Explique-me direito, eu não sou daqui
Acordei torcendo para estar em minha cama e meu quarto, na minha casa, no meu país, em meu estado, minha cidade e bairro, minha rua em meu quarteirão, mas não aconteceu, abri os olhos com dificuldade pela claridade do dia, o quê pra mim foi estranho já que na noite passada nuvens densas e carregadas estacionaram em cima da floresta. Estava amarrado a beira dos restos de uma pequena fogueira, de frente para mim estava minha raptora, ou caçadora caso eu fosse virar comida de canibal, embora logo notei que não se tratava de uma nativa. A bela mulher de aproximadamente vinte e cinco há trinta anos, afiava com um canivete prateado uma vara de madeira, que pen- sei ser uma provável lança.
Ela me olhava por entre seus enormes cabelos cacheados que balançavam repetidamente ao vento suave, com a claridade do dia pude ver melhor aquela que havia me feito dormir. Transparecia cansaço, havia muitas cicatrizes sobre a pele negra — ressecada como casca de cacau —, e os olhos caramelados me encarava de forma agressiva e desconcertante.
— Que lugar é esse? — perguntei a fim de quebrar o gelo, e esclarecer um possível mal-entendido, mas fui total- mente ignorado — Ok, quer dizer que você me bate, me mantém prisioneiro e ainda não vai falar nada? — elevei um pouco o tom de minha voz, na intenção de intimidá-la.
Ela, porém, se levantou, pude ver com clareza o belo corpo dotado de curvas extremamente bem desenvolvidas, aparentemente resultado de bastante malhação, vestia uma calça de malha justa ao corpo de cor preta e blusa seguindo o mesmo perfil, não entendia como conseguia permanecer vestida de tal forma naquele calor insuportável. Dirigiu-se para perto de mim e parando em minha frente se abaixou, olhou-me nos olhos e passou o canivete da mão direita para a esquerda onde segurava a vara de madeira, e lançou um tapa em meu rosto fazendo-me virar a cabeça para o lado de tão forte.
— Filha da mãe! — gritei, sentido minha face queimar — Se me bater outra vez eu juro que...
— Que, o quê? — ela me interrompeu, aproximando o rosto do meu — Seu merda!
— Ótimo, iniciamos um diálogo... — falei, ainda sentindo meu maxilar doer e minha cabeça latejar por dentro — Isso é bom, agora poderia responder minha pergunta?
— Eu descobri sozinha, por que deveria te contar? — ela perguntou.
— Você é do tipo de pessoa que responde pergunta com outra pergunta?
— Você é do tipo babaca que se acha engraçado? — ela rebateu.
— Isso responde minha pergunta, e respondendo, ultimamente bastantes pessoas me chamaram de babaca então, eu acho que sou um babaca, embora não me ache engraçado. — respondi, tentando ignorar a dor.
— Como veio parar aqui? — perguntou-me ela, voltando para onde estava.
— Não faço a mínima ideia, já ia te perguntar se foi você que me deu uma paulada e me trouxe para cá!
— Sério que você tem que fazer piadinha com tudo? — esbravejou a mulher.
— Não é piada, estou sem criatividade, ia perguntar isso mesmo!
Ouvindo aquilo a moça me olhou atenciosamente e perguntou:
— Te deram uma paulada e trouxeram para cá mesmo?
— Eu não sei se foi isso, só me lembro de ter acordado no meio dessa floresta, é a Amazônia?
— Do que se lembra antes de acordar aqui? – perguntou ela, já não tão atenciosa.
— Acordei cedo e fui a praia com minha namorada, demos um mergulho e tomamos uma água de coco, de- pois...
— Não o dia todo, não me importo com sua vida babaca, avança pra última lembrança que tem da terra! — ordenou ela interrompendo meu desabafo.
— Um garoto...
— O quê tem a merda do garoto? Ele te deu uma flor? — interrompeu-me outra vez.
— Sim o garoto me deu uma flor-amarela e...
— E falou tinha um cheiro maravilhoso?...
— Isso mesmo! - respondi surpreso.
— Daí você inocente meteu o nariz e cheirou o perfume da flor, desmaiou e acordou aqui? - concluiu ela.
— Exatamente, como sabe... Não me diz que você é o garoto! — brinquei para descontrair.
O humor sempre foi minha válvula de escape em situ- ações como aquele. Lembro-me quando fui preso por posse de drogas, eram apenas algumas gramas de maconha, pela quantidade eu nem seria levado para a delegacia, claro, se minha boca se mantivesse fechada. Eu não conseguia parar de rir, fazer piadas e tratar os policiais com grande ironia e sarcasmo, e cidadãos mineiros — duvido que algum esteja lendo isso, afinal, faz um bom tempo que estou longe de Minas — sabem bem como os policiais do estado não tem nem paciência, e menos ainda senso de humor, no fim, meu pai teve de ir me buscar.
— Imbecil... Aconteceu o mesmo comigo — grasnou a mulher, ajeitando as mechas que caiam sobre a testa ela. Dois dias depois de eu perder meu marido em um acidente de carro.
— Mas, me responda uma coisa — algo que minha agressora havia dito antes me chamou atenção —, você me perguntou sobre minha última lembrança na terra, você quis dizer o que eu acho que quis dizer?
— Sim — ela me encarou, mordendo o canto interno da boca —, não estamos precisamente na terra é muito semelhante mais não é, eles chamam de terra sem lei...
— Eles quem? Tem mais pessoas aqui? — fiquei surpreso com tal informação.
— Há outros como nós aqui, presos nessa floresta tendo que sobreviver ao frio, fome, sede, aos animais selvagens e aos humanos selvagens...
— Bom você ter falado de água, estou com muita sede desde ontem, estava procurando água mais não achei, você tem? — já havia pensado em pedir antes, mas depois do tapa fiquei receoso.
Ela então retirou de dentro de uma bolsa jogada ao chão perto de si, um cantil, em seguida se levantou, veio até mim e novamente se abaixou em minha frente, fechei os olhos me preparando para um novo golpe da mulher estressada.
— Medroso e frouxo — disse ela passando o canivete entre os ramos que prendiam minhas mãos. Quando abri os olhos, não pude deixar de notar os fartos seios, sal- tando pelo decote, junto a meu rosto.
— Uau!
— Não olha muito não babaca! — ela deixou perto de mim o cantil e voltou para onde estava.
— Você já tentou achar uma saída, ou saber exatamente que lugar é esse? — perguntei após saciar minha sede.
— Não há como sair daqui, existe uma barreira que não deixa nada sair ou entrar, e ainda não sei muita coisa sobre este lugar apenas como sobreviver mesmo... É o que eu tenho feito desde que cheguei! — explicou a mulher — Sei também que há muitos seres esquisitos por aqui, alguns animais desconhecidos, uns apenas feios e estranhos, e outros estranhos e selvagens.
— Quem entraria aqui? — perguntei, confuso.
— Nativos! — ela respondeu — Do alto da serra é possível ver cidades, estradas, casas, pessoas... Essa floresta está bem isolada de tudo — ela, apontou para o cume de um grande monte por trás de mim.
— Então o plano é sobrevivemos aqui para sempre?
— Se esse é o seu plano eu não sei, mas é o meu! — afirmou ela sem tirar os olhos dos afazeres.
— Algum conselho para um novato? — perguntei.
— Procure um bom lugar para morar, uma caverna de preferência...
— Tenho um lugar assim, uma pedreira!
— Ótimo... Mas tente não falar para ninguém onde fica seu idiota — parabenizou-me — Faça lanças de madeiras pra caçar, arco e flechas, vasilhas de barro ou de pedras, sei lá, algo que dê para cozinhar, armazenar água e comer... E procure também por pedras de pederneiras, da pra encontrar no leito do rio...
— Você tem um lugar assim? — perguntei na inocência.
— Sim eu tenho, mas não vou te dizer onde é, muito me- nos lavar você comigo! — ela grasnou me encarando — Há aqueles que construíram cabanas de madeiras, outros de barro e bambu, alguns de pedras, dê seu jeito, observe as casas dos bichos se não souber fazer uma, talvez aprenda algo.
— Onde fica esse rio que mencionou?
— Fica mais ou menos um quilômetro pra lá — ela apontou a direção, fechando o canivete.
— Minha pedreira fica pra lá... Será que é perto?
— Não adianta vir com papinho, não irei falar nada sobre minha localização... — Esbravejou a mulher, se levantando apoiando na lança recém-apontada.
— Eu sei, e tanto faz... Voltarei para minha caverna e construirei uma boa cerca, uma boa cama para dormir! — falei.
E não era da boca para fora, afinal, diferente do quê àquela mulher pensava, eu era bom em construir coisas na mata, meu pai era um exímio caçador. Durante minha infância e adolescência, passei muito tempo com ele mata afora, construindo abrigos, armadilhas e rasteando água.
— Com certeza deve ter nascentes em meio a floresta, irei procurar.
— Ótimo, vou me indo então, tenho que caçar algo para comer e já estou perdendo tempo demais por aqui, muitos imbecis invadem as cabanas dos outros e destroem tudo — a agressora pôs-se a caminhar.
Levantei-me em seguida, tomei mais um gole da água que ela me dera, e tapando-o novamente estendi minha mão para entregá-la.
— Tenho outros desse, você precisa mais que eu no mo- mento — ela me encarou de cima a baixo, e como se sentisse pena, me fez um convite:
— Vou até o rio pegar alguns peixes, pode vir comigo se quiser, é até bom que você já fica sabendo onde é e já leva alguns peixes com você... E minha dica mais importante é não volte para essa região, é perigoso aqui, e nunca vá onde tem fogo pode ser uma armadilha, pode acabar virando co- mida! – se a intenção dela era de me deixar como medo, ela conseguiu.
Contudo, me animei com o convite e as dicas, a segui até o leito do tal rio de águas cristalinas, onde pescamos com a lança feita por ela. Fiquei com cinco peixes, enquanto ela levou mais de dez. A mulher misteriosa ainda fez questão de encontrar duas pedras das quais ela havia mencionado, as pederneiras para fazer fogo mais fácil.
Nos despedimos e segui sentido a correnteza das águas, crendo que encontraria minha pedreira. E de fato não houve dificuldades para encontrar a pedreira, catei alguns gravetos e montei novamente a fogueira no limite de pequenas pedras em círculo. Ao ascendê-la, espetei um dos peixes e o coloquei para assar. E o resto da tarde e a noite, fiquei apenas olhando para a imensa floresta projetando em minha mente como construiria meu lar.
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