Uma mulher em minha cama
Tendo conseguido chegar a cabana, a deitei em minha cama, rasguei a parte da calça onde estava o ferimento – pensei em tirar toda a roupa daquela que ainda não sabia o nome, e dá-la um banho, mas achei que de forma alguma séria apropriado. Apenas molhei um pedaço de couro de coelho, do qual tinha aos montes acumulados – dentre outras espécies – e enchendo uma tigela de barro com água, me sentei a beira da cama e molhei o pedaço do couro felpudo na água, passei primeiro no rosto, em seguida nos braços e mãos, por último pernas e pés, limpando-a do sangue e da terra.
Analisei seu ferimento e vi que era apenas superficial, e como não tinha nenhum a erva para auxiliar na cura, apenas o limpei, mais tarde procuraria algo para tratá-lo. Terminando ali a cobri com uma manta – de couro de algum animal que não consigo descrever a você caro leitor – e fui até a cozinha.
Coloquei fogo na lenha que estava ao fogão, enchi a maior panela de barro que tinha com água a coloquei sob o fogo, e também a panela que tinha o tropeiro que havia guardado em minha geladeira de bio-geladeira de barro. Ao ter esquentado a água levei-a para o cômodo banheiro, e tomei um rápido banho com um sabão feito a partir de gordura animal e ervas, e após o banho comi um pouco do tropeiro sentado à mesa, em seguida fechei a porta da entrada única – pela cozinha – colocando uma escora de madeira. Arrastei uma cadeira para beira da cama e ali peguei no sono.
Acordei pela pouco antes do entardecer, e ela ainda dormia. Levantei-me com cuidado para não fazer baru- lho e fui a cozinha, peguei uma tigela de argila e a levei ao reservatório de água, enchendo-a pela metade levei até fogão. À minha maneira primitiva, preparei um pouco de café – que consistia me um medida de água, para três de caldo de cana de macaco. Lembro-me que fritei algumas bana- nas-verdes e cozinhei algumas bata- tas doces.
Havia uma espécie de banco redondo feito a partir de um tronco de uma árvore, que era usado como mesa de cabeceira, e nele coloquei uma tigela de argila e as canecas com café. Por um buraco na parede com uma grade de madeira servindo de janela, entrava a claridade avermelhada do entardecer, iluminando o quarto, encarei a mulher por alguns segundos antes de acordá-la. Lembrei-me da primeira vez que a vi, fazendo uma lança de madeira, a luz do sol iluminado sua pele negra, um pouco mais clara que a minha, totalmente agressiva e ríspida. Agora estava ela em minha cama, com minha manta. Com um leve toque ao rosto, retirei uma mecha de cabelo do rosto e levei-a para trás da orelha da deusa Ísis adormecida, em seguida chamei-a.
— Ei, acorda!
Com dificuldades ela abriu aos poucos os olhos até que pudesse me ver.
— Você deve estar com fome, sente para comer um pouco.
Ela me olhou com desconfiança, observou todo o quarto enquanto esforçava para se sentar, gemendo de dor a cada movimento de seu corpo. Peguei a tigela com os aperitivos matinais e o coloquei sobre a cama ao lado da mulher misteriosa, em seguida a entreguei uma das canecas com café.
- Não é tão bom quanto os de padarias, mas da pra beber!
Ela por sua vez olhou-me nos olhos por alguns segundos abriu sua boca como se fosse falar algo, mas nada foi dito, desviou seus olhares para a caneca e bebeu. A bebida era forte, tanto que a fizera engasgar e tossir algumas vezes, olhou para o prato e dele retirou uma das batatas doces e pôs-se a comer. Em silêncio tomamos nosso café da tarde, comi apenas uma das batatas e só, o restante deixei para ser devorado pela faminta.
— Você quer mais? Ainda está com fome? Posso pre- parar mais um pouco se quiser! — perguntei a ela, e balançando a cabeça para os lados sinalizou que não queria mais nada — Na primeira vez que estivemos juntos, você falava um pouco mais — sem obter um co- mentário continuei.
— Também, se bem me lembro, estava amarrado e indefeso, e com muita sede... Estava definhando ao poucos, sabe... Foi você que me incentivou a fazer tudo isso aqui, disse para que eu achasse um lugar seguro e construir vasilhas para cozinhar, lanças e arcos para caça e proteção, você me falou sobre cabanas de madeira e de pedras, enfim já que não havia como sair daqui, então que seja bom o resto de vida...
Ela deixou escapar um breve sorriso, enquanto bebia um gole do café.
— Agora me lembrei de você! — disse ela — O frouxo, que salvei de ser queimado na fogueira.
— Ex-frouxo — brinquei —, que bom que se lembrou do frouxo aqui, espero que se lembre do "frouxo" acertando uma flecha bem no meio da testa do cara prestes a ser bastante "macho e viril" com você!
— Eu estava com controle da situação, estava esperando ele se aproximarem, os dois, e acabaria eles com minha fac... Cadê minha faca? - perguntou ela, se revirando na cama a procura da da lâmina.
— Está na cozinha, a usei para descascar e picar nosso café da manhã — expliquei —, e se você estava com o controle da situação, ele estava sem pilhas.
Ela tentou não rir, mas gargalhou, fazendo-me sorrir também.
— Tenho que admitir que prum frouxo, você se virou muito bem! — confessou ela.
— Na verdade melhor que você...
— Parece que sim, quando acordei pensei estar de volta ao nosso planeta, num interior é claro! — disse ela, olhando para as paredes do quarto — Como fez tudo isso?
— Respondo qualquer coisa depois que me contar tu- do que sabe sobre este lugar... Onde estamos? Quem nos trouxe pra cá? Quem eram os caras atrás de você? Por que estavam atrás de você? Como vocês conheciam a criatura que desce de meio as nuvens? Quem eram os mortos na fogueira? Que criatura era aquela? Que papo é esse de me salvar de ser queimado? E por que você estava outra vez perto da fogueira? — questionei abruptamente.
— Uau... Três anos? — parecia ser tudo que ela ouviu — O tempo passa rápido aqui! — brincou.
— Escolhe uma dessas perguntas e comece a falar! — falei num tom sério me ajeitando na cadeira — Espere, na verdade você podia dizer primeiro o seu nome, me chamo Arthur.
Ela sorriu ao ouvir meu nome, não sou um expert em reações femininas, mas hoje creio que ela havia gostado do meu nome.
— Natasha, meu nome... — respondeu ela me encarando — Tem mais café? Se tiver eu gostaria de mais um pouco.
Apressei-me a buscar mais café para nós dois, voltei a me sentar na cadeira, enquanto Natasha permanecia na cama, sentada em posição de lótus com uma segunda manta de pele pendurada em seus ombros.
— Pra ser bem sincera, não sei onde estamos, não faço a mínima ideia mesmo... — Disse ela após um gole do café — Mas é o que tento descobrir desde que cheguei aqui, e já que você está aqui há três anos, eu devo estar há uns seis anos ou mais, cheguei aos vinte e nem sei mais quantos anos tenho.
Tentei não fazer as contas, mas notei que Natasha ainda não estava na casa dos trinta.
— Sinto muito! - falei.
— Quem nos trouxe pra cá também não sei, mas sei que o garoto da flor-amarela é quem escolhe quem será trazido.
Natasha ora observava tudo que construí ali, ora me olhava nos olhos enquanto bebia um gole do café, era como se estivesse o tempo todo pronta para lutar, era uma mulher desconfiada.
— Já conversei com outros de nós nessa floresta e eles disseram o mesmo sobre como vieram parar aqui, sempre há um garoto que dá uma flor — explicou. — Sobre os caras que queria me pegar ontem, é uma espécie de polícia desse lugar, eles nos prendem na fogueira e botam fogo...
— Por que fazem isso? — perguntei curioso.
— Para a criatura nos comer! — Respondeu amedrontada — Não sei o nome dela, ou o que é aquilo, mas já estive perto de ser comida pela criatura quatro vezes, inclusive na primeira vez que vi você e te apaguei...
— Ainda dói minha cabeça! — brinquei.
— Pensei que estava me caçando, mas depois vi que era só um novato, dai te levei para longe da fogueira para não te queimarem.
Ao ouvir aqui arregalei os olhos, saber que quase fui morto nas primeiras horas na floresta me assustou.
— Te amarrei porque já vi novatos ruins aqui, na verdade todos que conheci nessa floresta eram ruins...
— Eu pareço ruim?
— Poucas pessoas verdadeiramente ruins, aparentam ser ruins, geralmente sabem camuflar bem a podridão dentro de si.
Respondeu ela, deixando claro que não confiava em mim, e achei justo, pois também não confiava nela.
— Ainda por cima, não tenho informação suficiente sobre você para ter certeza de nada até então — respondeu ela. — Voltando ao assunto, os policiais, guardas ou solda- dos, eu sei lá o que são, vivem rondando a, floresta... E de tempos em tempos capturam pessoas para dar para a criatura creio eu que, recebam algo em troca, sei lá.
Ao ouvi-la falar sobre assunto, formulei algumas teorias. Se fossem guardas ou saldados, isso dava a entender que havia uma hierarquia naquele lugar. Restava-me saber se os tais guardas eram perdidos como Natasha e eu que apenas foram promovidos, ou se eram os tais nativos das vilas fora da mata. Contudo me calei e deixei que ela falasse.
— Notei que eles falam a mesma língua que a gente, eles também são brasileiros?
— Não tenho certeza... Mas as demais pessoas que conheci aqui eram todas brasileiras — falou ela se ajeitando na cama e bebendo um pouco mais de café. — Quem eram os mortos eu não sei, acho que perdidos aleatórios como nós.
— Ok, sabe quantos são os guardinhas? — perguntei.
— Não faço ideia, mas são muitos porque já matei alguns, e outras pessoas também já mataram muitos e mesmo assim sempre aparecem mais.
— Onde é sua cabana? Disse-me três anos atrás que tinha uma? — questionei-a, também bebendo de meu café.
— E tenho, no alto da colina, o ponto mais alto da floresta, de onde da pra ver o vilarejo de casinhas de madeira dos nativos.
Explicou ela, repousando a caneca na mesa de cabe- ceira rústica e improvisada.
— Não fui eu quem construiu — disse ela, sobre a cabana onde vivia —, estava abandonada quando eu cheguei...
"Lembro-me de acordar em meio a uma floresta desconhecida, andei muita até achar uma nascente, fiz uma cabana de galhos e folhas grandes de palmeiras e embaúbas, minha mãe me ensinou quando eu era criança — disse ela, com os olhos brilhantes, emocionada pela lembrança. Sempre fazia uma para mim e meu irmão no fundo do quintal de nossa casa quando morávamos no interior de Minas... Passei muitos dias na parte baixa da floresta, um dia fui ataca por dois homens, eles arrancaram minha roupa e me tocaram... E me deixaram ali, jogada no que restou da minha cabana após levarem tudo que fosse útil, as pocas coisas que havia feito ou adquirido por minhas andanças pela floresta — os olhos se enchiam mais e mais, a cada palavra que saia de sua boca, até que o transbordar aconteceu criando duas trilha brilhantes no rosto de Natasha. Pensei que morreria... Acho que fiquei ali esperando a morte por alguns dias, sem roupas nem esperanças, sem o quê comer e beber, até numa noite veio a chuva, muito forte por sinal, foi como se as gotas que caiam em mim fossem mágicas. Aos poucos tive força para me sentar e beber da água da chuva com uma folha. Sabendo que não era seguro aqui em baixo, decidi ir para o lugar mais alto da floresta, e levei muito tempo pra chegar lá e passei por muitas situações difíceis, contudo uma situação em especial mudou tudo...
— Que história em, você é uma mulher muito forte! - comentei encarando-a.
— Tive que ficar, era ser forte eu ser estuprada uma vez por semana, quantas mulheres além de mim você já viu por aí?
Grasnou ela me encarando, contudo não me atrevi responder, afinal — não compreendia a dor que sentia — tinha apenas uma vaga noção do quão ruim era para uma mulher viver num lugar como aquele, rodeada por homens ignorantes no seu mais primitivo modo de ser, livres para fazer o quê bem entenderem.
— Quando cheguei no alto da floresta, vi o vilarejo, decidi ir até lá — Natasha continuo —, mas há uma barreira eletromagnética que ao encostar, você é arremessado com muita força, como uma cerca elétrica, desde então venho procurando resposta pra tudo isso.
— Conseguiu alguma? — perguntei, notando que havia algo ainda não dito, um sorriso sutil no rosto de Natasha.
— Sim, encontrei a mais importante... Como sair daqui — respondeu ela com um leve sorriso no rosto.
— Mas como? Você acabou de dizer que há uma barreira eletromagnética em volta da floresta.
— Sim, ela é real, mas há um momento em que ela é desativada.
— E quando é? — perguntei, confuso e eufórico com a ideia de poder sair daquele lugar e ser livre outra vez.
— Quando a criatura desce das nuvens! — ela disse —, ontem meu plano era ficar próxima da barreira e quando fosse desativada, mas os guardas estavam na colina e me perseguiram durante o dia todo até o momento em que você me salvou...
Tentei não transparecer muita alegria, não queria ter falsas esperanças.
— Como você sabe que ela é desativada?
— Na descida anterior da criatura há alguns, vi pássaros passando para fora daqui aos montes quando a criatura desceu o que nunca vi acontecer em tempos normais, parece que enquanto ele não sobe a barreira continua inativa...
Alegrei-me com aquele informação, por mais que eu não confiasse em Natasha, acreditei em tudo que disse, me pareceu realmente alegre em ter descoberto um jeito de sair.
— Quando ele desce outra vez? — perguntei interessado.
— Ele desce sempre que a fogueira é acesa...
— Então tudo que precisamos fazer é acender fogueira e correr para a barreira?
— Basicamente...
— Impossível! — falei um pouco ríspido.
Deixei meu pessimismo falar mais alto, e duvidei, não da veracidade das informações, e sim de nossa capacidade de realizar tal plano com sucesso.
— Do local da fogueira até o alto da floresta onde é o limite mais perto deve ter uns dez quilômetros, pode ser que ele chegue mais rápido que o normal e vai tudo por água a baixo...
— Eu sei, mas notei que você tem uma mira ótima com o arco e flecha, e do alto da floresta é possível ver perfeitamente o local da fogueira, e só prepararmos a fogueira primeiro e subimos, ao chegar no lugar que falei, você atira algumas flechas na para ascender a fogueira... — explicou ela me convencendo — Daí esperamos a criatura aparecer e saímos sentido ao vilarejo dos nativos, talvez possamos viver lá, ou conseguir ajuda para voltar pra casa.
— Parece bom, mas temos que nos preparar, como comida, água, e você têm que se recuperar primeiro, talvez duas semanas sejam o suficiente, o que acha? — fiz minha proposta.
— Acho uma boa ideia, teremos tempo de esquematizar todos os detalhes — ela respondeu ela sorrindo, bebendo o resto do café que estava na caneca.
Minha esperança de sair da floresta se ascendeu nova- mente naquele dia. Por mais que tenha aprendido a gostar da vida naquele lugar, plantando e colhendo, construindo e buscando água, ainda sim o fato de ter a oportunidade de não estar preso a um lugar me enchia os olhos, durante to- do o dia ficamos ali sentados bebendo de meu café meio a- margo e conversando sobre nossos passados, e planejando nosso futuro.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro