α
— Lembro da primeira vez que senti isto! — gritou Sigmund, interrompendo o treinamento matinal.
Sigmund era um prodígio de uma vila nas montanhas Aakash, em Burma. Sua pele amarelo-acastanhada não diferia; os cabelos o diferia dos meninos, sinal da rebeldia e resistência para cortá-los e os olhos púrpuros eram exóticos, jamais avistados pelos locais.
Uma linha energética envolvia suas íris dada sua instabilidade.
O corpo trêmulo, explodindo em energia revolta, estava irado.
"O caminho do meio...", os monges sempre diziam, mas naquele momento, o garoto simplesmente odiava aquela frase.
— Maung Sigmund, precisa me dizer o que sente — disse Jagravh, jovem mestre marcial, gesticulando para os aprendizes, aturdidos pelo súbito caos, deixarem o pagode.
Eles saíram, confusos com o porquê da intensidade.
— Minha mãe! — disse Sigmund, pondo a mão no peito, que doía como se um bisturi, manipulado por um sádico, o atravessasse.
Jagravh se aproximou, pôs a mão em seu peito e sentiu o coração acelerado em meio a hiperventilação que extenuava seus pulmões pequenos. As veias levemente saltadas exprimiam sua tensão.
— Deixe-me ajudá-lo — disse o mestre, convidando-o a sentar.
— Não... quero... sentar! — gritou, por entre gemidos da dor que intensificava, bombeada por seu coração para o resto do corpo.
Sigmund começou a caminhar devagar, embriagado, apertando seu sanghati. Um estalo atingiu sua cabeça, derrubando-o.
Ele fechou os olhos, concentrando-se, tentando alcançar sua mãe e sentiu a linha de sua vida esticada, tênue, prestes a arrebentar.
Lágrimas transbordaram do púrpuro olhar. Aplicando muito mais força, seu corpo bailou em meio a torrencial energética.
— Se continuar, se ferirá, Maung Sigmund — alertou Jagravh, aproximando-se e pondo a mão em seu ombro.
— Me solta! Vou vê-la... trazê-la de volta... ainda... posso... salvá-la — insistiu o menino, ignorando-o e deixando o pagode.
— Se o mestre quiser, seguramos U Sigmund — sugeriram alguns aprendizes, olhando para o menino, apreensivos.
— Encostem em mim e mato vocês! — hostilizou — Não suponham que ser o mais novo significa ser estúpido. Sei matar!
— Está nervoso e irascível sem necessidade. É o mais jovem e, apesar da pouca idade, se desenvolveu como não vemos desde o grão-mestre. Use da sabedoria que parece ter e não faça pouco das vidas ao seu redor — instruiu Jagravh, paciente. — Entenda: este é o dever de tua mãe. Acalme-se e volte ao treinamento. — Voltou a pedir.
Sigmund, de apenas três anos — que já crescera mais que alguns dos meninos que não treinavam —, olhou enojado para Jagravh, amaldiçoando-o em silêncio. Deu as costas e saiu.
O mestre voltou com os outros aprendizes para seguir as lições.
"Está... ela... morrendo de novo!", o menino pensava, aflito, enquanto seguia o mais rápido possível, ofegante, à casa de rubros tijolos, que não estava longe, mas pareceu do outro lado do mundo.
— Mãe, vim ajudar! — gritou, entrando em casa abruptamente.
A cama da casa ficava de frente a entrada, na alcova sem porta, após a pequena sala que também era quarto para Sigmund.
Ele cruzou o aposento e chegou a frente de Ranna, na cama.
"Mãe, acorda... Precisa acordar!", implorou, sentando ao lado da cama e olhando-a. "Não deixarei que morra!", jurou, se concentrando na energia que era incapaz de conter, acariciando o negro cabelo.
— Se estiver cansada, ajudo... Só acorda — disse, descendo a mão ao rosto de Ranna, acariciando-a, transfundindo sua energia;
Enquanto concentrado, Sigmund sentiu alguém entrar na casa.
Não tardou para notar o velho monge Elil, mestre mais velho, um homem de pele amarelo-acastanhada, castigada pelo sol, aparência adulta e alguns fios da barba brancos — únicos que evidenciavam sua idade, afinal, ostentava muita saúde e vigor.
— Sinto... se quer me impedir, o desrespeitarei — ameaçou, deixando os caninos saltados aparentes ao trincar os dentes.
— Maung Sigmund, se quer salvá-la, faça. Ela não precisa, já pratica o mitridatismo há anos e, graças a isso, salvamos vidas! — disse Elil, evidenciando passividade por sua energia. — Alguém tão novo não deveria ter tanta raiva, um chi tão revolto é nocivo.
— Minha mãe tomar veneno também, mas ninguém se importa. Por que se incomoda com energia agressiva, quando essa reflete minha natureza e atual estado? — retrucou, terminando o que fazia.
O retorno da alma de Ranna ao corpo causou imediato alívio no menino e, rapidamente, surgiram os primeiros sinais de consciência.
— Buscarei água. Com licença, U Elil.
— Deveria respeitar os mais velhos, Maung Sigmund! — Ranna repreendeu com os olhos fechados e voz arrastada, cansada. — Não se refira a Ko Elil como se refere aos seus colegas de treinamento.
— Por quê!? Ele não merece respeito! Não tenho colegas e sou pior com eles! — retrucou, mas parou e se virou. — Perdão, mãe! — arfou com a voz mansa, se flexionando. — Não quis hostilizá-la.
— Raiva e revolta o guiarão a machucar tudo. Venha ao monastério, ajudaremos. — Elil disse, sentando próximo a Ranna.
— Não o convidamos a sentar, vai embora! — insistiu o menino, olhando sobre os ombros. — Não tenho o que fazer no monastério, ou com vocês, enquanto acharem normal eu sentir minha mãe morrer!
— Quando crescer, entenderá o dever que faço de coração. O mitridatismo mudou como lidamos com peçonhas, nos permitiu salvar os nossos — disse Ranna, recebendo ajuda de Elil para sentar.
— Não toque! — O menino gritou, entrando no quarto.
Sua energia expandiu, como se tentasse parecer maior.
— Maung Sigmund, acalme-se! — pediu Ranna, autoritária. — Se continuar, passará dos limites. Desculpe-se com Ko Elil e volte ao treinamento, senão vamos ao monastério. Quer queira, quer não!
— Desculpo-me com a senhora. Não com ele, quero que morra!
Ranna nada disse, levantou e seguiu para fora de casa.
— Mãe, descanse, quase morreu. Deite, eu ajudo... Peço para U Ava ajudar com algo, a senhora come e descansa — pediu, seguindo-a.
Ranna seguiu quieta, sem olhá-lo. Observou o pagode, onde Jagravh treinava os meninos, observou as casas, respirando fundo.
Era um dia belo, ensolarado.
Nuvens negras, carregadas com chuva, caminhavam ao longe.
Uma extensa escadaria ligava a vila ao monastério.
Sigmund insistia em convencê-la a voltar e descansar.
— Maung Sigmund — disse Ranna, calma, fazendo-o calar-se —, como devemos subir ao monastério?
— Os homens sobem os degraus masculinos e as mulheres, os femininos, meditando sobre as regras individuais que cada degrau representa, para jamais deixarmos de trilhar o correto caminho — respondeu, como se recitasse uma receita.
— O que faz agora, filho meu? — Ranna parou e o olhou.
Sigmund parou e olhou onde estava pisando.
Ao perceber seguir a trilha feminina, deu um passo ao lado.
— Descerá e subirá de novo pela trilha masculina, se atendo às reflexões — instruiu, paciente —, aguardarei aqui, compreendeu?
— Sim, senhora! — assentiu, descendo.
O menino subiu, fazendo breves pausas, ignorando quaisquer reflexões. Quando a alcançou, Ranna retomou a palavra:
— Ótimo, agora seguimos em silêncio para eu poder refletir. Paz e calma devem reinar no monastério, pode ajudar, filho meu?
— Sim, senhora — concordou passivamente.
— Então, suprima esta energia e agressividade, afinal não é assim que devemos entrar no monastério. Consegue fazê-lo?
Sigmund assentiu e após vinte minutos, concentrado, conseguiu suprimir a energia que transbordava de seu pequeno corpo.
Ranna voltou a caminhar, devagar. Chegando, alguns monges que cuidavam da manutenção a cumprimentaram. A mãe retribuiu o cumprimento e tomou a palavra:
— Gostaria de encontrar Sayadaw Ketu, meus irmãos.
— Claro, irmã. Acompanhe-me — voluntariou-se um deles.
— Veremos U Ketu? — indagou Sigmund, franzindo o cenho.
— Sim, Maung Sigmund. — Ranna estendeu-lhe a mão.
O menino nutria um intenso amor e respeito, impossibilitado de ignorá-la — mesmo com o corpo gritando para fazê-lo —, ele foi recíproco e tomou sua mão. Ranna sorriu e seguiu, falando:
— Há três anos, você nasceu. Foi um milagre, como sabe, o corpo de sua mãe é diferente. Apesar de meu sangue ser cura para muitos, meu interior não é o ideal para gerir um indivíduo saudável.
— Não estou doente, nasci saudável!
— Não, filho meu. Esses surtos não são naturais e podem indicar algo ruim. Por isso, sou cautelosa e cuidadosa, levando-o a alguém mais sábio para sabermos como ajudá-lo — disse Ranna.
Com tristeza tomando seu semblante, a mãe seguiu:
— Quero que cresça forte, saudável; que sua evolução se preserve e evolua mais, adquira mais sabedoria. Olho-te e vejo quanto já trilhou a estrada da iluminação, confundo-me se terminou ou está perto. Raiva apenas o prejudicará e isso me entristece.
— Não tenho problemas com raiva — disse, abaixando a cabeça, tocado por sua tristeza. — Estou bem, U Ketu não precisa fazer nada.
— Sayadaw Ketu, meu filho, respeite nossa maior autoridade.
Sigmund calou e seguiu com Ranna até o salão de meditação no centro do monastério onde Ketu estava sentado, meditando.
Seu guia se aproximou de Ketu e o cumprimentou com meia flexão. Passados silenciosos cinco minutos, o monge retirou-se.
— Mi Ranna! — Ketu sorriu, gentil, mantendo os olhos fechados e a posição de lótus. — Observo que Maung Sigmund a acompanha.
Ketu tinha aparência adulta, apesar de ser o monge mais velho.
— Sayadaw Ketu, perdoe atrapalhar sua meditação, mas busco ajuda. Temo que Maung Sigmund sofra, se negligenciar estes maus sinais. — Apesar de tentar guardá-las, as lágrimas foram inevitáveis.
— Deixe-o. Conversaremos e o retornarei. — Ketu gesticulou. — Junte-se, Maung Sigmund, peço algo para comermos e bebermos.
— Não quero nada do senhor — retrucou, desconfiado.
Ranna parou para repreender, mas ao virar-se, viu Ketu gesticulando para partir e ela o fez.
— Se nada quer, por que se aproxima?
— Se não o fizer, ela ficará triste. Não quero isso.
— Soube dos problemas durante o treinamento, gostaria de me contar o que aconteceu? — Ketu gesticulou para o menino sentar.
— Senti a mãe morrendo. Como antes, a mesma agonia, dor, inquietude. Foi forte — narrou, com lágrimas nos olhos, sentando. — O corpo doeu... coração... estalo na cabeça... Foi tortuoso... triste!
— É a segunda vez que Ranna Gyi retorna às atividades desde seu nascimento. Na primeira, era muito pequeno para lembrar-se.
— Não o suficiente — interrompeu. — Lembro! A tristeza... não poder falar ou me aproximar... inútil, num corpo muito pequeno!
— Agitou-se! — riu. — Nunca sentimos um chi tão jovem. Ficamos surpresos, felizes, preocupados... Mi Ranna cessou suas atividades, aguardou sua independência para retomá-las e, ao fazê-lo, lidamos com sua intensidade de novo. É saudável, seguro.
— Por que ela morre? Por que senti ela morrer e, ao ajudar, a senti voltando ao corpo? Como é saudável? Compreendo que a morte não é o fim, mas não compreendo como morrer é saudável!
— É incapaz de lidar com os estímulos que recebe e responde agressivamente. Isto é errado. Entender a estrada entre vida e morte é parte intrínseca da evolução mental, física e espiritual. Pouco se mantém sob o manto da ignorância, conforme se aproxima de Bodhi.
— Eu te odeio! — exclamou, insatisfeito com a resposta.
— Pois, eu não lhe odeio. O púrpuro olhar que busca o meu não é o do menino que vi nascer. Feche-os, respire fundo, busque estabilidade, o centro, a trilha que não leva ao bem, tampouco ao mal.
— Não preciso de lições idiotas sobre Bodhi, U Ketu. Posso ir?
— Está livre para ir. Cuide-se, Maung Sigmund.
Sigmund silenciou e saiu, suspirando, tentando lidar com sua raiva e tristeza. Pouco entendia sobre o que lhe ocorria e os sentimentos pulsavam em seu íntimo, incomodando-o imensamente.
Guardá-los não seria suportável e sua sabedoria, sentindo tragicidade, o suplicava para não tentar, pois, seria veneno na alma.
Na entrada, Ranna estava sentada, recostada numa árvore, bebendo chá. Vendo-a, Sigmund suspirou, abriu um sorriso, parecendo dócil, bem diferente do semblante em sua chegada.
Ranna suspirou, incapaz de omitir o alívio de vê-lo calmo.
"Desta vez, a farei sorrir. Na próxima, não pressiono, não guardo!", pensou, sentindo o amargo sabor da supressão de suas emoções.
— Maung Sigmund, como está? Parece melhor. Como foi?
— Foi bem, mãe. Estou calmo. Desculpa ficar estressado, só não quero perdê-la! — respondeu, contendo as lágrimas em seus olhos. — Como ficarei... se a senhora partir? Será meu fim. Serei condenado!
— Sua força é, provavelmente, maior que a minha. Não teria dificuldades para assumir meu lugar, seguindo com o dever de nossa linhagem. — Ranna sorriu, o afagando. — Sente-se e tome chá!
Sigmund a acompanhou no chá, abnegando em seu íntimo quaisquer possibilidades de tornar-se instrumento dos monges, assumindo seu lugar no que cria ser uma não-sandice.
Terminado o chá, devolveram as xícaras e rumaram a sua casa.
— Como não posso voltar a treinar, auxiliarei com a lenha e pedirei a U Ava para ajudar com nossa refeição.
— Sayama Ava, filho meu — corrigiu Ranna.
— Não entendo a diferença, mãe. Não é por mal, eu juro!
— U é informal e não a reflete. Como mulher e autoridade, use Sayama. Com nosso grão-mestre, use o Sayadaw. Com Saya Elil Gyi, o Saya reflete sua importância como mestre e o Gyi reflete respeito.
— Sim, mas somos familiares, não preciso dessas coisas complexas. Somos iguais com as mesmas capacidades e potencial. A diferenciação deve ter sido fator determinante para os problemas do todo, continuar com isso é um óbvio sinônimo de retrocesso.
— Só será quando nos perdemos e nos guiarmos por algo tão simples, desejando-o. Preservar a cultura é importante enquanto se evolui, pois, significa suceder na conciliação das necessidades como ser espiritual e material. É difícil, mas essas nomenclaturas foram criadas junto às regras para manutenir a ordem — instruiu Ranna.
— Se buscamos unidade com a existência e essa entende a ordem em meio a selvageria do todo, mais uma medida de ordem apenas dificulta, confunde e afasta da evolução. Causa diferenciação e, a longo prazo, não nos veremos como iguais... nos mataremos por uma ignorância plantada por nós! — exclamou, franzindo o cenho.
— Vivemos em sociedade. Há um eterno caminho em busca da unidade com o todo. Novos indivíduos são introduzidos a todo momento. A ordem superior, que foge de nosso controle, pode reger a vida de uma pessoa, contanto que não conviva com outras.
O menino ainda manteve a atenção na mãe.
— Após a sociedade, nosso objetivo se tornou ser donos de nós, o que não é condenável. Isso nos trará dilemas e construirá nosso caráter. Se formos corretos, conseguiremos o almejado e mais! Senão, dor e castigo virão, afinal, não se desvirtua sem ferir ninguém.
Em casa, Sigmund seguiu com Ranna ao quarto e ela deu continuidade ao seu discurso — pouco motivador para ele:
— Viver em sociedade não anula a individualidade. Uma medida de ordem é um meio de lidar com diferenças, possibilita o diálogo, mesmo em tensões. Poda-se a ignorância aplicando nossa cultura com responsabilidade recíproca. Como um organismo vivo, cada um com seu dever, compromete-se com essa e as próximas gerações.
— Entendo. — Discordou em silêncio, mas se limitou a assentir. — Volto logo, vou até U- Saya Ava. — Sigmund a cumprimentou após deitá-la. — Precisa descansar! Não quero senti-la morrendo!
— Sayama Ava, pequeno — Ranna corrigiu, rindo.
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