A solidão me acompanha (cont.)
Planejei a noite perfeita para impressionar a garota que impressiona. Não foi uma tarefa difícil, bastou se ater à beleza anunciada e à vaidade ostentada, e encontrei um restaurante que particularmente não conheço, mas sua glamorosa fama combinava com a dela. Comida francesa, dizem ser um deleite.
Eu me arrumei meticulosamente, me atentei a cada detalhe, até ter certeza de que tudo estava perfeito. Sheila era uma bela mulher, era certo que chamaria atenção, chamaria ainda mais quando notarem que o seu acompanhante é cego.
"Videntes são tão dependentes de seus olhos, basta apenas um breve olhar para eles fazerem milhares de suposições. Vão supor se você é inteligente ou não, bem-sucedido, tímido, aventureiro; vão rotular tudo que afirmam ser fato sem nem mesmo ouvir uma única palavra de você, porque o seu modo de se vestir, seu estilo de vida e a sua acompanhante dirão a eles tudo o que precisam saber."
A corrida do táxi era tranquila. Se levasse em consideração as ruas caóticas de uma grande cidade, pegamos muito pouco trânsito, mesmo para uma sexta à noite.
— Ahn... — O motorista vacilou por um segundo. — Chegamos, senhor.
Levamos cerca de vinte minutos pelo que calculei mentalmente.
— Me aguarde aqui, por favor. Vou buscar minha acompanhante e já volto.
— Está bem.
Desci do carro e bati a porta.
Toc, toc, toc, toc...
Sons de salto alto ecoaram pela rua, e logo fui atingido pelo familiar perfume floral.
— Estou atrasado, Sheila? — perguntei a ela.
— Não, resolvi esperar por você aqui. Como sabe que sou eu?
— Reconheci o seu perfume.
A frustração amargou a minha boca por não poder a buscar em sua porta.
— Que observador. — Ela deixou um beijo em meu rosto. — Gosto disso.
— Bem... vamos?
— Claro. — A porta do carro estalou, aberta. — Você primeiro.
— Tradicionalmente o homem é quem abre a porta do carro.
— Não existe muita coisa tradicional entre nós, não é mesmo? — ela brincou.
Eu me joguei dentro do carro antes que pudesse notar a mágoa em minha face.
"O que não é tradicional? Nosso princípio de relacionamento ou um cego sair com uma vidente?"
Sheila se acomodou ao meu lado, enquanto eu tentava me convencer de que distorcia as suas palavras.
— Pode seguir para o Bistrot Lavi — pedi ao motorista.
— Ótima escolha — ela elogiou.
— Que bom que gostou.
Durante o percurso até o restaurante, tratei de manter uma conversa casual e botei totalmente de lado minhas más interpretações.
***
Fomos recebidos pela hostess na entrada do bristot, uma mulher alta, de voz penetrante, que até mesmo o andar denunciava sua elegância.
— Boa noite. Os senhores têm reservas? — ela perguntou.
— Sim, está no nome de Gustavo Bembi — respondi.
— Ah, sim! Por favor, queiram me acompanhar, vou mostrar a sua mesa.
Uma música suave e calma se misturava sutilmente às baixas vozes das pessoas, como se fossem parte da mesma canção. As mesas eram bem espaçadas, de forma que as conversas não se misturavam, e um sutil aroma de flor exalava de pontos estratégicos.
— Essa é a mesa de vocês. — A hostess deteve o passo.
Sheila me puxou com ela. O rangido baixo de uma cadeira à minha frente pareceu uma afronta ao lugar.
— Senta aqui. — Ela se livrou de minha mão e me empurrou com suavidade para o lado. No mesmo instante, minha apreciação do local retrocedeu e foi substituída por uma apreensão do que a noite me reservava.
— Fiquem à vontade, vou chamar o seu garçom. — Os passos elegantes da hostess vagaram para longe.
Corri as mãos ao redor. A mesa era redonda, meus braços se estendiam quase por completo com o seu diâmetro; estava coberta por uma toalha macia, e a única coisa que encontrei sobre ela foram algumas taças.
— É lindo aqui, Gu — Sheila comentou.
— O ambiente é bem agradável.
— Dizem que a comida é deliciosa.
— Ouvi dizer o mesmo.
Alguém parou próximo a mim. Seus passos leves não me alertaram da sua aproximação.
— Boa noite, senhores! Está noite serei o seu garçom. — Ele nos entregou os cardápios. — Gostariam de começar pela bebida?
— Gosta de vinho, Gu? — Sheila me perguntou.
— Sim.
— Que tal uma garrafa de Château Vimace? — ela perguntou novamente.
— Perfeitamente — O garçom respondeu antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. — Temos safra de 2009 e 2010.
— 2009 — Sheila deliberou.
— Volto logo com o seu pedido. — O garçom nos deixou sem nem mesmo me dar a chance de concordar com algo. De repente, tive vontade de sair em busca dos vasos de flores, tenho certeza de que poderíamos ter uma agradável noite juntos.
— O que gostaria de comer? — Sheila me perguntou novamente.
Abri o cardápio e o tateei.
— Não está em braile — ela me informou tarde demais.
Respirei fundo e descartei o cardápio em um canto da mesa.
— Gosta de Vimace? Tem bom gosto para vinhos — elogiei a sua escolha, sem na verdade ter provado o tal vinho, na tentativa de ganhar tempo para calcular meus próximos passos. Sheila não sabia ser sutil em relação a mim, e temi que declamasse o cardápio como se fosse um poema épico para todo o restaurante ouvir.
— É uma escolha certeira — ela respondeu sem desconfiar de nada.
— Seu vinho. — O garçom novamente me surpreendeu e passou a nos servir antes mesmo que eu pudesse perguntar a Sheila o que gostaria de jantar. — Já decidiram o que vão comer?
— Qual é a sugestão do chef? — eu me adiantei antes que a Sheila pudesse dizer qualquer coisa.
— De entrada, salade fraîche, e confit de canard de prato principal — ele respondeu sem dar mais detalhes do prato.
— Vou querer a sugestão do chef — concordei sem me importar com o que me serviriam.
— Parece ótimo! Vou querer o mesmo — Sheila pediu.
— Excelente escolha — o garçom elogiou.
O receio me deixou tenso, fiquei à espera de qualquer acontecimento que evidenciasse a minha cegueira e me constrangesse. A deficiência nunca foi um problema para mim, a piedade descabida, sim.
***
O garçom voltou com os nossos pratos, serviu primeiro Sheila e depois a mim. Todos os legumes e vegetais da salada eram frescos, como que recém-colhidos, tinham um gosto suave, e senti alguns sabores novos em meios às especiarias.
— Posso servir o prato principal? — o garçom perguntou minutos depois.
— Sim, obrigada — Sheila respondeu.
Os pratos foram trocados, e ele nos serviu de mais vinho.
— Bom apetite. — O garçom nos deixou.
Os talheres da Sheila ressonavam à minha frente, não conseguia me decidir se deveria ou não perguntar a ela o que havia em meu prato.
Tomei um grande gole de vinho.
"Posso simplesmente cutucar a comida com o garfo, pegar um pedaço a esmo, comer um pouco e descartar o restante fingindo estar farto. Mas e se houver enfeites não comestíveis? Elementos que não podem ser espetados com o garfo, como o famoso escargot? Coisas com que eu possa engasgar?"
— Quer que pique a coxa pra você? — Sheila me perguntou.
Um choque momentâneo passou por mim.
"Era tudo o que faltava, minha acompanhante picar a carne em meu prato. Aí sim que todos aqui vão pensar que sou um pobre coitado e ela, uma alma caridosa."
— Não precisa, apenas descreva o prato pra mim. — Mantive minha voz serena.
— Tem certeza? Não tem problema... — A cadeira dela foi arrastada.
— Não. Apenas descreva o prato — eu a interrompi antes que fosse tarde demais. A essa altura, as pessoas já devem ter notado a movimentação atípica em nossa mesa, e tive a impressão de sentir seus olhares curiosos sobre mim.
Sheila se ajeitou novamente em seu lugar.
— Há uma coxa de pato no meio do prato e algumas batatas coradas à esquerda dela — descreveu, insegura.
— Obrigado. — Peguei meus talheres e fui direto à coxa do pato. Sheila continuou imóvel em seu lugar.
— Por favor, volte a comer. Eu estou bem — assegurei a ela.
— Simplesmente divino, esse pato. — Sua voz envergonhada soou baixa.
— Vamos ver. — Levei um pedaço da carne à boca.
"Ela está envergonhada por ter sido pega me observando, ou fiz algo que a constrangeu?"
— Melhor pato que já comi. — Menti para ela. Não podia realmente sentir o gosto da comida, minha preocupação só me permitia mastigar e engolir.
***
Dispensei a sobremesa, mesmo sendo um prato relativamente seguro, mas eu havia sobrevivido a essa noite e não iria me arriscar mais. Foi um alívio quando Sheila se deu por satisfeita.
Alguém se aproximou da mesa e parou próximo a mim.
— Como foi o jantar? — a hostess perguntou de maneira cortês.
— Esta...
— Maravilhoso! — Sheila me interrompeu. — Tudo realmente perfeito.
— Que ótimo. Podemos fazer algo mais pelos senhores?
— Somente a conta — ela respondeu novamente.
— Perfeitamente, vou solicitar ao seu garçom. Foi um prazer recebê-los em nosso restaurante.
Não me atrevi a mais uma tentativa de resposta.
— O prazer foi nosso.
Alcancei a carteira em meu bolso. O garçom de passos leves não me surpreendeu dessa vez.
— Sua conta. — Ele depositou um volume sobre a mesa, mas não me dignei a investigar o seu conteúdo somente para descobrir que se tratava de mais um papel não acessível.
— Débito. — Entreguei meu cartão para ele.
— Espere. — Sheila o interrompeu. — Divida a conta, cobre metade nesse cartão. No débito.
— Não, cobre tudo no meu cartão. — Eu a impedi. — Faço questão.
— Gustavo...
— Por favor, Sheila. — Não pude conter o suspiro aborrecido que me escapou dos pulmões.
— Está bem... — ela concordou, contrariada.
***
O frescor da noite fez meus músculos relaxarem um pouco, me deu novas forças para superar o jantar e tentar salvar o nosso encontro.
— Então, quer esticar a noite? Talvez tomar um drinque em algum lugar mais intimista? — perguntei a Sheila enquanto aguardávamos o táxi chegar.
— Se esse tal lugar intimista for o seu apartamento, eu aceito.
— É meu lugar intimista favorito. — Disfarcei minha incerteza.
"Tudo com a Sheila acontece de forma tão fácil. Será que ela age assim com todos ou só está curiosa sobre como é se relacionar com um cego? As malditas histórias sobre nossas supostas grandes habilidades táteis podem criar muitas quimeras em mentes férteis... Talvez devesse tocar nesse assunto com ela, mas ela poderá se ofender. Ou talvez possa deixar isso pra lá e correr o risco de, porventura, não corresponder às suas expectativas."
***
A recepção do meu prédio estava silenciosa, a não ser por um rádio com o volume baixo.
— Boa noite, João — eu o cumprimentei sem deter o passo.
— Boa noite, seu Gustavo — ele respondeu, desinteressado, sem tentar prolongar a conversa.
Tim!
Entramos no elevador, apertei a botão do andar, o silêncio nos dominou até que a porta deslizou.
— Seria muita ousadia minha se roubasse um beijo seu agora? — Sheila me perguntou.
— Não — respondi, ainda indeciso com os rumos das coisas.
Sua boca cobriu a minha de maneira exigente, sem dar chance ao habitual primeiro beijo tímido. Ela me empurrou contra a parede e se prensou contra mim.
"É tarde demais para questionamentos, será muito pior se a parar agora. Não resta dúvida de que está dando tudo de si para me seduzir."
A porta do elevador abriu. Saímos ainda agarrados, peguei as chaves em meu bolso sem a soltar, mas Sheila as tomou de mim.
— Qual é a porta? — ela ofegou.
— Doze — respondi sem deter os passos que a levavam comigo para o lugar certo.
Sheila abriu a porta, nos puxou para dentro e só empurrou a madeira de volta, sem se preocupar em trancar.
— Seu quarto? — ela me pediu.
Em vez de responder, a levei comigo enquanto a beijava exatamente no ritmo que ela ditava. Sheila arrancou as minhas roupas pelo caminho e grande parte das suas, me empurrou sobre a cama e se deitou sobre mim. Suas mãos impacientes guiaram as minhas, sem nunca me deixar explorar o seu corpo livremente. O excesso de carne transbordava de minhas palmas, e tudo que ouvi sobre ela finalmente ganhou forma. Os cabelos volumosos caíram ao meu redor, e me entreguei sem receios, esquecido do mundo.
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