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Foi uma hora e meia de cochilo para Ranna, acordada por monges entrando no quarto. Ela se banhou e, ao voltar, encontrou o menino sentado, logo, correu até ele, adiando os próprios cuidados.
— Filho meu, como está?
O púrpuro olhar do menino fora substituído por um castanho bem claro. Ranna suspirou, preocupada, e acariciou seu rosto.
— Sigmund, está bem? — insistiu.
— Bom dia, minha mãe. Estou bem. Faminto. Vou ao banho.
— Precisa de ajuda?
— Acredito que sim, me sinto fraco. Dormi muito, talvez!?
Ela o pegou no colo, como não fazia há meses, e o levou ao banho. Terminando, o vestiu e ambos tiveram a refeição juntos.
— Devo procurar Ketu Gyi para ir ao treinamento?
— É bom que fale com ele, eu estarei em casa, tudo bem?
— Sim, senhora. — Sigmund assentiu, terminando de comer.
O menino deixou o quarto, guiado a Ketu, por um monge.
— Bom dia, Maung Sigmund — cumprimentou Ketu que estava, como sempre, em posição de lótus, de olhos fechados.
— Bom dia, Ketu Gyi. Gostaria de treinar. Vim pedir permissão.
— Deve! — Ketu estudou seu chi, satisfazendo-se. — Como está?
— O corpo está fraco e dói, mas deve ter sido o sono. Desculpe!
— Lembra-se da última semana?
— Tentei machucar Jagravh Gyi e desmaiei. Pedirei desculpa.
— Dormiu por uma semana. Evite esforços — sorriu. — Treinar será bom, mas seja prudente, controlado — aconselhou gentil.
Sigmund deixou o aposento. Junto a Ranna, foi ao pagode.
Alguns aldeões, não conseguiam evitar se afastar de ambos, ao passar, após toda a cena que presenciaram ou ouviram falar.
Era manhã e, chegando no pagode, as crianças já treinavam.
— Maung Jagravh Gyi, trouxe Maung Sigmund para treinar — Ranna disse. — Sayadaw Ketu o permitiu participar, contanto que não se esforce; está muito cansado dado o tempo que dormiu.
— Sem problemas. Junte-se a nós, Maung Sigmund.
— Jagravh Gyi, desculpe hostilizar — cumprimentou Sigmund.
— Sei que não estava bem, jamais ficaria ressentido.
Sigmund juntou-se às crianças e teve uma manhã calma. Ranna, preocupada, foi para casa, mas a cada vinte minutos voltou para certificar-se que o menino estava bem. A calmaria lhe foi incômoda.
Ao fim do treinamento, Sigmund retornou e ela já cozinhara.
— Boa tarde, mãe. Tomarei banho e me juntarei a senhora!
A refeição foi servida em meio a um ensurdecedor silêncio.
— Como foi o treinamento? — perguntou, quebrando o silêncio.
— Foi bem. Jagravh Gyi propôs estudar o corpo, creio que ajuda a perder essa fraqueza... Esqueci de perguntar se posso ir à tarde.
— Creio que deve descansar, mas não o impedirei. Acautele-se!
— Irei, mãe. Obrigado. Não vou me esforçar muito. Cuidarei da louça antes de sair — disse, terminando de comer.
Chegando no pagode, Sanjiv, Jagish e Romir treinavam, esperando o resto. Elil estava no canto do pagode, os observando.
Vendo Sigmund, os rapazes pararam e se aproximaram.
— U Sigmund — cumprimentou Sanjiv, sorrindo. — Como está? Ficamos bastante preocupados.
— Bem. — Ele sorriu. — Verei com Elil Gyi se posso treinar.
— O que houve nos olhos? — arguiu Jagish, de longe, intrigado.
— Meus olhos!? Nada — respondeu, levando as mãos aos olhos. — Estão machucados? Não estou sentindo.
— Se não sente dor, tudo bem... — Jagish disse, desconfiado.
Sigmund relevou. Foi até Elil e o perguntou:
— Elil Gyi, posso participar do treinamento?
— Pode ficar, mas não quero que participe de atividades físicas — respondeu Elil. — Ajudarei em sua recuperação, o que acha?
— Assim também é bom — deu de ombros.
— Então, faremos um exercício em jhana, medite e estude-se.
Sigmund assentiu, sentando.
— Soarei o sino a cada meia hora. A cada badalar, ele emanará muita energia; ela passará por seu corpo e dissipará gradualmente. Estude os caminhos trilhados por ela, do momento intenso ao mais tênue. Primeiro, concentre-se! Leve o tempo que precisar.
Sigmund fechou os olhos e concentrou-se. Sentiu as batidas de seu coração, o correr do sangue, o pulsar da vida.
Observando a concentração do menino, Elil soou o sino.
O som, alguns tons mais grave, viajou com a abundante energia, que penetrou o corpo do menino e o exercício iniciou. Suprimir o chi não era preciso e todos se surpreenderam com a diferença.
— Mestre, Maung Sigmund está doente? — Intrigou-se Jagish.
— Não, ele passou por um rito que o acalmou — respondeu Elil.
— Esse não é Maung Sigmund! — exclamou Jagish.
— Se em algum momento, observar algo estranho, fale conosco — tranquilizou Elil. — Não se preocupe!
— Os olhos não são dele, mestre. O chi... não é o mesmo! É menos intenso e agressivo; diferente! — Jagish insistiu, incomodado.
— Vê-lo dócil é estranho. — Sanjiv riu. — Parece domesticado.
— Eu 'tô fora! — Afastou-se Romir. — Não sei o que houve, mas coisa boa não é! Não quero estar perto dele.
— U Romir, não seja exagerado! — repreendeu Sanjiv.
— Impossível! Se o rito tirasse algo que não era dele, ele estaria tudo, menos dócil. Ele sempre diferiu. Não se nasce possuído ou coisa do tipo. É novo demais para qualquer coisa tocá-lo. Isso significa que nunca foi dócil e se, por azar, sofreu influência, ficaria um pouco, não manso! Quando essa besta nos morder, estamos perdidos! Anota...
— Que os Nats nos protejam disto! — bem-disse Sanjiv, rindo.
Elil conciliou o treinamento dos rapazes e a meditação de Sigmund. Quatro horas se passaram e o sol começou a se pôr.
Com ajuda de Elil, Sigmund despertou do estado meditativo.
— Já terminamos? — O menino perguntou.
— Sim. Hora de ir. Faça sequências com punhos e pés...
— Farei. Até logo, rapazes! Logo estarei bem para uma luva.
Sem jeito, quase todos retribuíram. Romir, desconfiado, Tarusa, desgostoso, e Ihit, amedrontado, nem sequer o olharam.
Sigmund voltou para casa e Ranna estava terminando a refeição. Após o banho ele juntou-se para auxiliá-la na cozinha. Ranna não negou a ajuda, aproveitando para observá-lo atentamente.
— Posso dormir mais tarde, mãe? — pediu. — Elil Gyi me permitiu fazer exercícios, eles devem me ajudar.
— Pode, sim, filho meu.
Após a refeição, Sigmund realizou se exercitou por duas horas. Depois foi à porta de casa e sentou para observar o céu. O sono já era forte, mas ele resistiu meia hora, apreciando a vastidão das estrelas.
***
— Maung Sigmund, está bem? — O afago de Ava o despertou.
O menino adormecera na porta de casa.
— Sim, Ava Gyi — respondeu, esfregando os olhos.
Ele olhou para o céu e o dia estava amanhecendo.
— Dormiu ao relento? Pode ficar doente, sabia?
— Desculpa, Ava Gyi. Veio ver minha mãe?
— Subiremos juntas. Não esperava encontrá-lo dormindo aqui!
— O céu estava lindo, suponho que dormi olhando para ele.
Ava sorriu, o ajudou a pôr-se de pé e entrou com ele.
Sigmund foi ao quarto, encontrou Ranna arrumando a cama.
— Bom dia, mãe. Ava Gyi chegou. Dormi na porta, desculpa!
— Na porta, Maung Sigmund? — repreendeu. — Farei a refeição, você vai ao banho, também farei um lahpet para não gripar. Bom dia!
Sigmund foi ao banho e Ranna saiu para receber Ava.
— Bom dia, Mi Ranna — cumprimentou Ava. — O que aconteceu com os olhos mais lindos que ajudei a pôr no mundo?
— Bom dia! Ele passou por um rito para lidar com os acessos de raiva. Ao despertar, os olhos estavam castanhos.
— Os Nats sempre nos abençoarão com dias melhores. Tenhamos fé que é um sinal de boas mudanças — orou Ava.
— Amém. Ontem foi um dia atípico, mas foi só um dia. Vejamos como ele lidará com meus exercícios.
— O importante é estarem bem. Quer ajuda com a refeição?
Ranna assentiu e ambas seguiram para a cozinha.
Sigmund deixou o banho e sentou à porta para ver o amanhecer. Era tão belo que poderia assistir eternamente e nunca se cansar. Ele agradeceu em seu íntimo por um dia tão belo e voltou para dentro.
Os três tiveram a refeição juntos.
No caminho ao pagode, Sigmund sentiu melhora no corpo, que já não enfrentava lentidão na resposta aos estímulos.
Jagravh estava meditando no pagode.
Uma extrema hostilidade aproximando-se o fez abrir os olhos e ele viu Sigmund aproximando-se devagar, distraído.
— Bom dia, Maung Sigmund. Como está? — O mestre questionou, estudando-o, certo de que sentira algo ruim.
— Bom dia, Jagravh Gyi. Estou bem, meu corpo está melhor.
— Isto é ótimo, junte-se para meditar e aguardar os outros.
O menino concordou, sentando ao seu lado. Sigmund entrou num estado profundo de consciência rapidamente e Jagravh o observou atentamente, mas nada sentiu de novo.
Quando sentiu os outros chegaram, Sigmund despertou. Tentou se juntar, mas o medo das crianças as levou a afastarem-se. Ele pouco compreendia, mas não perguntou. Voltou sua atenção a Jagravh.
O exercício do dia era repetição de movimentos, sem uso do chi.
Chegado o exercício de Ranna, Sigmund tonteou e caiu, a dor intensa seguida de tontura o fizeram desperdiçar a refeição. Um grande aperto no peito o levou às lágrimas.
"Ó! Nats sagrados que há muitos cuidam do meu povo. Tragam paz ao meu coração e cuidem de minha mãe.", orou, em agonia.
"Nats não olharão por nós. São coniventes com ela. Não somente Nats, como cada pessoa aqui. TODOS CONIVENTES! MALDITOS! NUNCA CONFIE NELES!", gritou, uma voz rouca, abafada em seu íntimo.
A tontura intensificou e Jagravh cessou o treinamento.
— Maung Tarendra, chame Daw Ava Gyi, por favor? — pediu Jagravh, pegando Sigmund e levando-o a um tapete das extremidades do pagode. — Maung Sigmund, consegue me ouvir? Está bem?
— Estou bem... tonto... com dor... e alguém fala...
Ava entrou ao pagode, correndo.
Enquanto se aproximava, sentiu instabilidade no chi do menino.
Chegando, ajoelhou e descansou a mão em seu peito. Apesar das intensas contrações causadas pela dor, ele estava bem fisicamente. A tontura parecia causada pelo abalo que a dor levava aos sentidos.
— Maung Jagravh Gyi, retome. Acompanharei Maung Sigmund até a dor passar. Se ele melhorar, o devolvo, senão o levo para casa.
Jagravh assentiu e continuou o treinamento com as crianças.
Ava o acompanhou até a dor e as lágrimas serem substituídas pelo relaxamento, quando ela buscou água para o menino.
— Como está? — perguntou, preocupada.
— Bem, Ava Gyi. Ouvi alguém ruim.
— Quer passar a manhã comigo? Eu o ensino a cozinhar.
— Tudo bem — assentiu, tomando da água.
— Levarei Maung Sigmund. Ele está bem, mas quero observá-lo — disse Ava, ajudando o menino a levantar.
— Posso vir à tarde? Assim não perco o dia — pediu Sigmund.
— Virei auxiliá-lo. Fique bem! — cumprimentou Jagravh.
Ava foi em sua casa pegar um assento e seguiu com Sigmund.
— O assento ficará, use para estar na altura do fogareiro. Seja sábio e será seguro — sorriu, pondo os utilitários na bancada. — Das frutas, a manga é a melhor; das carnes, a carne de porco é a melhor e das folhas, o lahpet é o melhor! Aprendemos lahpet?
— O chá?
— Sim. Instruirei e você prepara enquanto cozinho o resto.
Ava o ensinou pacientemente e o deixou terminar só.
Sigmund terminou o lahpet — uma salada de chá, onde resumidamente as folhas fermentadas do chá, são cozidas com óleo e sal, acompanhadas de outros grãos na antiga Birmânia, atual Myanmar... particularmente, parece bom!
Logo, após se juntou para ajudar Ava no resto da refeição.
Ranna chegou pouco antes do almoço.
— Boa tarde! — cumprimentou, entrando. — Tomarei um banho e logo falo melhor com vocês. Como foi a manhã?
— Foi ótima — respondeu Ava. — Termine e conversamos.
— Boa tarde, minha mãe — cumprimentou Sigmund.
Após o banho, Ranna os ajudou a servir a mesa.
— Aprendi a fazer lahpet. — Sigmund sorriu, feliz com a aula.
— Verdade! Este foi ele quem cozinhou — reiterou Ava.
— Deve estar ótimo! — Ranna beijou sua testa. — Como foi hoje?
— Foi bem. Tive tontura e dor. Acabei pondo a refeição da manhã para fora... estou faminto — explicou Sigmund, servindo-se.
— Presumi que por isto Mi Ava está aqui.
— Sim, mesmo parecendo melhor, preferi monitorar.
— Ouvi alguém, mãe. Disse que os Nats não me ouvirão por serem coniventes, para não confiar em ninguém... foi confuso! Mas, estou melhor e treinarei à tarde para não me atrasar.
Ranna silenciou por alguns instantes, preocupada com a fala.
Ao tomar coragem, quebrou o silêncio:
— Acautele-se. Continuarei em casa. Deixa que cuido da louça.
Ele assentiu, correu para assear-se e foi ao treinamento.
Jagravh já o aguardava no pagode, mas Elil, não estava presente.
— Maung Sigmund, podemos seguir? — cumprimentou Jagravh.
Ele assentiu, empolgado. O treino foi produtivo e, apesar das dores interromperem treinos diariamente, os meses seguintes foram tranquilos. Sigmund aprendera ser parte do normal, então suportou.
A calma do menino atestava o sucesso do rito para Ketu.
Passados seis meses, na refeição da manhã, Ranna anunciou:
— Algum tempo passou e voltarei a ter meus exercícios em casa.
— Posso ficar? — pediu, preocupado. — Não quero atrapalhar, só gostaria de ajudar, fornecê-la conforto.
— Falarei com Maung Jagravh Gyi e você fica comigo na semana. Se não tivermos problemas, peço para ele dividir seu treinamento, metade da manhã com as crianças e metade da tarde com os jovens.
— Avisarei Jagravh Gyi — disse, terminando sua refeição.
Sigmund correu ao pagode, Jagravh já estava presente.
— Jagravh Gyi! — cumprimentou. — Preciso ficar parte da manhã com a mãe, mas chegarei ao fim de seus exercícios.
— Claro! Pode pedir que ela o acompanhe quando vier?
— Sim, senhor — concordou, correndo de volta para casa.
— Não precisava correr! — Ranna repreendeu.
— Comuniquei Jagravh Gyi e ele quer que venha comigo mais tarde. — O menino disse, ofegante. — Desculpa!
— Irei. Cuida da louça enquanto realizo meus preparativos?
Sigmund lidou com o pedido e voltou ao quarto. Na pequena mesa, haviam alguns líquidos coloridos e folhas secas, Ranna os infundia num chá. O cheiro era horrível e a aparência pior!
— Mãe, isto cheira mal! — reclamou, tapando o nariz, enojado.
— O odor é natural. Os primeiros são mais agradáveis, conforme me adapto, as infusões intensificam, adicionando novos e mais fortes venenos... removendo o aspecto diluído — explicou tranquila.
— Isto soa perigoso! — criticou. — M-mas, entendo — mentiu.
— Terminarei a infusão, beberei e, após cinco minutos, deitarei.
— Sim, senhora. Não haverá intervenção minha.
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