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Sigmund tinha conhecimento, mas não tinha experiência prática e Jagish ajudou. Sua inteligência marcial era esplêndida e o mais velho compartilhou tudo o que pôde.
Por quatro longas horas Sigmund se divertiu, sorrindo como uma criança inebriada após um doce bombardear seus sentidos.
— Juntem-se. Usaremos o chi. Venham ao centro, uma dupla por vez. Terão um raio de dez metros, ultrapassar significa punição. Os que não estiverem praticando, ficam ao meu lado. Maung Jagish e Maung Sanjiv formarão uma dupla. Maung Sigmund se ausentará.
— Não posso? — questionou Sigmund, olhando-o, frustrado.
— Crê conseguir lidar, Maung Sigmund? Não me responda. Sente ao meu lado e observe. Ao fim, se quiser, permitirei que tente.
— Se não conseguisse lidar, não teria machucado Maung Tarendra — disse Tarusa, em defesa de seu irmão.
— Não quis machucá-lo. Estava instável e ele veio. Não podia deixar e o jeito de afastar foi aquele. Se fosse você, faria o mesmo.
— Ninguém em sã consciência faria. Quase o matou! Ninguém mata sem querer! Sua íris púrpura é mau presságio, a mãe já disse!
Sigmund franziu o cenho, confuso, foi incapaz de responder.
— Concentrem-se! Não deixe tristeza e rancor falar. Todo ser vivo é um conjunto de cinco aspectos ou khandas: o físico, rupa; as sensações e sentimentos, vedana; a percepção, sanna; as formações mentais, sankhara, e a consciência, vinnana. Não permitam que o desequilíbrio atinja qualquer um deles. Hiresh e Vanhi, assumam!
Os dois seguiram ao centro e Elil sinalizou para começarem.
Impaciente, Vanhi foi o ofensivo, usando o corpo como arma e o chi para potencializar os golpes. Hiresh, adepto de jogos mentais, entrou na defensiva, muito falante. Num embate muito difícil, as palavras de Hiresh venceram.
— Sou bem melhor — provocou Hiresh, como um arlequim.
Hiresh seguiu para perto de Elil e Vanhi, após um suspiro enraivecido, levantou, cumprimentou todos e foi ao lado do mestre.
— Ihit e Tarusa! — anunciou Elil.
Eles seguiram ao centro e, ao sinal de Elil, iniciaram a ofensiva.
Tarusa, emocionalmente instável, iniciou bem. Ihit calculava cada passo, buscando respeitá-lo, evitou todo possível golpe baixo.
Tarusa conseguiu aproveitar-se, mas não demorou para Ihit se adaptar e garantir sua vitória sobre a guarda tão pouco fechada.
Ihit ao fim, cumprimentou Tarusa, estendendo-o a mão para ajudá-lo. Contudo, mexido com a derrota — afinal, era a chance de se mostrar forte —, Tarusa ignorou, voltando para perto de Elil.
Ihit nada disse, cumprimentou a todos e também voltou.
— Utsa e Romir! — anunciou Elil.
Os dois destacaram-se, assumindo o centro.
Romir tinha um ar de superioridade que beirava a prepotência e Utsa, com sua aparência frágil, alimentava sua arrogância.
Elil sinalizou e Romir foi o ofensivo. Utsa, não tinha intenções ofensivas, optando pela defesa, lidando facilmente com Romir.
Ao observar que a prepotência tirava a percepção de Romir, Utsa aproveitou-se e deu fim ao embate rapidamente, rendendo Romir.
— Se rende! — disse, envergonhado, transbordando nervosismo.
— Eu me rendo — assentiu Romir, levantando, surpreso.
Utsa o cumprimentou, cumprimentou todos e tomou seu lugar.
— Sanjiv e Jagish — anunciou Elil.
Ambos cumprimentaram todos, ao chegar ao centro.
Elil sinalizou e os dois assumiram a defensiva. Estudaram-se.
Sanjiv assumiu a ofensiva, enquanto Jagish só contra-atacou.
Eles administravam o chi com excelência, apenas o aplicavam em movimentos vantajosos. Após uma longa hora, o embate foi decidido pelo cansaço e inexperiência de Sanjiv, que se rendeu.
Sigmund se maravilhou. Aquilo era, definitivamente, o que ele queria fazer. Sua alma vibrava enquanto observava. Nos momentos em que fora incapaz de guardar sua excitação, Elil o repreendeu.
— Todos estão evoluindo bem — congratulou Elil. — Antes de tecer comentários... Crê estar pronto para isto, Maung Sigmund?
— Sim! — respondeu, sorrindo, com o olhar sedento.
— Eu vou! — candidatou-se Tarusa.
— Se quer vingança, saiba duas coisas — disse, fitando os olhos de Tarusa. — Primeiro, não o matei... ainda. Segundo, mesmo mais velho, a pouca compreensão mostra o quanto é inferior comparado a mim! — Sigmund sorriu, como um predador exibindo as presas.
— Contenham-se! — repreendeu Elil. — Jagish acompanhará.
Tarusa ficou nitidamente descontente, mas nada disse.
Sigmund cumprimentou Elil e foi ao centro.
— Que sejamos respeitosos — cumprimentou Jagish.
Sigmund retribuiu o cumprimento, sorrindo; fechou os olhos e concentrou-se, expandindo seu chi o mais intensamente possível.
Jagish espantou-se com a quantidade de energia, mas manteve a prontidão. Sigmund, sabendo de sua inexperiência, apostou no que podia fazer de melhor: parecer maior e mais forte do que era.
A excitação o impediu de aguardar o sinal de Elil. Cedendo aos impulsos, correu na direção de Jagish, que entrou na defensiva.
De olhos fechados, seu chi delineava Jagish perfeitamente.
Subitamente, a expansão de energia foi substituída por uma supressão que nem mesmo Jagravh presenciara. Sigmund mirou suas pernas no primeiro ataque buscando derrubá-lo.
Jagish defendeu, porém, a ofensiva seguiu, impedindo Jagish de pensar em contra-atacar — afinal num embate tão intenso qualquer tentativa de contra-ataque teria um poder maior que ele poderia medir e levaria a mais danos do que ele estava disposto a causar.
Sigmund atacou ininterruptamente, até finalmente conseguir derrubar Jagish, mas cessou a ofensiva subitamente.
Finalmente abriu os olhos, vitorioso, fitando os de Jagish.
A energia suprimida expandiu-se como em uma explosão.
Sigmund suspirou, tornando a suprimi-la e sorriu para Jagish, estendendo-o a mão para ajudá-lo a levantar.
— Obrigado, Maung Sigmund. — Jagish sorriu, aceitando a ajuda. — Impressionante! Não esperava menos.
— Quanto a passividade, Sanjiv e Jagish, devem estudar a tênue linha que separa compaixão de covardia. A paciência é uma virtude, mas em excesso é só mais uma transgressão. — Elil disse. — Utsa, a fragilidade e medo de machucar-se, ferirão você e os seus. Aprenda a domar a autopreservação. Tarusa, aprenda a conciliar o que sente e faz, apenas sentir arruinará suas projeções futuras.
Os citados cumprimentaram ambos os mestres e Elil seguiu:
— Ihit, os sensos de honra e justiça são belos, cuide para não se cegar à realidade. Romir e Hiresh, aprendam respeito; palavras podem ser armas, mas deve-se respeitar tudo e todos. Subestimar apenas trará desgraças, como Utsa lidou com Romir. O contrário do que disse a Sanjiv e Jagish, digo a Vanhi e Sigmund, precisam de paciência. Uma postura tão ofensiva soa eficiente, mas não funcionará sempre e a falta de raciocínio ceifará suas vidas.
Elil cumprimentou todos os aprendizes.
— Estão dispensados. Tenham um bom fim de tarde e uma ótima noite. Amanhã os aguardarei. Tarusa, Romir e Hiresh ficam.
Os aprendizes saíram e o trio foi aos troncos, cortá-los.
— U Sigmund! — chamou Sanjiv, enquanto ele voltava para casa.
Sigmund virou, vendo Sanjiv e Jagish caminhando e acenando.
— O que acha de treinar conosco outras vezes? — sugeriu Sanjiv, empolgado. — Foi muito impressionante como lidou com U Jagish.
— Não pude respirar! Não acredito na sua idade — riu Jagish.
— Se os mestres deixarem... eu gostei. — Sigmund riu. — Você é difícil de quebrar, U Jagish! — Ele franziu o cenho, ainda rindo.
Jagish gargalhou e os três voltaram a caminhar.
— Como mantém o chi intenso assim? — arguiu Sanjiv.
Sigmund não pôde responder, caindo desacordado. Jagish amparou sua queda, verificou seu pulso e atestou sua vida.
— Levarei ele e você chama Sayama Ava Gyi? — sugeriu Jagish.
— Chamarei — consentiu Sanjiv, correndo rumo à casa de Ava.
Jagish entrou à casa de Sigmund. Rapidamente, o deitou na sala. Concentrou-se, tentando identificar o que ocorrera. Sentiu fadiga, distensões musculares e o princípio de uma febre.
Correu para buscar porrões vazios, encheu um com água gelada e começou a esquentar água para pôr em outro.
Ava chegou às pressas com Sanjiv. Foi até Sigmund e logo Jagish retornou com o porrão cheio com água quente e tecidos limpos.
— Sayama Ava Gyi, trouxe água gelada e quente, panos limpos. Não sei como ajudar, mas está muito cansado, alguns músculos estão machucados e terá febre — reportou Jagish, preocupado.
— Obrigada, Maung Jagish, executou um ótimo trabalho!
Jagish juntou-se a Sanjiv e eles ficaram num canto, apreensivos.
Ava sentou para pôr a mão no peito de Sigmund e observar seu corpo. Jagish fora preciso, poucas fraturas passaram despercebidas. Ela começou a tratar as piores mazelas — trabalho lento e cansativo.
Quando o último raio de sol se escondeu sobre a face da lua, Ranna chegou. Ficou apreensiva ao ver Sigmund desacordado e Ava.
— Sayama Ava, está tudo bem? — perguntou Ranna.
— U Sigmund desmaiou na volta — disse Sanjiv, levantando e cumprimentando Ranna. — Parece fadiga... muito esforço.
— Perdão! — disse Jagish, cumprimentando-a, formalmente. — Não fui enérgico temendo machucá-lo, mas seu esforço machucou igualmente. Refletirei com mais atenção para não repetir esse erro!
— Ele está bem! — Ava sorriu, terminando. — Tratei o mais grave. Não entendo como algumas feridas ocorreram, mas ele ficará bem. Mi Ranna Gyi, estava preparando refeições, posso trazer-lhe?
— Agradeço. Estou cansada, tanto tempo sem realizar minhas atividades, cotidianamente, desacostumou meu corpo e mente.
— Voltarei logo. Rapazes, podem voltem para casa, ele está bem.
— Os rapazes não são mais velhos? Não deveriam estar em treinamentos diferentes? — perguntou Ranna, olhando-os.
— U Sigmund pediu para treinar conosco — explicou Sanjiv. — Eu até o chamei para vir mais vezes — disse, culpado.
— Entendo. Retornem às suas casas, falarei com Saya Elil Gyi e talvez Maung Sigmund volte a treinar com vocês... Boa noite!
Os rapazes cumprimentaram ambas e saíram. Ranna foi ao banho, deixando água morna para o menino se banhar.
Terminando de se arrumar, ouviu Ava bater na porta.
— Pode entrar, minha irmã — disse Ranna, ainda do quarto.
— Trouxe a refeição! Quer que eu desperte Maung Sigmund?
— Por favor, Mi Ava, seu banho está quase pronto.
Ava deixou a refeição na cozinha e foi até Sigmund.
Descansou a mão sobre seu peito e usou do chi para despertá-lo.
Mesmo com a calma de Ava, Sigmund despertou assustado.
— Se acalme, maung — disse, doce. — Sou eu.
— Não, Senhora. Perdão... — Sigmund estava ofegante, perdido. — O que houve? — perguntou, olhando ao redor. — Fiz algo errado?
— Não, desmaiou, o corpo estava castigado. O que aconteceu?
— Não sei, U Ava. Eu estava bem. Treinei de manhã, almocei e decidi treinar de tarde. Voltando, eu estava com U Sanjiv e U Jagish... Eles estão bem, machuquei eles? — Preocupou-se.
— Não, não machucou. O que o faz pensar isso?
— Não sei, machuquei U Tarendra. Poderia ter acontecido hoje.
— Não se preocupe, não machucou ninguém. Apenas desmaiou.
Sigmund foi ao banheiro. Cumprimentou Ranna com uma flexão e, ao fim do banho, voltou à sala, onde Ranna o aguardava.
— Como se sente? — perguntou Ranna, convidando-o a sentar.
Sigmund procurou Ava, não a encontrando, sentou e respondeu:
— Bem, Ranna. Como foi... morrer hoje?
— Se fala dos exercícios, tudo correu bem, filho meu. O dever cresceu, mas consigo lidar. Como foi o treinamento?
— Bom, aprendi que gosto do lethwei. Treinar à tarde foi divertido. Na luva com U Jagish, ele ficou na defensiva! — sorriu.
— Por isso o chi tão intenso por tanto tempo? — Ranna riu.
— Ele é muito experiente. Não tinha como competir sem usar as armas que tenho sabiamente. Deu certo! — comemorou.
O silêncio predominou. Sigmund cuidou da louça e Ranna se recolheu. Ao fim, ele deitou na sala, dormindo por três horas.
***
Era madrugada alta, quando ele acordou. Juntou frutas numa travessa. Fez uma fogueira no lado de fora, as assou e pôs na travessa. Limpou a fogueira e, ao entrar, Ranna estava sentada na cama.
— Já acordado? — indagou, passando por ele e beijando-o na testa. — Não deveria ter descansado mais?
— Bom dia, mãe. Assei frutas, elas ficam gostosas assim — respondeu, acanhado, apontando para a travessa.
— Quando aprendeu isso? — Ela riu, surpresa.
— Ontem. As refeições vão ao fogo. Sem altura para o fogareiro, tentei com a fogueira. Pensei que gostaria de experimentar.
— Adorarei!
Ambos sentaram à sala. Sigmund novamente corou ao comer.
— Posso treinar, Ranna? — pediu, preocupado com a negativa.
— Antes de ir ao monastério, o acompanharei ao pagode.
— Poderei treinar à tarde?
— Conversarei com Ko Elil e veremos.
— Sim, senhora. Eu já terminei de comer, vou me banhar.
Rapidamente, ele se banhou. Ranna usou de calma, tornando a espera tortuosa para o menino, que se sentia um réu de frente a corte tendenciosa a condená-lo.
— Vamos, Maung Sigmund? O céu púrpuro propicia que os encontremos chegando. — A mãe chamou ao terminar de se arrumar.
Prontamente, ele assentiu e ambos saíram. O trânsito dos monges na escadaria já começara. Chegando, Elil e Jagravh estavam praticando entre si, mas cessaram para cumprimentá-los.
— Saya Elil Gyi! Maung Jagravh Gyi! — cumprimentou Ranna.
— A que devemos vossa presença, Ranna Gyi? — perguntou Jagravh, preocupado. — Maung Sigmund parece bem.
— Ele está bem, teve um problema ontem. Imagino que saibam!
— Ontem transgrediu, mas foi conscientemente — justificou Elil. — Apesar de não ser saudável, permiti, afinal se não fosse daquela forma, poderia ser mais perigoso para ele e os outros.
— Entendi. Será assim sempre? Seu corpo pode não suportar!
— Igual ao seu Ranna? — arguiu Sigmund, fitando seus olhos.
Extrema irascibilidade penetrou suas veias, arrepiando-o.
— Como é? Ver quem ama desperdiçando saúde... É importante! Em caso de ataque, todos lutarão, indistintamente. Contudo, preciso desgastar minha saúde sob pretexto de gostar? — questionou.
Sigmund sorriu, sarcástico. O tom rubro tomou parte da íris.
— Como defino tal transgressão? Orgulho? Prepotência? Egoísmo? Não sei, Ranna. Você, habituada, pode dizer como chama?
Jagravh, ultrajado, puniu o menino com um tapa em sua face.
— Seu temperamento é difícil, mas não lhe dá direito de desrespeitar Ranna Gyi! — repreendeu, com firmeza em sua voz.
Os olhos de Sigmund foram tomados pelo escarlate e seu chi explodiu em agressividade. A irascibilidade em suas veias o inundou.
Seu corpo começou a tremer como um vulcão em erupção e o ar parou de fluir por suas vias aéreas. A consciência de Sigmund oscilou.
— Maung Sigmund! — chamou Ranna, sentindo sua alteração.
Incapaz de raciocinar, ele só associou Jagravh a um inimigo. Seu corpo seguiu, movido pelo desejo de vê-lo afogando-se no próprio sangue, que enchia sua boca d'água.
Jagravh não teve dificuldades em imobilizá-lo, mas o menino seguiu tentando atacá-lo, deslocando os ombros na falha tentativa.
Vociferar. Gritar. Era a única forma de desafogar seus pulmões.
Ranna continuou chamando-lhe, mas ele não podia ouvi-la.
Elil, preocupado, entoou seus mantras, afinal ainda não havia visto uma criança hostil a ponto de esquecer-se da autopreservação.
"O que acontece?", ecoou a voz de Ketu no íntimo dos três.
"Maung Sigmund está fora de si. Ko Elil Gyi recita os mantras e Ranna Gyi não entende o que ocorre, mas tenta chamá-lo. Não sei o que há, mas este não é Maung Sigmund.", respondeu Jagravh.
"Tragam-no!", ordenou Ketu.
— Narasemha navadaso OM! — recitou Elil, cessando o movimento do menino. — Fique, o levo. Ranna Gyi me acompanha?
— C-claro! — confirmou Ranna, aturdida.
Elil foi às costas de Sigmund e o pegou pela cintura. Irascível, irracional, tentou hostilizar todos que viu, ao deixar o pagode.
Quem observava a cena, recitava o primeiro mantra de proteção e expurgo do mal que vinha a mente. Os aldeões contornavam ambos, apavorados pelos perturbadores gritos agudos emitidos pelo menino.
No monastério, os monges trajavam suas vestes cerimoniais, seus japamalas e incensos e recitando um mantra em uníssono.
Elil foi até Ketu, o cumprimentou e deixou Sigmund deitado no centro do salão, imediatamente a frente do grão-mestre.
Ranna ficou na entrada do salão, aturdida, aos prantos.
— Ele ficará bem, Sayadaw Ketu? — arguiu por entre soluços.
— Se eu puder alcançá-lo, sim, ele ficará bem!
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