Você Outra Vez?
Havia me conformado com o fato não poder mais sair dali, com a vida de "homem da floresta". Lembo-me de ter organizado algumas madeiras nas quais fazia pequenos riscos a cada noite que chegava, e possuía três "madeiras calendários" preenchidas com 365 riscos e uma com cento e vinte e sete. Na pedreira onde me instalei, levantei paredes de pedras, calafetadas com argila misturada a pó de pedras que bradas.
Construí três cômodos, um onde eu dormia, outro onde eu cozinhava e o terceiro servia de banheiro. Levantei também um grande muro de pedras cercando boa parte da pedreira, e em cima do mesmo fixei madeiras com pontas e ramos de espinhos. Coloquei estacas pontiagudas também nas descidas a frente e nas subidas a atrás de minha mo- rada. Fiz pequenas mobílias como mesa, bancos para sentar e uma cama para dormir – o colchão que fiz, era de capim, o chamado meloso, em volta de uma enorme pele, sabe-se lá de qual animal, que encontrei morto na mata.
No cômodo "cozinha", fiz um fogão de pedras e barro para o preparo dos alimentos, a saber que no início do segundo ano ali, eu encontrei uma singela plantação de café. Também encontrei alguns pés de milho e de mandioca em meio a mata. Achei um pouco de feijão, e outras plantas comestíveis, e a partir delas fiz novas plantações perto de minha pedreira. Enfim... Três anos e alguns meses de sobrevivência na selva me fez muito bem, aprendi a construir, projetar, caçar, respeitar a natureza, sobretudo os animais, aprendi a respeitar o universo por inteiro.
Aprendi a dar mais valor a minha vida e a vida ao seu redor, porque essa era a única dor que ainda carregava co- migo, não ter ninguém para me fazer companhia... E por ter magoado e afastado de mim as pessoas que amava antes de sumir no mapa. E claro, minha preocupação com minha amada Valentina, toda vez que me aventurava pelas trilhas da mata, imaginava que a encontraria tomando banho numa cachoeira ou num riacho, nos abraçaríamos e nos beijaríamos, mas nunca a encontrei.
Na manhã do dia cento e vinte e oito, do quarto ano, como de costume me levantei e coloquei fogo nas lenhas no fogão, coei um pouco de café, adoçado por caldo de cana de macaco, em um caneco de barro, e coloquei um pouco em um copo do mesmo material – eu havia feito muitos utensílios de barro, tais como canecas, copos, panelas, cumbucas, etc. Com isso me dirigir a minha plantação de feijões, ao lado nas demais plantações de batata-doce e milho, o intuito era colher um pouco de feijão para cozinhar e com um pouco de farinha de mandioca que havia sido produzida no dia anterior, faria então um tropeiro com carne de um lagarto — capturado dias antes.
Tudo era bem simples, a gordura que usava para pre- parar os alimentos, vinha da carne dos próprios animais – principalmente os porcos-do-mato. Pela floresta havia de tudo um pouco, desde frutas a hortaliças, e até temperos, por isso me dediquei por muitos meses a procurar e colher sementes ou mudas para replantar perto de minha cabana aos pés da pedreira, onde tinha um bom espaço com uma parte de boa terra livre de pedras.
Já estava votando nos limites de meus muros, com o pensamento de retirar a carne que secava ao vento do lado de fora da cabana, nem sempre o clima era bom para fazer isso, mas as vezes sim, e isso era aproveitado – para evitar as moscas e outros insetos, encharcava as carnes de sol com bastante sal, sal este conseguia através do manuseio do aguapé que achei aos montes em pequenos lagos e bojos pela mata. Seguia subindo o morro de pedras quando ouvi um alto vindo do meio da floresta, aparentava ser de uma mulher ou de uma criança, mas nunca havia visto uma por ali, e a única mulher que vi foi aquela me dera um soco no rosto e um cantil, e na verdade não passava uma noite em que não me lembrava da bela mulher, se é que me entende caro leitor.
Gritos eram comuns por ali, já havia visto outros ho- mens na floresta, infelizmente tive de correr de muitos que me perseguiram, tive que lutar com muitos também, e em algumas desses combates, fui obrigado a sujar minhas mãos de sangue e ceifar algumas vidas, para que eu pudes- se continuar vivo. Resolvi ignorar o grito e continuei a subir, passei pelo portão principal feito de madeira grossa – minha pedreira havia se tornado uma fortaleza, juntei os conhecimentos que tinha acerca de minhas experiências com meu pai, a observação dos lares dos animais e claro, me baseei muitos nos filmes de apocalipse zumbi já tinha visto na tv.
Levei os feijões e as cebolinhas que havia colhido para a cozinha e as deixei sobre uma mesa ao lado do fogão ainda chamas baixas, peguei uma tigela de argila e fui até dois grandes quadrados também argila de aproximadamente um metro e meio de altura por um de largura, estes ser- viam como reservatório de água que semanalmente trazia do rio e às vezes de uma das nascentes que encontrei dentro da floresta.
Já havia iniciado a preparação da comida, na verdade metade dos afazeres estavam completos, sai a fim de pre- parar minha lança, flechas e o meu arco para a caça, pois minha carne só daria para a refeição do dia, quanto ao dia seguinte não haveria. Possuía também algumas facas e adagas – que com muito esforço consegui fazer, após construir alguns fornos para tentar derreter o minério de ferro. Voltei para dentro da cozinha para ver o progresso do meu almoço quando ouvi novamente um grito, porém este me arrepiou por inteiro.
— Socorro! — aquela voz não me era estranha, no dia, chegou a me lembrar a voz de minha amada Valentina.
Dirigi-me a parte de trás da cabana onde construí uma pequena guarita colada com o muro, olhei de um lado para outro até avistar uma grande cortina de fumaça subindo ao céu vindo de meio da floresta. Lembrei-me da fogueira de três anos atrás — de tempos em tempos tal fogueira era acesa por alguém, contudo, eu segui a recomendação da mulher misteriosa e nunca mais fui por aqueles lados em dias de fogueira. Estremeci ao observar a fumaça, as nu- vens carregadas se aproximando no horizonte, e mais um grito, o quê me gerou novas perguntas:
"Quem ascende a fogueira? Por que aquela mulher estava lá da primeira vez? Será que ela ascende a fogueira? Por que queimar alguém numa fogueira? Será um ritual? Nati- vos? O quê acontece na floresta? Quem nos trouxe? Por que não podemos sair?"
Tive minha mente invadida por pensamentos que há tempos não os tinha. Fui então até a cozinha e retirei do fogão a panela onde preparava o tropeiro com carne de lagarto que seria meu almoço, e a coloquei em minha geladeira de barro – ah caro leitor, suponho que tu não sabes 1% das maravilhas naturais que os antigos sabiam, eu porém tive avós muitos presentes e ativos em minha infância e adolescência, por isso aprendi tantas coisas, se você não conhece tais coisas da chamada bio construção, pergunte aos seus avós, ou pesquise um pouco, garanto-lhe que não será perda de tempo.
Vesti por cima de minhas vestes gastadas, um manto de couro de um grande macaco – que também fora achado morto, como se fosse um poncho. Peguei uma grande adaga e a coloquei numa aljava feita de couro de coelho e fibras de palmeira – junto a algumas flechas. Levei ao ombro direto o arco e nas mãos levei uma lança com ponta de cristal de quartzo, e na cintura levei um cantil cheio de água, e assim parti para o encontro da voz que pedia socorro, contrariando o mais importante conselho que a mulher de cabelos cacheados me dera.
Como sabia o trajeto, caminhei por trilhas e mais trilhas, com a esperança de encontrar respostas ou a mulher de cabelos cacheados, ou talvez as duas coisas – embora ainda tinha esperanças de encontrar minha amada Valentina. Quase chegando ao lugar o cheiro de fumaça e madeira queimada aumentava, juntamente com o odor de cabelos queimados, o que me atemorizou bastante.
"Será que cheguei tarde demais?"
Pensei alto.
De repente houve um grande estrondo no céu, esgueirei-me para uma pequena clareira entre as árvores e vi que o tempo havia fechado por completo – rapidamente como três anos atrás – as nuvens carregadas apareceram no meio tempo em que estava dentro da Mata fechada.
Estava tão perto que não podia sequer pensar em desistir, mesmo achando tudo muito estranho. Ao chegar próximo do local, optei por subir em uma árvore a fim de observar primeiro fora do campo de perigo, era uma árvore de tronco grosso com galhos grandes que me permitiram sentar, e ficar um tempo por lá. Ao subir vi a grande fogueira e meu espanto foi imensurável, havia em meio fogueira quatro corpos pendurados em estacas totalmente desfigurados, contudo, havia uma quinta estaca vazia ao meio, subiu-me uma ânsia até a garganta, mas me contive. Olhei em volta e não avistei ninguém, os estrondos no céu continuavam, porém em escala menor, uma pequena garoa se iniciou enquanto estava em cima da árvore. Fiquei ali por horas decidido a não descer enquanto eu não entendesse o que estava havendo, quem tinha colocado os corpos para queimar, e enquanto não me sentisse seguro para descer.
Foi difícil não pegar no sono, após a chegada da noite, a garoa ainda caia suavemente, o cheiro dos cadáveres se misturaram com o de terra e cinzas molhadas. Pensava em quanto tempo mais teria que ficar ali até algo acontecer, ou alguém aparecer, quando outro estrondo veio do céu, era só outro trovão, o quê me causou espanto veio em seguida. Dezenas de outros estrondos seguidos de relâmpagos e raios sendo despejados sobre a fogueira, um vento forte sacudia as árvores e arbustos, grãos de areia e terra foram direcionados contra meu rosto fazendo-me não enxergar direito o que acontecia no céu, apenas me lembro de ver um grande buraco se abrir em maio as nuvens carregadas, e descer algo grande, e com suas mãos enormes pegou um por um dos corpos e levou a boca, comendo-os, como se fossem petiscos.
Meu coração aparentava que pularia para fora de meu peito, minha boca secou, meus olhos se arregalaram mesmo com ciscos dentro, meu corpo tremia como se sofresse hipotermia. Forçava minha vista, mas não conseguia ver direito o que era, poderia ser um macaco gigante, um dinossauro, ou um demônio... Minha mente nem sabia no que pensar ao certo, mas todo tipo de fantasia foi imaginada, pensava em apenas me manter firme em cima daquela árvore para não virar comida daquele ser monstruoso também.
Estava disposto a ficar ali a noite inteira, e ao amanhecer iria correndo para minha pedreira e nunca mais iria para aquela região, esse era o plano. A criatura ainda pairava pelos arredores da clareira onde estava a fogueira, caminhava devagar como se procurasse algo, e após algumas voltas, flutuou novamente pelo ar sumindo para dentro do buraco no céu, sendo seguido pelas nuvens que também foram sugadas para dentro do buraco, deixando a vista o céu escuro e estrelado.
Não sabia mais o que esperar, se a criatura iria voltar ou outra coisa iria aparecer, mas minha atenção se voltou para algumas das perguntas que tinha em minha mente. Deduzi que quem ascendeu a fogueira e queimou as pessoas sabia sobre a criatura e talvez fosse um tipo de ritual macabro onde se oferece sacrifício para um deus ou um demônio, lembrei-me de que na primeira vez que vi a fogueira estava no mesmo lugar, porém não tinha visto de cima como naquela noite. Talvez naquele dia também haviam corpos queimados, e como fui desmaiado pela mulher misteriosa, não tenha visto e nem ouvido a chegada da criatura, a saber, que a mulher de cabelos cacheados me arrastou para longe da fogueira e só fui acordar no dia seguinte.
Restava-me saber quem ascendia as fogueiras, quem eram as pessoas mortas e que criatura era aquela... Viajava em meus pensamentos bolando teorias diversas quando algo inusitado aconteceu, ouvi passos de algo correndo, a princípio pensei ser um animal caçando o jantar, mas logo vi ser uma pessoa. Corria olhando para os lados com terror estampado em sua face, parou bem ali debaixo da árvore onde estava.
Estava muito escuro, não conseguia ver muito bem, mas vi quando a pessoa se sentou recostando-se no tronco da árvore. Notei que era uma mulher ao ouvir gemidos da mesma enquanto mexia na perna, que apa- rentava estar ferida. Por um instante pensei em descer e oferecer ajuda, mas em seguida lembrei-me da voz que gritava por socorro durante a tarde, na fogueira havia quatro corpos e uma estava vazia, a criatura rondou o local procurando algo, tudo indicava que a mulher debaixo da árvore era a fugitiva e logo alguém ou algo apareceria para buscá-la. Com esse pensamento resolvi ficar ali quieto, e por muito tempo fiquei a observá-la, vendo-a mexer em sua ferida, pegando um pedaço de cipó dependurado nos galhos das árvores, sacou uma faca aparentemente de aço e cortando o ramo, amarrou em sua coxa a fim de conter o sangramento e mi- nutos após dormiu, ou desmaio pela perda de sangue, não dava para ter certeza de cima da árvore. Fiquei por um bom tempo lutando contra o sono, meus olhos se fechavam por vontade própria, mas minha vontade de viver manteve acordado.
Horas depois estava sonolento, mas sons de passos se aproximando me tornou alerta novamente, por pouco que não me desequilibro do galho, olhei de um lado a outro e não via ninguém. A mulher ao pé da árvore acordou assustada, olhava fixamente para frente de si, e aos prantos a ouvi murmurar para quem se aproximava.
— Por favor, não! Ele já se foi merda!
Aos poucos aparecia em meu campo de visão duas pessoas, homens robustos de pele pálida, o céu estava mais claro indicando que faltava pouco para o nascer do sol, os brutamontes de cabelos claros e aparentemente cuidados, carregavam consigo facões de ferro. Trajavam roupas es- curas com um símbolo que não pude identificar no dia – hoje sei do que se trata, e prometo que ao fim do meu relato, caro leitor, você também saberá.
— Verdade — um deles se ajoelhou diante da mulher —, ele já se foi e não voltará pra comer você... — Numa pausa levou sua mão direita ao rosto da mulher tocando-a deslizando seus dedos do rosto ao pescoço descendo até adentrar por sua camisa rasgada — Agora nós estamos aqui, acho que vamos comer você em nome dele! — rosnou o homem enquanto o outro sorria, desabotoando a calça.
Meu coração novamente se acelerou, um frio se fez em minha barriga, um grande pavor se ascendeu dentro de mim, fui pego de surpresa embora fosse algo tão óbvio de se acontecer, dois malfeitores na madrugada atrás de uma mulher sozinha, o quê mais poderiam fazer, ajudá-la? Inúmeros pensamentos passaram em minha mente, mas poucos eram heroicos, entretanto, na situação atual se eu pensasse muito veria os filhos da mãe esguicharem suas imundícies no rosto da pobrezinha e jogá-la na fogueira depois.
Com cuidado e silêncio, saquei da aljava uma flecha, retirei do ombro meu arco e colocando nele a seta, mirei no homem de pé com a calça abaixada mostrando o pequeno balançante, que em outra ocasião seria muito caçoado. Puxei uma respirei fundo, ao soltar o ar, soltei também a flecha acertando em cheio cabeça do homem, que foi ao chão com a seta atravessar em seu crânio. O outro que de joelhos frente a moça, olhou para trás distraído, e foi surpreendido por ela que rapidamente levou uma lâmina de aço – lâmina essa que, mesmo de longe eu pude reconhecer, era um canivete – com muita força ao pescoço do agressor, enfiando-a em seu pescoço e a retirando fazendo então jorrar sobre si o sangue do maldito.
A partir dali minha posição estava comprometida, se mais homens aparecessem, veriam os corpos e a garota ali, logo me descobririam também. Desci da árvore as pressas tomado pela adrenalina, e fui até a mulher sentada ao chão sem forças.
— Moça, você está... — me espantei ao me aproximar e ver que a mulher era a mesma que me dera um tapa no rosto três anos atrás - Você outra veza? Parece que está encrencada.
— N-não s-sei quem você é, m-mas obrigada por me salvar — ela agradeceu, em seguida desmaiou.
Chequei a pulsação e constatei que ainda está viva, me levantei as pressas e fui até o homem com a flecha na cabeça, pisando no corpo puxei-a e limpando-a nas vestes do cadáver tornei a guardá-la em minha aljava, peguei o cinto que prendia o facão que ele havia jogado ao chão na esperança de estuprar a fugitiva.
Peguei também o cinto do outro cadáver e prendi os dois à minha cintura, coloquei também a morena de cabelos longos e cacheados em minhas costas e segui caminhando o mais rápido que consegui pela trilha que lavava até minha pedreira, mesmo com medo de ser alcançado por outros possíveis perseguidores, ou a cria- tura de saiu das nuvens.
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