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Sigmund despertou com Ava o banhando com um tecido úmido, olhou ao redor e, apesar da visão embaçada, identificou sua casa.
Ava sorriu, aliviada ao vê-lo desperto.
— Bom dia, maung. Como está? Presumo que faminto!
— Sim. Posso me banhar, Ava Gyi. Não se preocupe. — Sentou.
— Claro que me preocupo, maung! Você dormiu sete dias ininterruptos. Os únicos sinais de consciência que observei foram nos momentos inquietos das sessões de Ranna. Como se sente?
— Os olhos estão pesados, a visão está embaçada, mas estou bem, Ava Gyi. Faminto! — exclamou, sentindo o estômago reclamar.
— Terminarei de banhá-lo e trarei a refeição. Mi Ranna está descansando, teve um péssimo desempenho nas sessões da semana, está bem cansada. Mantive você nutrido e hidratado com o chi, mas, nos próximos dias, precisa comer direito e beber bastante água.
— Sim, senhora! — assentiu, se ajeitando para ajudá-la.
Ao fim, Ava o serviu uma refeição leve e um lahpet para si.
— Já tive minha refeição, mas acompanharei com chá.
Bastou olhar a comida e o estômago agitou-se.
Sigmund comeu duas vezes para satisfazer-se.
— Comunicarei Maung Jagravh que você não irá hoje. Não precisa se preocupar com as refeições, pois trarei para ambos.
— Obrigado, Ava Gyi... Por quê?
— O quê, maung?
— Por que está ajudando tanto? — perguntou, triste.
— Primeiro, por ser meu dever. Segundo, eu me importo!
Ava levantou, o beijou na testa, cuidou da louça e despediu-se:
— Tenho alguns rapazes e moças para ver, então sairei cedo.
— Alguém morreu? — Ele se preocupou.
— Não, maung! Alguns rapazes se machucaram, uma briga, até onde sei. Estão recebendo cuidados e as moças chegaram a um momento delicado do treino, logo muitos ferimentos para tratar!
Sigmund a cumprimentou, foi ao quarto e viu Ranna dormindo, parecia em sono profundo. Sentou de frente à cama e concentrou-se. Entrando em meditação, uma fina dor se espalhou em sua cabeça.
***
Sigmund viu-se sobre uma grande mandala.
— Finalmente decidiu acordar, criança monge?
— Não tinha muita escolha, eu acho.
— Satisfeito por não termos matado ninguém?
— Obrigado, peta!
— Grrr... odeio essa alcunha! Chame demônio, é mais decente e, apesar de pouco fidedigno, reflete melhor o meu estado.
— Parará de me perseguir agora?
— Se me dessem escolha, você não nasceria e não estaríamos nessa situação. Consciente, eu seria livre e você seria uma possibilidade. Já disse, sou Sigmund... nasci e morrerei Sigmund. Não tempo motivo para mentir... estou preso... nada ganho.
— Pode estar tentando sair.
— Se pudesse já teria feito, mas, sou incapaz. Tenho muito o que evoluir antes de sair... e com você, alguns ajustes serão necessários.
Ele observou a grande mandala que parecia nunca terminar.
— Onde estou? O que é a mandala?
— Isto é a prisão de Ketu. Estou aqui embaixo, olhe!
Sigmund olhou aos seus pés e, abaixo da mandala, viu um rapaz submerso, idêntico a ele, apesar de grandes cabelos e olhos púrpuros.
Ele se assustou, pôs-se de joelho para observar com atenção.
Os cabelos flutuavam na água, dificultando ver características do corpo, mas era impossível dizer que aquele lá embaixo não era ele.
— Olá, criança monge! Não acredita no que vê? — Sorriu, acenando. — Estamos num lugar especial em nossa alma, não tão profundo quanto onde estou. Precisamos lidar com estas porcarias.
— Quebrá-las não irá soltá-lo?
— Existem muitas espalhadas. Apesar de parecidas, atestei diferirem, então trabalharemos para deixarem de ser ferramenta de Ketu e se tornarem nossas. Infelizmente, a ferramenta não existirá sem você. Refleti muito e não vou destruí-lo, se você se comportar.
— Se tentar contra mim, Ketu sentirá, não é?
— Não somente sentirá como trabalhará para eu não conseguir. É uma luta perdida. Você é manso, dócil, do jeito que a comunidade precisa. Ketu não o negligenciará tão facilmente, mas nasceu de mim, não importa o que ele fez, posso e destruirei esta estupidez inserida em você. Ninguém se aproveitará de mim, isto inclui você!
— Por que não matou os rapazes?
— Existem proteções em Aakash, criadas pelos ancestrais. A terra desconhece o assassinato. As mandalas e iantras, cravados na escadaria, nas estupas, compõe um grande mecanismo que doma a natureza e garante sua abundância. Nossos ancestrais viveram e trabalharam para criar isto almejando conhecermos sempre a prosperidade enquanto fôssemos responsáveis com a comunidade.
— Matar macularia Aakash, anulando isso... mas não seria bom?
— É cedo. Você é ignorante quanto a sua condição. Como aquele que está, erroneamente, no meu lugar, precisa adquirir conhecimento e sabedoria para sobrevivermos. Eu nos condenaria a um destino ruim e não sou estúpido, já disse! Só Tarusa e Romir não seriam o suficiente, Jagravh é um sangue que quero e você ajudará.
— Matar Jagravh Gyi?
— Sim. Matá-lo! Adoraria fazê-lo gritar, mas não superamos sua experiência ainda. Seremos pacientes e espertos. Você treinará com ele... nunca tivemos um pai, nem sei quem é, precisar de uma figura paternal... é natural... — Sorriu. — Jagravh pode suprir este vazio.
— Não quero enganar Jagravh Gyi.
— Não gostaria de estar preso, mas não se pode ter o que quer, lide! Agora é hora de ir, logo Ranna começará sua orgia deletéria. Não quero ter meu único momento orgástico do dia sendo observado por uma versão ascética minha, a ideia é nojenta!
— Pode não intensificar a dor? — O pobre monge pediu.
— Não atenderei, mas permito pedir — riu, olhando para o alto. — Senti tanta dor que aprendi a gostar e, para existir, precisa aprender a lidar. É condicionamento. Disponha, monge!
Ele suspirou e concentrou-se para despertar da meditação.
***
Ranna já estava acordada, sentada na cama.
— Bom dia, minha mãe — cumprimentou.
— Bom dia! Como está? Dormiu muito tempo...
— Estou bem. Quer comer algo?
Ranna assentiu e Sigmund buscou sua refeição para entregá-la.
— Ava Gyi saiu, trará refeições depois. Eu só treinarei amanhã.
— Que bom que está melhor. — Ranna aliviou-se.
— E você, como está? Ava Gyi disse que teve problemas.
— Não foram problemas, só o cansaço somado a preocupação, o que dificultou, mas agora que está bem, estou melhor. — Ela sorriu.
Terminando de comer, Ranna banhou-se para se preparar para seus exercícios. A infusão agiu rápido e intensamente, fazendo-a espasmar. Sigmund se assustou com a reação, mas a dor o levou a optar por manter-se sentado, observando-a.
Um ar gélido tomou o quarto e um doce perfume passeou.
Sigmund alertou-se, ansioso para o fim do exercício de Ranna.
Contudo, não demorou para o perfume dissipar.
A volta ao corpo foi turbulento. Ela sentou, ofegante. Sigmund pulou, indo até ela com truculência, dada a pouca força nas pernas.
— Ranna?
— Eu... estou... bem... — disse, letárgica.
"Logo chegará o momento dela.", riu a rouca voz.
Sigmund ignorou, correu para buscar água. Ao voltar, observou Ranna coberta em suor, apesar da temperatura baixa do quarto.
— Ajudarei com o banho e você vem à sala, perto da lareira... o quarto está gelado e pode te fazer mal.
Ranna assentiu com a cabeça e gradualmente relaxou, enquanto Sigmund limpava seu corpo e ela bebia água.
— Falarei com Ketu Gyi que você não está bem, mãe.
— Estou bem, meu filho.
— Não, Ranna! Não disse que deve parar, só precisa de ajuda. Ele não pode ajudar todos? VOCÊ NÃO ESTÁ BEM! — Irritou-se.
Sigmund jogou o tecido no chão derrubando a bacia com água.
— Que droga! Estou saindo.
O menino rumou ao monastério, indo diretamente a Ketu.
— Ketu Gyi, Ranna não está bem. Você precisa ajudá-la — pediu.
— Maung Sigmund, senti algo, mas não posso precisar o quê. Quer sentar e me contar o ocorrido? — convidou Ketu.
— Não, Ketu Gyi. Não quero sentar, nem conversar, só ajuda Ranna. Só isso! Ela pode fazer estas coisas aqui, estar próxima pode ajudar, você observa — sugeriu o menino, nervoso e trêmulo.
— Sua preocupação me surpreende. Dia após dia, noite após noite, nunca abandona Mi Ranna. — Sorriu Ketu. — É belo de ver!
Sigmund irou-se, crendo que Ketu debochava, mas nada disse. Voltou para casa e Ranna estava sentada na cama, após banhar-se só.
— Falei com Ketu Gyi e ele não entende. Você pode, ao menos, fazer isso no monastério? Assim Ketu Gyi pode observar e ajudar.
— Irei. Pretende me acompanhar ao monastério?
— Posso ir ao treino, meditar em casa, me ocupo com algo.
Ranna riu, observando-o nervoso andando de um lado para o outro, sentindo-se lisonjeada pelo bem-querer do menino.
Ainda mais enraivecido, entendendo como ironia, Sigmund foi até Ava. Ela estava na porta de casa, despedindo-se de uma moça.
— Ava Gyi! — cumprimentou — Você precisa dizer para minha mãe fazer estas coisas no monastério, ela morrerá se não tiver ajuda!
— O que aconteceu? — Ava perguntou.
— Não sei, mas não é bom. Ela não ficava assim... está errado!
— Falarei com ela. — Ava o beijou na testa. — Podemos almoçar?
Sigmund assentiu, caminhando com Ava para casa; auxiliou Ava a pôr a mesa, comeu e logo foi ao pagode, ter seu treinamento.
***
No dia seguinte, ao acordar, Ranna já saíra para o monastério.
Sigmund sentiu-se vitorioso, arrumou-se e foi ao treinamento, mas só se juntou no fim dos exercícios de Ranna. Ele procurou Jagravh para tirar dúvidas — mesmo que já soubesse.
Ao retornar, Ranna não estava, logo teve sua refeição só. Treinou e, à noite, sentou na porta de casa, onde meditou e se exercitou, assou frutas, até a alta madrugada, quando percebeu que Ranna não viria, se recolheu.
A semana seguinte fora exatamente igual e Ranna não voltou, apesar de manter a pontualidade com as sessões.
Na manhã do oitavo dia, ele decidiu ir ao monastério.
Acordou cedo, comeu e antes dos primeiros raios de sol, saiu.
— Quero ver minha mãe — anunciou, quando chegou.
— Claro, me acompanhe! — Um dos monges sorriu-lhe.
No quarto, Ranna estava deitada, sua respiração estava lenta e seu corpo levemente gélido. A fisgada na cabeça acometeu Sigmund, enquanto ele se aproximava de Ranna.
"Parece que alcançamos um estado semiconsciente. Agora, a todo momento? Será que viciou na morte?", ouviu a grave voz, enojada.
— O que está havendo? Ela parece viva. — Sigmund atestou, sentindo os batimentos e ouvindo sua respiração.
"Infelizmente... Nossa vida seria melhor, se isto acabasse!"
Sigmund silenciou, encheu uma bacia com água, procurou no quarto e pegou um tecido e uma adaga. Cortou um pedaço do pano, umedeceu e aqueceu com o chi para pôr na testa de Ranna.
Tentando aquecê-la, a banhou com o tecido quente.
Terminando, lidou com a desordem e recostou-se na parede, aguardando uma longa hora até ela finalmente acordar.
— Buscarei algo para comer — disse, levantando.
— Não quero comer, filho meu. Obrigada!
— Não comerá, Ranna? — questionou, preocupado.
— Estou bem! — Ranna sorriu, tentando tranquilizá-lo.
Sigmund silenciou-se e sentou, pondo as mãos na cabeça.
Observou enquanto ela preparava sua infusão.
O doce perfume que sentira em casa alastrou-se pelo quarto e, ao fim da infusão, mesmo o enojante cheiro do chá não era sentido.
Com os nervos à flor da pele, o menino aproximou-se.
— É a última vez, Ranna — disse.
Seu corpo tremeu e o ar faltou como em uma crise de ansiedade.
— É a última vez que tento... tem algo errado... não pode beber isso. Estou tentando cuidar de você... te amar... por que não deixa!? — Sigmund gritou, chorando, com suor frio escorrendo por sua testa.
— Tive que fazer uma escolha difícil. Deixo que cuide de mim, mas manterei meu dever. Sou a única que pode fazê-lo, não os abandonarei. Eu te amo, mas amo muito mais a herança de nossos ancestrais; não vou e não posso desgraçá-la — disse Ranna, olhando-o nos olhos, incapaz de suprimir suas lágrimas.
— Desisto! — disse, sentando — Meu último gesto de amor para você será acompanhá-la morrer.
Ranna silenciou, demorou para se concentrar, bebeu e deitou.
A dor chegou em Sigmund com o intensificar do perfume.
A temperatura do quarto caiu e Sigmund observou uma silhueta masculina surgir, coberta por um negro manto, com motivos sacerdotais que ele desconhecia, mas despertavam familiaridade.
— Veio buscar Ranna? — O menino perguntou. — Precisa ser rápido ou ela voltará. Ela sempre volta!
A silhueta terminou de formar-se, se mostrando um homem de quarenta anos com curtos cabelos grisalhos, forte compleição e pele clara, bem pálida. Os traços ocidentais eram estranhos ao menino.
— Voltar? — questionou o homem, com surpresa no semblante.
— Sim, ela sempre volta. Julgo que gosta de me torturar.
— Não parece bem, criança. Deixe-me adivinhar: Sigmund é o nome do perseguido pela suicida passiva? — Riu o homem, irônico.
— Sim, sou filho de Ranna. — Apontou. — Quem é você?
— Sou Aldous, criança. Estou aqui para levar Ranna.
— Talvez precise de ajuda.
Com dificuldade, lágrimas nos olhos, Sigmund tomou a adaga.
— Se não for assim, ela voltará e tudo repetirá! — esbravejou, apunhalando-a. — Odeio ela e todos que não ajudam! — desabafou.
O menino apunhalou o corpo imóvel de Ranna repetidas vezes até sentir a estridente dor do elo que os ligava arrebentando.
"Essa é a dor mais satisfatória que já senti. É a última vez que me machuca, Ranna.", pensaram ambos, caindo de joelhos, derramando lágrimas de sangue carregadas com a pouca inocência e humanidade que ainda lhes restava, junto ao último suspiro de Ranna.
— Perfeito! Como é chorar sua humanidade? — Aldous sorriu.
— Libertador! — O menino sorriu, inebriado pela sensação orgástica. — O senhor pode esperar para me levar? — perguntou, levantando com a adaga em mãos. — Vão querer me matar mesmo... antes disso, levo o máximo deles ao inferno comigo!
— Quero ver! — O olhar de Aldous foi inundado com satisfação.
Assim como chegara, Aldous desapareceu. Sigmund limpou a adaga na cama, vestiu outro sanghati, achado no quarto, amarrou a adaga próxima ao corpo, lavou-se e voltou para casa.
Chegando em casa, assou frutas no fogareiro, mas sua refeição foi interrompida por Jagravh batendo à porta.
— Entre, Jagravh Gyi — convidou, pensando em pegar a adaga.
"QUERO O SANGUE DELE!", o louco gritou, deixando-o tonto.
— Posso dizer que não? — questionou, receando matar Jagravh.
"NEM SE QUISESSE. MATAREI ELE!", gargalhou.
Atingido por uma intensa dor, Sigmund gritou, encolhendo-se com uma mão na cabeça. Ouvindo-o, Jagravh entrou rapidamente.
Sigmund levou a outra mão à empunhadura da adaga. Quando Jagravh aproximou-se, seu chi expandiu-se contra sua vontade.
Seu corpo lançou-se contra Jagravh num acesso de ira que ele nem sequer compreendia. Jagravh, de guarda baixa, foi atingido na jugular pelo frio fio da adaga, sofrendo um extenso corte.
Perdido, confuso entre defender-se ou cuidar de si, ele pressionou contra o corte, mas, com tanta energia, num corte tão profundo, haviam poucas escolhas certas e esta não era uma delas.
Sigmund dançou com a adaga de novo, separando sua cabeça do corpo e correu para fora. "Tarusa!", ecoava em sua mente, sem parar.
A expansão energética seguiu, pressionando contra ele; os desafortunados aldeões que estavam entre ele e o pagode foram vitimados pelo ódio ensandecido que pulsava nas veias do menino.
Sigmund parou ao deparar-se com Ava.
— Maung!? — Ela chamou, com lágrimas nos olhos. — Você está bem? D-deixe-me ajudá-lo. Você não precisa fazer isto. Não ceda!
Impactado por vê-la, o menino gritou num intenso desabafo.
A mandala rompendo ecoou, estridentemente, por toda a vila.
O púrpuro olhar marejado de Sigmund fitou os olhos de Ava.
Ele a ignorou e rumou ao pagode, chegando como um arauto do caos, instaurando selvageria. Ele atacou todos que pôde, matou o máximo. Convicto que morreria, não havia necessidade de se poupar.
Durante estes momentos intensos, o corpo de Sigmund moveu-se, animado pelo frenesi, que permeava seu corpo e mente.
Quando perdeu as forças, algo gélido o envolveu.
Sua visão escureceu e ele desacordou.
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