Capítulo 4 - Esquizofrenia
Capítulo 4 – Esquizofrenia
Abri os olhos com medo do que encontraria. Será que estaria toda deformada e ensanguentada no quintal de um desconhecido? O que vi, entretanto, foi um tanto quanto anticlimático. Estava deitada no meu quarto do hospital.
Eu tive o sonho mais realista e surreal do mundo inteiro!
Havia sentido a grama em meus pés, o vento em meus cabelos e a pele dele se rompendo com a força dos meus dentes... Um pouco de bile subiu pela minha garganta e eu quase vomitei. Que nojo! O meu paladar estava saturando pelo gosto de sangue. Talvez eu tivesse mordido a lateral da minha bochecha durante o sono.
A técnica de enfermagem entrou sorridente no quarto, ela parou por um segundo quando me viu, mas logo se recuperou e administrou os remédios em minha veia através do acesso no soro. Queria fazer uma pergunta, porém hesitei. Eu tinha voz ainda ou apenas grunhidos sairiam da minha garganta? Os dedos estavam normais, mexi meus pés embaixo do lençol, tudo certo.
— O médico vem de que horas? — Apesar do receio, a minha voz soou normal.
— Ele já chegou ao hospital, não deve demorar muito. — A mulher me respondeu com o cenho franzido e me deu um sorriso amarelo antes de sair.
Eu ia pular da cama para ver o que causou a estranheza quando papai mandou uma mensagem avisando que chegaria em quinze minutos. Enquanto zapeei o telefone com uma mão, chequei se meus dentes permaneciam normais com a outra. O sonho estava me deixando maluca!
— Senhorita Sorrentino — o médico amigo da minha mãe entrou com uma expressão de vovô bonzinho em manhã de natal —, tenho ótimas notícias! Sua saúde nunca esteve melhor.
Escolha curiosa de palavras. Para alguém que quase perdeu a vida para uma doença, "nunca esteve melhor" era relativo.
— O que eu tive?
— Estresse. — Ele verificou os papéis que levava em mãos. — O resultado de sua ressonância mostra que o tumor desapareceu por completo.
Meu coração se encheu de esperança para uma vida melhor sem a sombra do câncer pairando em meu inconsciente. Houve a remissão do tumor até um tamanho que era considerado seguro quando eu era criança. Não queriam operar a minha cabeça a menos que ele voltasse a crescer, mas sumir do nada... Nunca achei que fosse possível.
— E o desmaio? Será que foi por causa do sumiço do tumor? — questionei.
— Acho pouco provável, mas quem sabe? Seu caso é bem peculiar. — Ele começou a anotar em um dos papéis. — Vou prescrever vitaminas e mais alguns exames. Também passarei um atestado de uma semana, quero que faça os exames o mais rápido possível e os leve ao meu consultório, ok?
Sorri, ele me conhecia o suficiente para saber que eu usaria a universidade como desculpa para adiar os exames que eu odiava fazer.
— Ok — disse, simplesmente.
— Alguém vem te buscar? — O doutor perguntou antes de sair.
— Meu pai está chegando.
Ele piscou um olho e disse:
— Ótimo, dá tempo de você tomar um banho antes de ir.
Banho? Agarrei o celular na mesa de apoio ao meu lado e liguei a câmera frontal. Meu Deus! Não era à toa que a técnica me encarou de modo estranho. Eu não tinha palavras para definir o estado do meu cabelo, parecia que haviam penteado meus cachos com um pente fino com os fios ainda secos ou que eu tinha visto um fantasma. Cada ponta se dirigia para um lado diferente.
Não sabia se existia condicionador suficiente no mundo para resolver minha situação. Poxa, aquele sonho me deixou tão agitada que eu devo ter passado a noite toda esfregando a cabeça contra o travesseiro. Puxei o lençol para me levantar e quase gritei de susto. Meus pés estavam imundos! Cobertos por terra preta, lama seca e grama.
Não... Não era verdade! Aquilo só podia ser uma ilusão, será que a remissão do tumor me deixou esquizofrênica? Caminhei até o chuveiro encarando meus pés, guardaria essas alucinações só para mim até que soubesse mais. Não queria causar alarde caso fossem passageiras. Tampouco estava com vontade de tomar psicotrópicos.
Quando meu pai chegou, achou que eu me encontrava em algum ritual de automutilação capilar. Era apenas eu tentando domar a cabeleira, no entanto. O pente que carregava na bolsa já tinha perdido dois dentes em meio à minha juba. Desisti, era mais fácil prendê-lo e tentar resolver em casa.
Papai queria conversar e me levar para passear, porém eu não tinha mais quinze anos. Não estava com a mínima vontade de tomar sorvete e contar como foi meu dia na "escola". Por isso, o dispensei e entrei em casa com minhas chaves. Era o meio da manhã e mamãe já estava na universidade há tempo.
Novamente, tive que garantir que estava bem o suficiente para ficar sozinha. Meu pai foi embora com a promessa que compraria almoço no meu restaurante favorito e traria para mim mais tarde.
Subi até o meu quarto no andar superior. Apesar do cansaço e confusão mental, eu me sentia bem. Arriscaria dizer que um pouco mais ágil do que o normal, tanto que os degraus de madeira que sempre rangiam quando eu subia as escadas permaneceram silenciosos. Ou talvez eles fizessem barulho e minha insanidade temporária me impedia de ouvi-lo.
A casa inteira estava fechada, porém uma brisa vinda do corredor principal no andar superior me atingiu. Ela vinha carregada com um perfume peculiar conhecido. Larguei minha bolsa, que caiu no chão com um baque, e corri a curta distância que me separava de meu quarto. Agarrei o homem que pretendia escapar pela janela e o joguei contra a parede, segurando seu pescoço.
— Quem é você? — comandei.
O homem deu um meio sorriso torto e não parecia preocupado. Será que garotas o atacavam todos os dias?
O vento frio vindo da janela aberta bateu de novo, trazendo mais do seu cheiro para mim. Minha boca voltou a salivar e eu perdi o pouco da serenidade que me restava. Eu não tinha comido nada pela manhã, aquela pasta suja que o hospital chamava de papa não parecia em nada apetitosa. Separei os meus lábios, com a intenção de morder na curvatura de seu ombro. A expressão dele mudou de deboche para surpresa quando percebeu minha intenção.
— Wow! Calma aí, garota! — Ele segurou o meu pulso e o torceu para o lado, obrigando-me a soltá-lo. Antes que eu pudesse gritar, o homem cobriu minha boca com a palma da mão e me puxou contra seu peito. Me vi presa no braço de um estranho que eu queria devorar, e não de um jeito divertido — Só quero saber o que você e sua mamãezinha querida andaram aprontando no laboratório de vocês.
— Me larga! — berrei ao invés de responder suas diversas perguntas. O que ele não fez, claro. Não parei de me debater: — Como você encontrou minha casa e o que você sabe sobre mim ou minha mãe?
— Você me mordeu ontem, quase levou um pedaço do meu pescoço. A sorte é que o amanhecer se aproximava, então simplesmente me largou e saiu correndo pelas ruas. Eu te segui e descobri que você é filha da Sorrentino. — Ele me puxou para perto e farejou o meu pescoço. — É humana, mas posso sentir algo mais. Prefiro muito mais o seu eu diurno, sua versão noturna é de matar. — Ele riu da própria piada e logo ficou sério. — Quanto bebeu?
— Quem deve estar bêbado é você! Eu não mordi ninguém, nem saí do quarto do hospital. Passei mal ontem e pronto, apenas isto.
Ele me soltou e se afastou um passo ou dois. Estava me analisando, como se eu fosse algum animal exótico em exibição.
— Eu trouxe pouco sangue, apenas uma amostra, não é o suficiente para se transformar. Responda logo, você foi mordida?
Esquece a bebida! Aquela conversa louca só poderia vir das drogas. Dei um passo para trás e depois mais outro. Levantei ambas as mãos, mostrando que não era uma ameaça.
— Mordida nenhuma, não se preocupe... Eu vou abrir a porta para você ir embora e a gente finge que isso nunca aconteceu — falei em um tom sereno.
Eu me preparei para fugir, porém ele me segurou mais uma vez. Tentei me soltar do seu aperto de ferro e ele fez "tisc-tisc" com a boca.
— Não foi mordida mesmo? — Ele murmurou um "não faz sentido" mais para si do que para mim. — Então tem o dedo de sua mãe no meio, ela falou que pretendia salvar uma espécie da extinção, mas parece que tentou criar uma nova. Ela merece pontos por testar na família ao invés de algum indigente qualquer... Eu acho. Me diga, ela misturou o sangue de vampiro com o que para criar você?
Wow! Sangue de que?
— Sangue de...? — Comecei a rir. — Você é um vampiro? Vai me dizer que é o neto de Drácula? Ah, não... É o próprio Príncipe Vlad da Romênia, não é?
— Não, cara mia. Eu sou Luca Bertoni, mestiço não-autorizado, ao seu dispor se você pagar o preço certo. Ele se curvou em uma exibição teatral de educação.
Oh, meu Deus! E eu achando que esse dia não poderia ficar ainda mais estranho.
— Mestiço pelo preço certo? Caramba!. Você é um daqueles homens que se prostituem com teatrinho? A minha mãe contratou você para se passar por vampiro? Era alguma fantasia sexual dela? — Senti-me enjoada só de pensar em minha mãe contratando um serviço desse.
Ele franziu a testa e logo começou a rir.
— Sou um mercenário, não um michê. — Luca afastou os lábios e apontou para os dentes. — Sem presas, está vendo? Sou um mestiço entre vampiro e humano. Minha espécie não é muito bem vista em nenhuma das duas comunidades, adoraria saber o que fariam com a sua...
Ah, não! Tudo fez um repentino sentido em minha cabeça. Um momento de consciência em meio à loucura. Esse belo homem de cabelos castanhos claro, olhos penetrantes e um sotaque europeu sedutor só poderia ser fruto da minha imaginação! Esquizofrenia temporária, era isso que eu tinha.
E se não existisse tal esquizofrenia, estava com alguma outra psicose parecida.
— Nada disso é real... — sussurrei. Tudo não passava de uma ilusão. — A minha imaginação é melhor do que eu esperava! — Ele me encarou com uma expressão de dúvida, mas continuei a falar sem dar importância. — Nunca achei que a esquizofrenia fosse como as histórias de ficção que a gente vê nos filmes e livros. Quando a ilusão é tão real que a pessoa não percebe. Se eu não tivesse consciência da minha condição, acreditaria que meio-vampiros italianos realmente existem.
A expressão de dúvida em seu belo semblante mudou para choque, olhos arregalados e boca aberta. Incrédulo, o homem pálido e de roupas pretas balançou a cabeça em negação:
— Espera, você acha que eu sou uma ilusão?
— Não acho, tenho plena certeza — respondi com toda convicção.
Afinal, o mundo era repleto de monstros: assassinos, ladrões, estupradores, espancadores, corruptos... Mas nenhum deles tinha presas ou juventude eterna.
— Pensei que fosse mais esperta. O que você acredita que era aquele homem de ontem? Alguém que precisa urgentemente de um tratamento dentário? — Luca apontou para o diploma pendurado em minha parede. — Lupita Valéria Sorrentino, escolha interessante de nome.
Dei de ombros. Minha mãe era fascinada por canídeos ao ponto de batizar sua filha com o nome "lobo" em latim.
— Prefiro Tita, se não se importa.
O homem coçou a barba rala e me deu um meio sorriso quase predatório.
— Eu posso te provar que sou bem real, cara mia. — Não tive tempo de protestar pelo uso do termo carinhoso em italiano, ele avançou em uma velocidade impressionante e me tomou nos braços.
Sua boca colidiu com a minha, nada de dentes afiados, apenas um beijo quente. Um duelo de línguas e mãos.
Meu Deus! A cada segundo eu me impressionava mais em como aquele homem parecia real. Seu toque, seu cheiro, suas mãos macias arrepiando minha pele. Era como se ele estivesse aqui de verdade. Tudo tão palpável. Eu já tinha ouvido falar em sonho erótico, mas aquele era o primeiro delírio esquizofrênico erótico que eu conhecia. Apertei com força excessiva o volume entre suas pernas, ele me soltou com um grito.
— Você está louca? — Segurou suas preciosas joias.
— Até os homens imaginários são sensíveis aí? Só queria saber se o delírio criaria um homem com... Você sabe — dei de ombros —, todas as partes de homem.
— Eu não sou um objeto sexual imaginário, parva!
Indignada, apontei um dedo para ele:
— Imaginação ou não, tenho quase certeza que você me xingou e não admito isso.
Poxa, precisava me lembrar das poucas aulas de italiano que minha mãe me obrigou a ter quando era criança. O homem levantou a cabeça e olhou em direção à porta.
— Sua mãe tá chegando, preciso ir. Não sei o que ela está tramando naquele laboratório, mas não quero ser a sua próxima cobaia.
Ele saiu pela janela do meu quarto e desapareceu entre os arbustos no quintal vizinho com uma facilidade impressionante, considerando que estávamos no primeiro andar da casa. Fechei a janela e apoiei minha testa no vidro, tentando digerir tudo que tinha acontecido.
Ouvi o barulho do portão automático se abrir, mamãe chegou. Como ele adivinhou? Até onde eu sabia, esquizofrenia não vinha acompanhada com o dom da premonição. Será que o estranho falava a verdade? Merda! Não importava se as últimas quarenta e oito horas eram reais ou não, eu estava fodida de qualquer jeito.
— Filha, você está bem?
Pulei de susto quando mamãe surgiu na porta do meu quarto, ela me encarava com preocupação. Respirei fundo para me recompor. Não acreditaria nas acusações de uma estranha alucinação sobre a mulher mais importante da minha vida, aquela que me criou e sempre cuidou de mim. A que era o meu modelo de profissional e mulher. Virei-me para ela e sorri:
— Nunca estive melhor.
Eu gostaria de dizer que o meu sorriso foi sincero, porém o nome "cobaia" continuava a piscar em minha mente.
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