Capítulo XXVII
Assim que chegamos ao curso d'água, me sentei no chão com cuidado para não acordar a menina que dormia tranquilamente em meus braços. Só então tive tempo para observá-la de verdade, e percebi que era muito bonita.
Imagino que a Ayla era assim quando pequena.
— Ela parece uma boneca. - disse encantado analisando os detalhes de seu rosto. - Qual o nome dela?
— Eva. - Ayla respondeu - Provavelmente, era filha do fazendeiro, não de um escravo.
— Como sabe?
— Sua pele é mais clara. - sorriu levemente ao se aproximar da água - Mas, ela é linda mesmo.
Vi a Ayla retirar o casaco de suas costas e, logo em seguida, rasgar a manga de sua camisa que ainda estava inteira, umedecendo o tecido e depois usando-o para limpar o sangue em seu rosto.
A chibatada, por pouco, não atingiu seu olho direito, mesmo assim o corte se estendeu do alto de sua bochecha até perto de seu maxilar. Não ia demorar muito para cicatrizar, mas acho difícil que a marca saia de seu rosto algum dia.
— Que foi? - Ayla perguntou ao me olhar rapidamente - Parece distante.
— Me desculpe, não sei o que estava pensando quando decidi te trazer junto comigo. - sorri cinicamente - Por minha causa você passou por tudo aquilo e ainda vai ficar com o rosto marcado pro resto da vida.
— Pense pelo lado bom, pelo menos livramos a Eva de passar pelo que passei nesses últimos anos.
— Como consegue? - perguntei com dúvida.
— O que?
— Viver o que viveu, passar o que passou e ainda ter força para se arriscar em prol de outras pessoas?
— Não podem tirar mais nada de mim. - deu de ombros - Sem contar que só os escravos sabem o que é ser escravizado. - sorriu de leve olhando para a água - Meu pai me criou para proteger os meus!
— Quem era seu pai? - ela respirou fundo.
— Um dos poucos a quem tive a honra de me curvar. - disse se levantando - Tem alguma idéia do que vai fazer com a Eva depois de me deixar em minha terra natal?
Pensei em perguntar mais sobre seu pai, mas perdi toda a concentração quando ela mudou de assunto.
Desde o dia que embarcamos juntos, tenho evitado pensar na promessa que fiz. Não me incomodo nenhum pouco de deixá-la no lugar de onde ninguém deveria tê-la tirado, mas meu coração ainda não está preparado pra vê-la partir.
— Digamos que ainda não tive tempo pra pensar nisso. - me limitei a dizer.
— Já que tocamos neste assunto, sabe quanto tempo vai levar para chegarmos lá? - se sentou ao meu lado.
Ela realmente não quer ficar comigo.
— Se seguirmos a rota na velocidade que temos mantido, talvez mais 15 dias, no máximo.
Eu estava sem jeito porque a Ayla, nitidamente, não tinha planos de continuar comigo enquanto eu daria tudo pra seguirmos viagem juntos.
A Eva acordou e acabamos mudando o rumo da conversa para aliviar um pouco a tensão.
— Boa tarde, dorminhoca. - brinquei quando ela abriu os olhinhos pesados.
Um pouco confusa, ela esfregou os olhos e analisou ao redor parecendo procurar algo que sua mente reconhecesse.
— Vai demorar muito pra chegarmos? - Ayla perguntou.
— Não estamos longe do porto, mas não é seguro ficarmos sem a tripulação. O Jones vai aparecer por lá, então é melhor procurarmos um lugar pra ficar até o entardecer.
— Acha que algum fazendeiro pode nos dar abrigo?
— Bem improvável, vocês duas estão sem correntes.
— Podemos ficar na mata. - Eva sugeriu ao se sentar ainda em meu colo - Aqui não tem animais grandes, como onças.
— Como sabe disso? - perguntei.
— Alguns escravos do Sr.Jones estavam com planos de fugir e acabaram falando isso quando estavam traçando uma rota de fuga.
— Não sei se seria uma boa ideia. - falei depois de pensar um pouco - Não sei o que fazer caso alguém seja picado por cobras, aranhas ou escorpiões.
— Eu sei. - Ayla disse me surpreendendo - Só temos que ficar mais atentos durante a noite.
— O que acha, Eva? - perguntei e ela virou a cabeça para me olhar.
— Por mim, tudo bem. - deu de ombros - Não vai ser a primeira vez que durmo na terra.
Andamos por um bom tempo procurando um lugar que não parecesse tão perigoso e, depois de achar, acendi uma fogueira para tentar manter a mim e a Eva mais aquecidos, já que a Ayla pediu minha faca emprestada e sumiu no meio da mata mesmo já tendo anoitecido.
Acredite, eu tentei impedi-la.
— Depois que chegarmos no porto, para onde vamos?
— Meu navio. - suspirei - Depois seguiremos viagem.
— Você é um pirata?- perguntou com os olhos brilhando e acabei sorrindo por sua animação.
— Na verdade, eu sou navegante. - expliquei - Meu trabalho é entregar mercadorias.
— O que você entregou para o Sr.Jones?
— Minha relação com o Jones não era comercial, eu já me relacionei com a filha dele há um tempo atrás.
— E por que não estão mais juntos?
— Ela... - tentei amenizar a história - Descumpriu uma promessa.
— Só por isso?
— Você sempre faz muitas perguntas assim? - rebati.
— Minha mãe disse que minhas perguntas me deixam mais inteligente.
— Bom, sua mãe estava certa. - escutei o barulho de algumas folhas secas serem quebradas e fiquei alerta, colocando Eva atrás de mim.
— Quem tá com fome? - Ayla perguntou ofegante com as mãos cheias de peixes.
— Como você...
— Eu tinha uma vida antes de ser escrava. - sorriu ao devolver minha faca - E os ensinamentos que recebi estão sendo muito úteis.
Muitas dúvidas rondavam minha mente, mas todas foram completamente esquecidas quando ouvi meu estômago roncar.
Não fiz nenhuma cerimônia e, de imediato, usei a fogueira para assar os peixes.
Quando terminamos de comer, estava fazendo muito mais frio que antes, então Eva e Ayla foram dormir para tentar se aquecer. Elas até pediram para eu ficar com o casaco, já que ficaria de vigia, mas neguei.
Depois de, mais ou menos, uma hora escorado naquela árvore, vi a Ayla se levantar de onde estava deitada.
— Que houve? - perguntei.
— Não dá pra dormir com essa sua bateção de dentes. - disse de um jeito descontraído.
— Desculpa. - falei me encolhendo para tentar me aquecer - O que está fazendo?
Com cuidado, Ayla pegou Eva no colo juntamente com o casaco que havia lhe dado mais cedo e veio caminhando em minha direção.
— Aquecendo você. - disse se sentando no chão, de costas, entre minhas pernas - Vai acabar ficando doente desse jeito.
Ayla se alinhou ao meu colo com uma facilidade inacreditável, parecendo ter a medida perfeita para mim. Ela apertou a Eva em seu colo, deu um jeito de cobrir nós três com o casaco e escorou a cabeça em meu peito.
Confesso que fiquei tão surpreso pelo ato que permaneci imóvel nos primeiros segundos, mas depois de voltar para a realidade, abracei seu corpo e escorei minha cabeça em seu cabelo.
Pouco antes de adormecer, Ayla segurou minha mão. Meu sorriso foi tão involuntário quando meu ato de entrelaçar nossos dedos.
A luz do fogo me permitiu observar aquela cena e gravá-la em minha mente. Acariciando o dorso de sua mão, me permiti sentir o prazer de estar tão próximo delas, pelas duas estarem ali, em meus braços.
É irônico pensar que um navegante como eu, que só tem olhos para o mar, lutou em diversas batalhas e viajou o mundo todo, se encontra rendido por uma mulher que conheceu há um mês e por uma garotinha que entrou em sua vida a menos de 24 horas.
Mais irônico ainda é pensar que elas podem estar se tornando meu porto seguro.
*Relevem os erros, por favor.*
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