeu brilho.
— Abandonado, sentei para estar lá uma última vez. Aldous chegou e eu soube o porquê. A garganta deu um nó. Sensações demais. O frio forte ficou. Levantei e o frio me guiou para arrebentar meus grilhões. Chorei, choramos... por diferentes razões, eu acho.
— Ao ficar, posso dizer que ainda cria em algo bom?
— Queria o fim, mas a queria bem. Tentaria de novo, não conseguiria não me torturar! Nunca entenderei o que ela despertava em mim ao ponto de eu me permitir tanta dor...
— E antes? — Ela o deu a taça. — Quando fizeram isso em vocês?
— O quê? — questionou, olhando para o interior da taça.
— A prisão de vidro que observo. — Althea riu, achando meigo o menino fugindo o olhar. — Não preciso vê-los para enxergá-la!
— Não sei, nem lembro. A vida não foi difícil, mas é confuso. Lembro de treinar, dormir e acordar, ajudar Ranna e receber Ava Gyi. Não sei o que deu errado, nem quando me tornei uma ameaça, nem quando lidaram. Ninguém falava, mas todos temiam!
Todo o corpo do menino arrepiou e ele cerrou os punhos.
— Tarusa disse que meus olhos... eram... mau presságio, mas eles são normais, nem faz sentido! Vanhi tinha olhos diferentes também e ninguém nunca o associou a algo ruim... por que comigo!?
— Já considerou que lhe faltam memórias?
O vinho voltou a revoltar-se na taça.
— Não quero. — Sigmund bebeu, olhando o interior da taça com lágrimas nos olhos. — Não sei lidar com a sensação de violação que considerar isso me causa — disse, com um nó na garganta, observando o mar revolto na taça. — Não estou bem, Althea Gyi...
Sigmund respirou fundo, fechando os olhos. As lágrimas escorreram por sua face, quebrando a taça ao tocá-la.
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