Vamos embora
Na manhã a seguir acordamos sem nenhum romance, pelo contrário, tivemos vergonha um do outro. Sabíamos tudo que fizemos, e em quais circunstâncias tudo foi feito, e isso abalou um pouco a amizade construída no último mês. Tomamos um banho – sozinhos, um de cada vez é claro – e fizemos o dejejum. Evitamos o máximo qualquer dialogo desnecessário ou perguntas toscas e comuns, contudo, foi inevitável não comentar sobre os preparativos para nossa tentativa de fuga.
Natasha me disse que precisava ir à procura de uma árvore, da qual escorre uma seiva por feridas no tronco, seivas que são altamente inflamáveis, as quais usaríamos nas pontas das flechas para acender fogueira. Enquanto ela foi em busca da tal seiva, eu fiz mais algumas flechas, e e lanças com ponta de osso afiado, juntei mantimentos e água em um bornal de pele animal, enfim, cuidei dos preparativos de armas e suprimentos.
Ela foi breve, não demorou a voltar, avisei que estava tudo pronto e poderíamos partir se ela quisesse.
— Tem de ser durante a noite — ela insistiu —, é quando os comerciantes voltam para a vila, já passei muitos dias inteiros observando a estrada, sei do quê estou falando.
Ela estava um pouco ríspida, mas não me deixei levar, afinal eu entendia a confusão de sentimentos que a perturbava.
— Quando o sol estiver quase se pondo, nós partiremos, quando a ele se for por completo, teremos de estar lá no topo — ela apontou. — Vamos acender a fogueira e depois que o demônio descer do céu, saímos e nos escondemos nos arbustos perto do portal na estrada, ao lado de uma placa que pela distância eu nunca consegui ler, mas deve ser algo tipo "bem-vindo a casa do caralho".
— Certo! — concordei com o plano, afinal era tudo que podia fazer, a saber que ela sabia de tudo sobre o lugar e eu quase nada. — Só uma coisa. Por que nos esconderemos nos arbustos, invés de fugir logo para longe?
Natasha me encarou e sorriu, era como se eu fosse uma criança fazendo uma pergunta óbvia.
— Há um senhor que sempre para a carroça antes do portal de entrada da cidade, para mijar olhando o céu — ela gargalhou —, podemos pedir uma carona, ou roubar a carroça dele...
Ela pausou a fala, respirou profundamente e olhou-me nos olhos.
— Geralmente é só ele e uma garota, provavelmente a filha — ela temeu em dizer, mas continuou com o raciocínio —, se conseguir sair daqui, farei de tudo para não voltar mais, ainda que tenha de matar o velho e a filha adolescente dele.
Não me surpreendi com tais palavras, afinal eu pensava o mesmo. Faria de tudo para salvar minha própria vida, acho que todos no mundo são assim, com exceção dos pais que geralmente estão sempre prontos para se sacrificarem pelos filhos – e quando digo pais, me refiro a verdadeira mãe e pai, e não a meros progenitores.
Estava ali a mais de três anos, Natasha uns seis, ou seja, estávamos com os extintos à flor da pele, e faríamos de tudo para sobrevivermos a todo aquele inferno. Aos poucos voltamos a nos falar normalmente, mas sem tocar no assunto "sexo à base de álcool", entretanto sabíamos que não dava para fugir daquele assunto, em algum momento ele viria, e veio, porém, já estávamos a caminho do cume da serra.
— Desculpe por ontem! — ela disse — Bebi demais, falei demais e me joguei em cima de você, sem nem...
— Não tem porque se desculpar — a interrompe —, eu que deveria pedir desculpas por não me controlar e ceder mesmo sabendo que aquilo era só o efeito do álcool misturado com a fragilidade de muitos sentimentos reprimidos, espero que fiquemos bem.
Ela sorriu, talvez achou fofo o que eu disse.
— Claro que estamos bem — Natasha caminhava encarando a trilha que já estava um pouco escura pelo pôr do sol —, e ficaremos melhores ainda depois de sair daqui.
Confesso que na hora, não entendi o que ela queria dizer, como dizem, os homens para captar indiretas de uma mulher, são como bichos preguiças atravessando o asfalto, geralmente precisam de ajuda. Às vezes há alguma coisa rolando e não vemos nada, outras vezes não tem nada acontecendo, e o sorriso foi apenas simpatia e educação, mas daí fantasiamos uma penca de coisas que só existem em nossa imaginação.
A caminhada foi tranquila até o topo da serra, por sorte não encontramos com ninguém, o quê na verdade era comum nos fins de tarde, ninguém gostava de se aventurar numa floresta desconhecida, com bichos estranhos e desconhecidos. Ao chegarmos no topo da serra, passamos pelas cabanas de madeira que Natasha havia me dito, inclusive nos abrigamos na cabana onde ela morou por todo o tempo após conquistar aquela parte da floresta.
Como tínhamos alguns minutos até que a noite chegasse de vez, Ela me contou mais histórias sobre a sobrevivência na floresta. Disse que por muitas vezes teve de fugir da cabana e se esconder na mata, para então bolar um plano expulsar quem quer que fosse o invasor. Segundo ela, com o tempo as coisas foram ficando mais fácil, desenvolveu armadilhas e técnicas primitivas para combater os invasores, e animais selvagens também, e isso foi o quê permitiu que se manter morando naquela parte cobiçada da floresta por tanto tempo.
— Acho que está na hora! — Natasha anunciou.
Levantei-me e respirei profundamente, me preparei e sai da cabana com o bornal de suprimentos no ombro e o arco em mãos. A fogueira não era tão longe, seria fácil acertá-la, mas fui impedido de disparar a flecha, na verdade, não tive tempo sequer de acender a seiva na ponta da seta.
— Se disparar os dois morrem!
Nem notamos a chegada daqueles homens vestidos de preto, armados com balestras medievais. Todos de cabelos claros e pele pálida – eram 5 no total –, encaravam-nos e gargalhavam por frustrar nosso plano de fuga.
— Vamos matar esse patife, e nos divertir com essa princesinha! — disse um deles tocando no rosto de Natasha, que obviamente, o golpeou bem no nariz com um soco.
Um segundo "guarda", porém, acertou-a com um soco na barriga, em seguida a jogou no chão com um chute. Bradei para que não fizesse tal coisa, e um deles avançou contra mim, e como um rato encurralado que ataca o gato por mero medo da morte, acertei-o com um soco no rosto, não foi um belo golpe de um profissional do boxe, mas foi o suficiente para o guarda soltar a balestra.
A saber que Natasha já havia golpeado um e eu outro, restavam apenas três. Após ter atacado um deles eu não poderia retroceder, mas não poderia atacá-los de qualquer maneira.
— Foi mal! — gritei — Eu me rendo, vou colocar o arco e a aljava no chão, ok? — me abaixei colocando realmente o arco e a aljava no chão.
Abaixei-me, catei terra com as mãos e joguei contra os dois guardas que apontavam a balestra em minha direção, e num movimento mais rápido que puder executar, derrubei um com uma rasteira, e agarrei as pernas do outro. Com isso, o guarda que havia derrubado Natasha se distraiu, assim então abriu uma brecha para que a mulher investisse contra ele.
Lembro-me que a luta foi acirrada, mas diferente dos guardas, Natasha e eu estávamos lutando pela vida, com a força de vontade dobrada, pelo acúmulo de anos de isolamento naquela floresta maldita. Como havíamos conseguido desarmá-los, a luta foi equilibrada, mesmo sentindo um desconforto na perna esquerda, continuei a luta até que todos eles estivessem mortos.
— Ai, merda! — murmurou Natasha encarando minha perna.
Olhei para baixo e vi a origem da dor que senti durante o combate. Havia uma pequena flecha – do tipo usado em balestras. Mesmo com muita dor, arranquei aquela coisa de mim, peguei uma das balestras no chão e retirei a flecha de uma delas. Retirei a flecha da arma e entreguei a Natasha, para que ela colocasse a resina na seta, e assim ela fez com rapidez.
Recoloquei a flecha na balestra, acendi um pequeno monte de folhas secas e ali acendi também a flecha. Mirei, respirei fundo e atirei, por sorte acertei a fogueira de primeira.
— Isso! — comemorei.
— Agora é só esperar o demônio — comentou Natasha. — Mas acho que devemos sair daqui, podem aparecer mais guardas, e eu acho que vai demorar um pouco para o fogo alastrar para a fogueira.
Concordei com ela, e fomos para a cabana onde estávamos antes, o quê foi um erro, isso porque ainda teríamos muito caminho até as bordas da floresta, onde havia barreira que seria desfeita com a chegada do monstro alado. Nosso erro foi acreditar que a pior coisa que poderia nos acometer, seria mais guardas.
Como Natasha havia previsto a fogueira que havíamos preparado levou cerca de meia hora para estar completamente em chamas, e só aí as nuvens densas tomaram o céu, e trouxeram a garoa fina acompanhada de trovões e relâmpagos.
— Vamos nessa — sugeriu Natasha —, aquela coisa deve estar quase chegando, é bom que estejamos perto da barreira quando ela for desfeita.
Concordei novamente e a acompanhei para fora, e juntos caminhamos rumo a futura brecha na segurança. Apressamos os passos quando a chuva começou a se intensificar, assim como os raios e trovoadas.
— O quê é aquilo? — perguntou Natasha forçando a vista.
Guiado pelo olhar dela avistei o que lhe causava espanto e me espantei também. Havia uma criança aparentemente aos prantos de costa para nós, sentado abaixo de uma árvore. Natasha não pensou duas vezes, correu até o pequeno garoto de vestes sujas e rasgadas, creio que ele pensou algo do tipo "há um monstro descendo do céu, não podemos deixar uma criança nesse floresta!"
Já eu pensei o quê uma criança estava fazendo ali, a saber que em todo meu tempo ali nunca havia visto uma.
— Espere aí, nem sabemos... — fui ignorado, e tudo que pude fazer e correr junto a ela, até a criança.
Aquele foi outra grande erro, para não dizer o maior erro. Creio que os demais males que nos acometeram não existiriam se eu tivesse segurado aquele inconsequente, invés de segui-la.
— Ei, o quê está fazendo aqui? Por que está chorando?
Perguntou Natasha o tocando no ombro.
— Eu moro aqui perto — respondeu o garoto —, estou chorando porque estou com fome.
Natasha foi logo dizendo que tinha algo para ele comer na bolsa, eu, porém, senti certa familiaridade naquela voz, mas não fazia a mínima ideia de onde a conhecia. Minha companheira de fuga enfiou a mão no bornal a fim de retirar algo para o garoto comer, contudo, o pequeno não estava interessado.
— Eu não como qualquer coisa!
A fala saiu junto a um sorriso, e naquele momento me lembrei daquele voz, afinal fora a última voz que ouvi antes de acordar naquela floresta maldita. O garoto virou cabeça para trás, sem mover o corpo, era como se não fosse vertebrado, contudo, o quê nos causou mais espanto – de modo a fazer Natasha tropeçar e cair devido ao susto — era foi a ausência de olhos no rosto do garoto. O garoto que me deu a flor-amarela na Praia da Fazendinha, no Amapá.
— Puta merda! — gritou Natasha tomando distância rastejando pelo chão, mas sem dar as costas para o garoto que se levantou e pôs-se a gargalhar.
— Gosto de comer prisioneiros fujões!
O garoto, sem endireitar o corpo correu em nossa direção. Do buraco vazio dos olhos escorria ao negro e viscoso, era semelhante ao rosto borrado de uma mulher com maquiagem pesada. Ajudei Natasha a se levantar e corremos daquela coisa, uns diriam que jamais correria de uma criança, por mais estranha e assustadora que fosse, contudo vos digo que só um tolo enfrenta o desconhecido sem um pingo de medo no coração, só um general estúpido mandaria seus soldados para uma batalha sem sequer estudar o exército adversário.
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