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Sigmund acordou, pulando da cama. Olhou ao redor, temendo o espírito. Ouvindo-o, Ava correu para acudir, deixando o que fazia.
— Calma. Estou cozinhando para levá-lo em casa — disse, deitando-o. — Você está bem, na minha casa. Lembra o que houve?
— Tarusa. Deve ter machucado... senti um gosto estranho. A peta enraiveceu... me puniu! Não quero mais. — O menino chorou. — Não aguento! Estou cansado, não quero! Fiz tudo certo diariamente... tento e não é suficiente? Ava Gyi, precisa me curar, me consertar!
— Me perdoe, maung! — disse Ava, impotente, abraçando-o. — Não sei o que acontece, por isso, não posso oferecer mais ajuda. Preciso que seja forte, quero te ajudar. Então, conversa comigo.
— Não quero. Não aguento. Continua doendo. Todos fingem que não acontece. Não aguento! Ava Gyi, me ajuda! — Ele implorou.
Ava o abraçou forte e Sigmund chorou até adormecer de novo.
***
Sigmund acordou, em casa, sentindo sua diária dor.
"Falei que causaria mais dor! Achou estar acostumado? Conheço essa dor e aprendi a piorar, criança monge.", disse a grave voz, gargalhando, intensificando a dor causada pelo exercício de Ranna.
Sigmund nem sequer moveu-se, seu semblante mortificou.
As lágrimas caíam enquanto seu corpo foi paralisado por um intenso e longo espasmo, como a corda de um piano esticando-se.
— Maung Sigmund, está bem? — Ava correu, derrubando tudo, assustada e preocupada. — Pode me ouvir? Não desista, tudo bem!?
Sigmund a ouviu, mas foi incapaz de responder. Ava ajoelhou perto, sem ter o que fazer para ajudar, apenas lhe restou aguardar ao seu lado até a dor cessar.
Ranna teve dificuldades para retornar ao corpo.
Após o intenso esticar, a corda do piano arrebentou... O frágil corpo de Sigmund recebeu alívio e relaxamento. Ava, vendo-o relaxar, observou sua saúde e tratou as lesões causadas pela tensão.
Buscou água e o deu, cobrindo-o em seguida. Precisou lutar contra si para deixar Sigmund só e voltar à cozinha.
Ao despertar, Ranna foi à sala, observou Ava na cozinha e Sigmund deitado com olhar vazio, exaurido, fitando o teto.
— Bom dia. Como foi? Falaram de Maung Sigmund em sua casa, mas não explicaram. — Ranna foi até o menino acariciar seu rosto.
Uma lágrima sucedeu o carinho de Ranna.
— Um rapaz agrediu Maung Sigmund. Foi gravíssimo. Ele disse algo sobre peta falando com ele, não entendi, mas estou preocupada, Mi Ranna. O que está acontecendo!? — Ava questionou, nervosa.
— Muito não parou de ocorrer! — Ranna suspirou. — Vou me banhar — disse, exausta, seguindo para o banho.
— Se precisa de ajuda, conta comigo! O que estão fazendo com Maung Sigmund!? O que está havendo!? — insistiu, seguindo Ranna.
— Só quero cuidar dele e de todos, Mi Ava! — Ranna chorou ao banho. — Estou perdida... minha régua moral falha, não sei o que fazer. Sou incapaz de entender, incapaz de escolher.
— Não sou mãe... então, não posso ajudar muito — disse Ava. — Pode ser egoísta, mas se cuidar de outros fizesse meu filho sofrer, não seria difícil escolher. Para se tornar um cidadão, ele precisa de ti.
Melancólica, Ava respirou fundo e seguiu a fala:
— Tudo o que faz, refletirá em quem ele se tornará. Não precisa escolher de quem cuidar, mas, sim, qual papel está pronta para assumir: quer ser a mãe ou a ascética theravada, que se doa aos seus? Se asceticismo for a escolha, decida para quem será tal doação! Abaixar-se para pegar o ouro não é um pecado, mas vale a pena?
— Não sei se posso lidar. Preciso cumprir com meus deveres.
— Se quer ser a ascética, cuidando dos outros, entenda que essa decisão significa sacrificar suas chances de ter uma relação saudável com ele, sacrificará sua posição de mãe e se tornarão estranhos.
Ranna silenciou e Ava seguiu banhando-a carinhosamente.
— Só deve sentir culpa se for incapaz de decidir! Não há certo ou errado, há uma escolha a ser tomada, qualquer uma custará muito. Agora, limpe esse rosto e levante. A refeição já está pronta, banharei Maung Sigmund e nos servirei. Recomponha-se enquanto se arruma!
Ava deixou Ranna no quarto e foi até a sala. Sigmund estava deitado, ela o pegou no colo e o levou ao banheiro. Observou sua saúde de novo, e, apesar do cansaço, ele estava fisicamente bem.
— Maung, o banharei e comeremos — disse ao levá-lo.
Sigmund abraçou Ava e chorou no banho, deixando-a mais aflita, mas ela suspirou, acalmando-se, o banhou e vestiu, paciente.
— Consegue caminhar ou quer que o leve à sala? Não precisa ter vergonha. — Ela sorriu, tentando tirar uma expressão positiva.
— Consigo andar. Desculpa pelo trabalho, Ava Gyi.
Sigmund levantou com sua ajuda e Ava o estendeu a mão, caminhando ao seu lado, oferecendo-o apoio, não somente pelo cansaço do corpo, mas pela estafa emocional.
A refeição transcorreu em silêncio. Sigmund estava aéreo e sem apetite, comendo por insistência de Ava.
— Maung Sigmund, não treinará! Virei à noite para vê-lo. Mi Ranna, venha à minha casa. Percebi a dificuldade e quero avaliá-la.
— Estou bem, Mi Ava. A dificuldade foi atípica, porém, esperada.
Ava os cumprimentou, beijando-os na testa.
— Não pedi, Mi Ranna! — disse, saindo da casa.
Sigmund voltou a adormecer, acordado por Ava antes do jantar.
Ranna se banhava. Ava verificou a saúde do menino e começou a servir a refeição. Sigmund tomou seu banho só e se juntou.
Elas conversaram bastante, assuntos frívolos que não passavam de um grande blablablá para ele. Ao fim da refeição, o menino se deitou, acordando em meio a madrugada.
Amornou a água para o banho e saiu. Evitando achar Tarusa, foi à floresta e se recostou numa árvore para observar o céu e seus muitos tons da madrugada à alvorada.
As cores eram belas, estrelas extrovertidas cintilavam, tornando o céu, uma grande maravilha, única... talvez a razão da vida valer.
Aos primeiros raios de sol, Sigmund caminhou devagar, sem pressa para voltar ao seu castigo diário. Ranna já comera e estava em seus preparativos para o exercício. Uma refeição o aguardava na sala.
— Passou a noite fora de novo? — questionou, do quarto. — Não deveria após o ocorrido com Maung Tarusa, mas não repreenderei. Deixei sua refeição na sala. Um bom dia, filho meu.
— Comerei quando terminar. Assim não desperdiço, pondo no estômago algo que será espremido para fora de mim.
O menino sentou ao chão, a frente da cama. Recostou-se na parede, apoiando a cabeça. Amarrou um tecido no punho e fechou os olhos. A maior intensidade da dor, o fazia recuperar-se devagar.
Ao fim, ele levantou ofegante, buscou a refeição na sala e entregou à Ranna, que fez objeção, mas ele ignorou, deixou o prato sobre a cama e buscou uma bacia com água e um tecido limpo.
— Come... ajudo com banho. — Ele ajoelhou de cabeça baixa.
Ranna silenciou, comeu enquanto ele a banhava com o pano.
— Treinarei. Se voltar a tempo, ajudo com a refeição.
— Do que isso se trata? — Ela se intrigou com o gélido cuidado.
Sigmund a olhou, confuso.
Pela confusão decidiu não responder, terminou de ajudar e saiu, treinando pelo resto da manhã. Voltou apressado para conseguir cozinhar — mesmo que não soubesse nada complicado, o básico já sabia e foi isso que serviu para Ranna no quarto.
— Estou indo! Se precisar de algo, avise — disse, saindo de novo.
Ele caminhou devagar para o pagode, respirando fundo.
Uma sinfonia desorganizada de mantras ecoava em sua mente, conforme ele lembrava. O medo de ter problemas com Tarusa se traduzia em longos suspiros. Ao chegar, Elil e Jagravh estavam sós.
O menino cumprimentou e sentou para aguardar os outros.
— Está bem, Maung Sigmund? — perguntou Elil.
— Sim, mestre.
— Gostaria de conversar sobre o ocorrido com Maung Tarusa?
— Não, mestre.
— Por que não?
— Porque não sei o que dizer, nem como me sentir. Não quero piorar as coisas e estou cansado demais para conversar...
Elil ficou insatisfeito, mas respeitou a vontade do menino.
Dez minutos passaram-se e todos os rapazes reuniram-se.
A carne de Sigmund tremeu ao ver Tarusa, seu coração acelerou, mas ele suspirou e fugiu o olhar sempre que pôde. Jagravh começou a ensiná-lo. Mesmo com dificuldade em se ater ao que Jagravh falava, Sigmund conseguiu ter uma boa tarde de treinamento.
Terminando cumprimentou Elil e o perguntou:
— Posso seguir o treinamento com o senhor, mestre?
Elil assentiu e Sigmund juntou-se. Distanciando-se de Tarusa, ficou próximo a Sanjiv que nunca se envolvera em confusão. Ao término, Ihit aproximou-se, pedindo:
— U Sigmund, me ajuda a recolher frutas depois?
— Não podia pedir a outro? — Desconfiou Sigmund.
— Me odeiam por ser mais novo. Sanjiv e Jagish são ocupados...
— Ajudo, já que não tenho nada para fazer, mas por favor, não se precipite, não quero participar das suas brincadeiras estúpidas.
— Não é brincadeira! Quero fazer algo para minha irmã comer, ela sempre chega cansada do treinamento.
— Já assei frutas na fogueira são boas. Ela gostará. Mostrarei.
— Obrigado — cumprimentou Ihit.
Uma intensa dor na cabeça antecedeu a fala da grave voz:
"Eles vão pegá-lo na floresta. Seja bom e deixe-me lidar."
— Não posso crer que todos eles são ruins! Isto me fará mal.
— Hm? — Ihit o olhou, crendo que Sigmund se dirigia a ele.
"Um acordo... se tivermos problemas, assumo a consciência. Se não, pode brincar de passear com seu coleguinha e não incomodarei."
— Tudo bem — concordou Sigmund.
— Você está bem? — perguntou Ihit, olhando-o, confuso.
— Estou — respondeu Sigmund, olhando-o e sorrindo gentilmente, tentando parecer são, apesar de sentir-se louco.
Seguindo o combinado, ao fim do treinamento, Sigmund e Ihit foram a floresta com um cesto, colher algumas frutas.
Um chi familiar entrou na floresta. Sigmund olhou Ihit, triste.
— Por quê, Ihit? — perguntou, com tom ameaçador.
— O quê, U Sigmund? — perguntou, amedrontado e confuso.
"Disse que alguém viria!", riu a voz, satisfeita pela precisão.
— Ainda acreditarei nele. Estou bem protegido, afinal você está comigo, não é? — perguntou, sarcástico.
"COMEÇO A GOSTAR DE VOCÊ.", a voz gargalhou, insana.
Ihit seguiu, confuso, após vê-lo conversando consigo.
Era óbvio que o menino não tinha intenção de fazer mal algum, falou da irmã a todo momento. Sigmund não foi antissocial, conversou com Ihit, evitando falar de Ranna ou comparar sua relação fracassada com Ranna à boa relação do menino com a irmã.
A noite caiu e ambos começaram a retornar, quando Sigmund sentiu um chi se aproximar... logo, dois... três!
— U Ihit, pode ir à frente? Colhendo para sua irmã, decidi fazer algo para minha mãe. — Sigmund sorriu, disfarçadamente.
— Não quer companhia? Posso ajudar... — ofereceu-se Ihit.
— Não! Vai embora! — gritou Sigmund, sentindo a velocidade de um dos indivíduos aumentar. — Amanhã me conta o que ela achou.
Sigmund sorriu e correu para o interior da floresta, buscando afastar-se da vila o máximo possível. Ihit, confuso, foi para casa.
"Não tema! Para fazer algo contra a vila, precisarei de um tempo que não disponho. Por ora, só quero quem está vindo por nós."
— Não posso confiar em você! — retrucou.
"Sou o único em quem pode confiar, porque és um mero subproduto meu, criado pela vontade de um desgraçado que se acha deus."
— Não acredito em você! — gritou Sigmund.
"Aprenderá que sou tudo que tem. Em algum momento, fui tudo o que eu tinha! Contudo, só percebi quando estavam me prendendo dentro de mim mesmo. Posso parecer um espírito maligno, demônio ou algo do tipo, mas nasci humano, eles me demonizaram!", gritou.
Os passos aproximaram-se e eram Tarusa, Tarendra e Romir.
— Não quero problemas! — O menino afastou-se, levantando a guarda. — Têm uma oportunidade, me deixem voltar em segurança, em paz, não contarei para ninguém.
Tarusa riu, aproximando-se e permitindo o fluir de seu chi.
"É meu momento? Não erro. É meu momento!", vibrou, rindo.
— O que faço? — perguntou Sigmund, apavorado.
"Feche os olhos. Doerá, mas se resistir doerá mais! A brecha que a dor abre é suficiente para quebrá-la e agir antes de Ketu me perceber."
Sigmund fechou os olhos e Tarusa correu na sua direção.
A intensa dor ocorreu. Seguida de um som estridente que ecoou alto pela floresta, como a quebra de um grande vitral, seguido da intensa explosão de chi, carregado com ódio, tristeza, raiva e rancor. Um chi revolto, preenchido com dor física, psicológica e emocional.
Tarusa estava avançando quando se surpreendeu.
Os púrpuros olhos de Sigmund arderam fitando os olhos de Tarusa, vazando sede de sangue, transbordando desejo assassino. Sigmund sorriu, deixando os caninos aparentes como um predador.
"Lidar com eles será mais fácil do que pensei!", desdenhou, enquanto observava Tarusa chegando.
Tarusa parecia muito lento.
Sigmund gargalhou, tendo o olhar inundado por insanidade.
Tarusa fechou a mão para aplicá-lo um soco e Sigmund, aplicando muita energia, encontrou o soco de Tarusa com outro.
Era impossível competir com sua lapidação, o que causou danos extensos e severos a Tarusa, da ponta dos dedos ao antebraço.
Tarusa caiu com a dor e Sigmund correu até Romir, que entrou na defensiva. O insano o chutou e sua falha defesa com os braços os quebrou, como se uma barra de ferro se chocasse contra eles.
Sigmund ignorou Tarendra e ao atestar a inutilidade de Romir — preocupado demais com os braços! —, voltou a Tarusa que ainda estava aturdido pela dor ou entorpecido pelo cenário desfavorável.
— NÃO DIGA QUE DÓI!? SÓ ISTO TE FARÁ CHORAR? PENSEI QUE NOS DIVERTIRÍAMOS MAIS, NGA TARUSA! — ironizou, insano, rindo com um brilho sádico no olhar.
Tarusa tentou se defender, mas não podia lidar com o que cria ser um demônio! O pavor de fitar os olhos de Sigmund o paralisou.
Um chi tão agressivo, maligno, em constante expansão não era nada que os três imaginariam presenciar, não podiam lidar!
Romir, o mais covarde, correu!
Tarusa, o mais próximo, pagou.
Sigmund o bateu com socos, chutes e tudo o que pôde. Acautelou-se para não matá-lo, mas quebrou o máximo de ossos beirando a letalidade.
Os gritos de dor de Tarusa o entorpeciam.
Tarendra, ficou parado, em choque. Não tinha coragem, ou talvez forças, para bater ou correr.
— Leva seu irmão! Ainda não temos problemas. Quando te machuquei, estava tentando impedir que algo ruim lhe acontecesse!
Tarendra continuou parado.
Sigmund intensificou a energia, lançando Tarusa contra ele e, no susto, crendo que seria alvo, o menino pegou seu irmão e correu.
O púrpuro olhar fitou o céu com um sorriso melancólico.
Após um suspiro, ele seguiu à vila, tranquilamente.
O sangue em suas vestes, em seu corpo, o satisfazia. Os gritos de Tarusa ecoavam em sua mente e ele os recebia com um sorriso, como um maestro ouvindo Beethoven performado perfeitamente.
Na vila, um cordão de monges, liderado por Ketu, a cercavam.
— Ketu! — O menino sorriu. — Vim devolver o projeto de gente que criou! — Abriu os braços. — Não precisam se amontoar para me facilitar. É tentador, mas sei o que devo ou não. No dia de matá-los, não esperarei estarem prontos. Convenhamos, sou mais inteligente!
— Não há necessidade de hostilidade, Maung Sigmund. O que fiz e faço é pensando no bem-estar de todos!
Sigmund gargalhou da piada de péssimo gosto e continuou se aproximando. Ketu fitou os olhos de Sigmund, expandindo sua energia e formando a grande mandala aos pés do menino.
— Foi uma satisfação, Ketu! — Sorriu, com a sobrancelha direita levantada, fitando os olhos do grão-mestre enquanto passava a língua no canino direito, como um animal satisfeito com a refeição.
Ketu iniciou os mantras com os monges e o menino desfaleceu.
Ele tomou o menino e o levou ao monastério, onde ele foi limpo e levado para casa por um dos monges que, por pedido de Ketu, dissera a Ranna que encontrou Sigmund dormindo na floresta.
Ranna estranhou, pois, sentira algo, mas não questionou — sua cabeça, acostumada a não questionar, justificou com um sonho.
Os aldeões que se omitiram no incidente de Tarusa e Sigmund foram punidos e hierarquicamente tolidos de autoridade. Os rapazes Tarusa, Romir e Tarendra, nem sequer falaram sobre o ocorrido, deixando com que permanecesse um mistério para todos.
***
Sigmund despertou em meio a absoluta escuridão.
O som do mar, desenhava a extensa sombra, em seu imaginário.
— Ajudarei. Vamos nos fortalecer e deixar essa vida miserável. Treinaremos, cresceremos e partiremos! Se nos coordenarmos, podemos superar Ketu! Ajudarei com treino... nos desenvolvemos e aprimoramos juntos. Um novo ciclo se inicia — disse a sombra.
— O que aconteceu? Você matou todo mundo?
— Conversamos depois. Vou desacordá-lo e só acordará quando eu sanar as feridas que causei em nós. Boa noite, criança monge!
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