Depois do fim
1.
Minha omma posicionou o metrônomo sobre o piano. Tac... tac... tac... tac, um andamento constante. Pousou as mãos no colo e olhou para mim, pedindo para que eu me preparasse. Coloquei os dedos em cima das teclas. Ela arrumou minha franja, pinçando uma mecha para longe dos meus olhos. Ela sempre cheirava a manteiga e trigo depois de passar o dia inteiro na cozinha de nossa padaria, sovando massas e pincelando pães.
"E a partitura?", perguntei a ela.
"Sem partitura desta vez. Você sabe tudo de cabeça."
Olhei para as teclas. Eu não sabia. Mas, atrás de nós, harabeoji estava sentado em sua poltrona de brechó, aguardando minha apresentação. Eu não podia decepcioná-los, nenhum deles. Não entendia muito bem porquê, mas tocar bem, fazer meus dedos serem absolutamente impecáveis sobre as teclas era importante para eles, tão importante quanto decorar palavras em coreano e manter nosso país fluindo no sangue.
Os Min vinham de uma extensa linhagem de músicos. Pelo que mamãe me contava – ela havia aprendido o português com certa facilidade, enquanto harabeoji se esforçava para manter-se fiel ao seu idioma de origem. Ele acreditava que se aprendesse português, sua memória o sabotaria e empurraria pouco a pouco o coreano para o esquecimento – nossos ancestrais viviam de música, num tempo em que Coréia do Sul ainda era uma promessa de prosperidade. Mas, com o passar dos anos, com a Nova Ordem mundial, arcos de violino foram trocados pelo tear na indústria têxtil, e o som das notas musicais foi substituído pelo ruído do maquinário.
Algumas famílias guardam joias e móveis de herança, mas os Min guardam partituras e instrumentos musicais. Omma tinha uma caixa cheia de peças de Mozart e Bach, Liszt, Debussy, Brahms e, seu favorito, Lang Lang, primeiro pianista Chinês a ser contratado pela Orquestra Filarmônica de Viena e de Berlim.
Desde que eu podia me lembrar, os planos de omma para mim não eram menos pretenciosos que os de seu ídolo, Lang Lang. Uma vida árdua de muito treino, estudo e dedicação e uma bolsa de estudos em uma das oito melhores escolas de música do mundo. Para mim, ela deixava a responsabilidade de decidir qual delas seria.
Então, como uma boa planejadora, omma fazia o que estava a seu alcance para me colocar o mais alto possível, o mais perto possível do sonho dela. Toda a herança financeira de nossa família escoava para minha educação; ela abrira mão de uma razoável porção apenas para se reestabelecer comigo e harabeoji no Brasil e abrir seu próprio negócio, uma pequena panificadora no centro do Bom Retiro, São Paulo.
"Você pode ser o primeiro coreano lá fora, Yoon", omma costumava dizer, como uma oração, quando eu acertava uma composição do início ao fim, o que era bastante raro.
Meu harabeoji pigarreou lá atrás. Omma segurou meu queixo e o ergueu em sua direção. Encarei os botões de sua blusa porque sabia o que ela ia fazer, o que ia dizer.
"Olhe para mim, Minie."
Eu a olhei, meus doze anos de idade transformando-se em cinco diante de seu olhar exigente.
"Quando você crescer, vai encontrar muros te impedindo de chegar ao seu sonho. Mas você tem o que os outros não têm. Você tem a técnica, tem o amor e a raiva, ambos aqui", ela tocou meu peito com seus dedos miúdos. E então, com um sorriso triste e doce: "Música não é só estudo e prática. É apa. Você deve escutar a si mesmo enquanto escuta a música. Agora toque."
O metrônomo tiquetaqueou. Para lá e para cá, para lá e para cá. A casa ficou completamente silenciosa. Ao meu lado, a respiração suave de omma sincronizada com a minha era um compasso mais eficaz que o do metrônomo. Deslizei os dedos sobre as teclas.
"De olhos fechados", ela sussurrou em meu ouvido.
Fechei os olhos. Era melhor assim, embora fosse mais difícil. Quando eu fechava os olhos, conseguia encontrar um caminho brilhando em meio à escuridão. Eu gostava de imaginá-lo como uma pista de decolagem.
Toquei as primeiras notas, as que eu errara tantas vezes que já tinha decorado, e omma aprumou-se melhor na banqueta. Tocar ao lado dela... havia algo de mágico nisso. Como se todas as pontas de um grande enigma se encontrassem. Como se meus ancestrais, esquecidos na Coréia do Sul, suspirassem de orgulho e estendessem as mãos para mim, ajudando-me a subir no pódio reservado apenas para os impecáveis. Para os que sabem seu lugar no mundo.
Não sei bem quando o sonho de omma tornou-se o meu. Talvez desde que ela tocava com a barriga estufada contra as teclas? Talvez até antes disso? Tudo que eu sabia é que a música, o som daquelas notas, me levava para uma nova dimensão. E nesta dimensão, havia paz e infinitude. Havia uma beleza pulsante e a promessa de habitar um lugar permitido para poucos.
O mundo se calava ao meu redor e eu estava de volta à placenta, mergulhado num universo onde existia apenas uma cascata de notas derramando-se através de mim. Muitos metros acima do chão, um coração acelerando, ganhando asas. Era como respirar; mais do que isso até, como ser queimado por luz quente, um alívio completo e arrasador.
Eu passeava por esse lugar até as últimas notas chegarem. A parte que eu não sabia, a parte do final, era um emaranhado de notas que a minha memória não conseguia organizar. Eu já havia escutado omma tocar aquela peça, no entanto, e lembrava dos sons, mas o nervosismo deixava meus dedos pesados, minha respiração afoita.
Quando eu tocava, quase sempre chorava, não porque ficasse triste ou muito feliz, mas porque me sentia cheio. Tão, tão cheio, a ponto de despedaçar.
Terminei e levantei a cabeça para procurar a aprovação no rosto de omma, mas ela apenas me observou, os lábios cheios bem fechados, os olhos úmidos.
"Você errou dois andamentos, querido."
Ela enxugou minhas lágrimas com os pulsos e levantou para preparar o jantar.
2.
Enquanto visto minhas roupas, sinto o suor lambendo minha nuca, umedecendo os cabelos em minhas têmporas. O verão está sendo tão implacável que as cigarras estão berrando lá fora, atormentadas, e minhas narinas ardem ao puxar o ar. É como respirar dentro de uma sauna.
Termino de abotoar a camisa e olho no espelho, imaginando quando será que minhas lágrimas vão enfim surgir para se misturar ao suor do meu rosto. O garoto que me olha de volta é magro, branco como algodão e parece estar cansado, muito cansado. Ele usa um terno preto alugado, um laço preto amarrado no braço e outro no pescoço, e sabe que deverá usá-lo pelos próximos 100 dias, em respeito ao luto por sua omma.
Seus olhos puxados são como vírgulas deitadas sobre suas bochechas cheias e arredondadas. Os cabelos fartos e escuros estão penteados sobre a testa, grudando nas orelhas.
Ele parece respirar devagar, tisicamente, como se tentasse se manter de pé debaixo de tanto peso.
Não sinto absolutamente nada ao vê-lo, nenhum tipo de familiaridade ou desgosto ou compaixão. É a primeira vez em que tudo está calado dentro de mim. Por fora, minha pele queima, mas por dentro há um vazio oco.
Desço as escadas para encontrar meu harabeoji. Ele está num canto da sala, conversando com a omma de Jimin, seu corpo franzino e curvado parecendo ainda menor nas vestes pretas. Eu olho para tudo ao redor – o salão impessoal, os estranhos que não param de chegar, e não suporto olhá-los. Omma e harabeoji sempre foram reservados, mas adorados pela vizinhança, talvez pelas maneiras meigas de minha omma e da quantidade de vezes que ela preparou comida coreana para presentear os vizinhos. Ou provavelmente porque ela cheirava a pão quente. Eles estão ali, prestando seus sentimentos, mas parece errado. Minha família, minha verdadeira família, não existe mais.
Segundo harabeoji, o certo seria fazermos o velório em nossa casa, mas foi preciso alugar um salão para cerimônias fúnebres desde que nosso apartamento foi destruído pelo fogo. Harabeoji teve que adaptar nossas tradições às necessidades das circunstâncias – precisamos dar algo à omma, mesmo que seja algo distorcido. Mas o biombo está ali, coberto de fotos de omma, quase todas tiradas na Coréia, antes de ela vir para o Brasil com harabeoji. Exceto uma, a que ela está grávida, tirada na porta de nosso prédio velho agora interditado por faixas amarelas. Foi harabeoji quem a tirou, com uma polaroid garimpada no subúrbio de Seoul. Omma está de vestido amarelo, os cabelos curtos e cheios brilhando ao sol, os olhos apertados e a boca em forma de botão de rosa. Ela está erguendo uma das mãos para proteger o rosto da claridade da manhã, e sua barriga está tão grande que suas pernas finas parecem meio envergadas.
Acho que é agora, enfim vou chorar, ao olhar aquela foto. Mas minha garganta está fechada. Meu coração está fechado. Onde está a dor quando preciso dela, onde está o caos?
Alguém pega no meu ombro, mas não me importo. Não há nada que eles possam dizer agora, nada que meus ouvidos queiram escutar.
Vou andando em direção ao biombo – ao que está escondido atrás dele. Vejo a fumaça das velas e dos incensos criando uma bruma densa, como no dia do incêndio. Os bombeiros gritando quando virei na esquina da nossa rua. As chamas lambendo as paredes de fora de nosso prédio de três andares, a água as açoitando em colunas grossas, dragões colossais desenhados no ar, se abraçando.
Como naquele dia, meus olhos ardem.
Vejo a ponta de um cobertor branco e uma forma sólida esticada embaixo dele, e é nesse momento, nesse exato momento, que sei que não devo avançar mais. Acho que não me restou mais nada, mas meu peito aperta, uma pontada de aflição alertando-me de que ainda existe uma última coisa que o Minie de omma quer reter. Não sei o que é, mas sinto o terror de perdê-la, a inevitabilidade desse momento é tudo que tenho.
"Yoongi?"
A voz atrás de mim é baixa, quase incrédula. A mão que me puxa sem nenhuma cerimônia é afável e quente em minha nuca. E então estou sendo levado por entre as pessoas, através da fumaça e para longe das lamúrias de harabeoji. Jimin me arrasta no calor do domingo, e enfim nos sentamos na praça, cercados de pombos. O céu de São Paulo é opaco e pesado como uma estufa sobre nossas cabeças. A cidade rumina e chia sem parar, não sei para que direção o sol está indo porque nem ao menos consigo encontrá-lo. Só existe nuvem e brancura. Pode ser de manhã ou de tarde, mas é mais provável que seja um tempo indefinido, sem hora nenhuma. Não bate um vento, não existe oxigênio, minha pele está pinicando de agonia.
Jimin não diz nada, só chora, produzindo sons estrangulados. Sinto inveja dele, porque ele ri e chora sem nenhum esforço ou vergonha, e sempre que o faz é tão intenso e verdadeiro que, por um instante, Jimin é uma revelação.
"Foi o piano", eu digo. Jimin enxuga as lágrimas e se recosta no banco, os olhos vermelhos vagando pela rua. "Ouvi os bombeiros conversando com meu harabeoji, dizendo que o fogo pegou na madeira do piano e o fez se espalhar para os quartos. Ela estava dormindo na hora. Não conseguiu sair. Foi o piano."
O bolo em minha garganta ameaça romper, mas quando respiro fundo, ele dobra de tamanho, me sufocando ainda mais.
Jimin franze a testa, como se seu estômago revirasse. Então, ele volta a se dobrar numa bola.
Omma gostava de Jimin quase tanto quanto gostava de suas novelas coreanas; na verdade, ela passou a adorá-lo depois que Jimin as gravou para ela, em DVDs que ela empilhou no móvel atrás do piano. É claro, estão todos carbonizados agora. Jimin dizia que minha omma tinha mãos suaves e um abraço macio.
Então, fico aliviado que pelo menos Jimin saiba como chorar de verdade por ela, ele é minha metade boa. Eu o olho. Ele está recurvado sobre os joelhos, o rosto escondido nas mãos, as mechas escuras e macias se espalham em todas as direções ao redor de sua cabeça. Jimin usa uma camisa preta social, quente demais para um dia como o de hoje, e ela está salpicada de suor sobre suas costas trêmulas. Ele a usa por mim, porque sabe da formalidade de nossos rituais. Ele chora por mim, porque sabe que não consigo.
Eu não sei como fazer isso.
Você deve escutar a si mesmo enquanto escuta a música.
Você deve escutar a si mesmo.
Mas só ouço Jimin. E o cicio amortecido da cidade
3.
Minha testa está comprimida contra o vidro da sala de aula enquanto olho para a agitação no pátio lá embaixo, a gritaria das crianças mais novas e os palavrões que os garotos do nono ano estão berrando ao jogar futebol. O mundo soa distante, absorvido através de uma película. Aqui em cima, o silêncio me mantém em segurança até a próxima aula, a qual planejo passar dormindo. O chiado do ventilador girando no teto é melancólico, e o vento que ele faz circular é abafado e cheira a sanduíche de atum.
Não dormi direito na noite passada, ajudando harabeoji a organizar as caixas para a mudança. Vamos morar mais perto da padaria de omma, que agora ficará sob os cuidados de harabeoji. Levamos quase a madrugada inteira decidindo o que levaríamos e o que não levaríamos. Harabeoji preferiu encaixotar o mínimo possível, pois nossa casa será ainda menor do que a anterior.
Nossa antiga casa havia sido comprada com as economias de omma. Era razoavelmente espaçosa, com uma arquitetura antiga e um pé direito alto. A parte externa do prédio era coberta com tijolos laranjados e os arcos das janelas eram pintados de branco. Omma decorava os parapeitos com rosas-de-saron, sua flor preferida, símbolo da Coréia. Cada um de nós tinha um quarto, e havia até mesmo uma televisão moderna na sala, mas não tão destacada quanto o piano.
Eu tinha acompanhado harabeoji nas visitas à nossa futura casa, não porque ele me deixasse resolver alguma coisa, mas porque seu coreano era incompreensível para os corretores. Por fim, calculando as despesas com minha escola, alimentação e os remédios de harabeoji, o que sobrava dava para pagar um sobrado no Bom Retiro, numa rua afastada da parte central.
Depois que terminamos com as caixas e harabeoji foi se deitar no quartinho dos fundos, o único que restara intocado pelas chamas, fiquei recostado no sofá da sala, olhando para as manchas pretas que o fogo criara sobre o papel de parede, como imensas feridas abertas. O incêndio começara com um curto circuito numa das tomadas, alastrara-se pela cortina da sala e rapidamente consumiu o piano, segundo os peritos. O piano ficava perto da parede que dava para o quarto de omma. E foi assim que aconteceu. Os quartos estavam destruídos. A sala, a cozinha e o hall de entrada estavam praticamente intactos. Na hora que o fogo começou, não havia ninguém lá.
Teria sido melhor reformar o apartamento. Eu teria me conformado com a reforma, porque seria menos dispendiosa, mas no fundo ficava grato por irmos para outro lugar. Se dependesse da vontade de harabeoji estaríamos de volta à Coréia no próximo voo. Mas, num esforço de manter os planos de omma, eu deveria terminar os estudos e passar para uma das oito melhores escolas de música do mundo.
Antes, quando omma estava viva, esse sonho parecia quase fácil. A forma como ela falava, puxando as mechas da minha franja para longe dos meus olhos e sorrindo, fazia com que estudar numa das oito melhores escolas de música do mundo soasse incrível. Uma aventura. E eu conseguiria, porque não havia nada que omma sonhasse que não se realizasse.
O único problema é que agora não temos mais um piano para que eu treine e, sinceramente, meu estômago revira toda vez que penso no som de um piano ou de qualquer coisa relacionada à música clássica. Meus ouvidos estão sangrando e eu não sei se um dia vão curar. A caixa com as partituras de omma virou cinzas e, mesmo que eu tenha muitas peças guardadas na cabeça, todas elas estão soterradas no entorpecimento.
As oito melhores escolas de música do mundo é um barco desancorado sendo levado pelas ondas, à deriva, e vejo-o sumindo lentamente no horizonte do meu futuro perdido.
Alguém entra na sala de aula, provavelmente uma garota vindo pegar maquiagem na mochila ou algum casal do terceiro ano procurando uma sala vazia para se agarrar. Ajeito o moletom embaixo de mim, acomodando-me melhor contra o vidro da janela e finjo estar dormindo, finjo ser invisível, o que sei fazer de melhor. Mas claramente não funciona, porque é nessa hora que Julian, um garoto do sexto ano, atira uma bola na minha direção.
De repente, a sala não está mais tranquila – Julian e os outros garotos entram fazendo algazarra, empurrando carteiras e rindo alto. A bola que Julian jogou bate na lateral do meu corpo e sai quicando pelo chão até ficar presa debaixo de uma cadeira.
Pela quantidade de confusão que Julian apronta nessa escola, tenho certeza de que já deveria ter sido expulso se seu pai não fosse empresário. Julian está aqui porque paga a mensalidade integralmente, não faz parte da fatia que engloba 60% dos alunos daqui, incluindo eu, que precisam sustentar notas excelentes para manter a bolsa de trinta por cento de desconto.
Existe uma certa hierarquia no Liceu Maria do Bom Coração, ou LIMBO, como carinhosamente apelidamos, porque estamos na era das siglas e porque um O vira facilmente um C nos rabiscos nas portas dos reservados do banheiro masculino. E porque, afinal, estamos todos vagando indecisos por aqui enquanto nossos pais pagam uma fortuna esperando que sigamos um caminho que, na maioria das vezes, nos parece impossível de alcançar.
Seja como for, Julian está aqui porque, nesta hierarquia de babacas, é o pai dele que paga o salário da diretora. Isso dá a Julian certos direitos, como espancar outros alunos sem levar punições muito duras e passar de ano com média seis.
"Min Yoongi!", ele grita, um cumprimento que soa como zombaria. Os outros garotos riem.
Eu me viro para ele, mas não digo nada, porque a humilhação é o combustível do ódio de Julian e ele adora direcionar todas as suas miras para mim, sempre. Com Julian, a coisa toda funciona melhor se eu me fingir de morto, que é exatamente como estou me sentindo agora.
Julian olha para o laço preto amarrado em meu braço. Meu estômago congela – embora eu não me incomode em tê-los pelo luto, por meu harabeoji e pelas tradições que ele quer continuar seguindo, os garotos dessa escola costumam olhar com desdém para tudo que não é comum para eles. Eu não sou comum para eles. Eu sou a coisa mais estranha que eles já viram na vida e isso, por alguma razão, os irrita muito.
"Que merda é essa?", Julian puxa a ponta do lenço no meu braço.
"Não", eu afasto sua mão, fingindo tédio. Isso fere a vaidade de Julian, que me empurra.
"Ei, Min Yoongi", um dos garotos diz atrás do corpanzil de Julian. É Dimitri. Éramos amigos no jardim de infância, até que Julian chegou e me tornou um saco de pancadas o qual ninguém deseja estar perto. "Como se diz chupador de pau em coreano?"
Todos acham graça, até que Jimin aparece na porta. Eu o enxergo por entre o vão do braço de Julian e a lateral de seu corpo quando ele ergue o punho para me puxar pela gola da camisa. Seu cabelo está um alvoroço e ele me encarava por trás das lentes grossas dos óculos, abatido.
"Hoje não, Julian", ele diz, e sua voz é tão pesada e triste que até mesmo os outros garotos estranham, mas Julian me solta e se vira para Jimin com ódio renovado. Eu fecho os olhos – tudo que ele quer é atenção para começar uma nova briga, e tudo que eu não quero, tudo que não posso suportar hoje é passar por um episódio de violência quando já me sinto dolorido de todas as formas possíveis. Além disso, meu harabeoji não merece que eu chegue em casa com uma advertência da escola, ele tem tantas questões mais importantes para lidar agora.
Mas Jimin não consegue se conter. Ele tem esse ar de justiceiro que ainda não sei se gosto ou detesto. Hoje, estou detestando.
"Como se diz chupador de pau em coreano?", Julian repete, dessa vez para Jimin, ainda parado na porta.
"É verdade que coreanos têm pau pequeno? Vocês dois disputam para ver quem tem o pau menor?", é Biel, outro amigo de Julian, e ele também está falando com Jimin. Ele é o mais velho de todos na sala, mas por ser repetente, está atrasado dois anos. Apanho por vir de onde venho e tirar notas boas, mas ninguém parece se incomodar com a burrice aguda de Biel. Ele é popular.
Num outro dia, eu provavelmente teria abaixado as calças e respondido à pergunta de Biel na frente de todos, e certamente apanharia em dobro por isso, mas não hoje. Hoje, realmente só quero que me deixem em paz.
Mas é essa inércia que incomoda Julian. Eu vejo a raiva crescendo em seu peito, inflando suas narinas, percorrendo seus ombros.
"Hoje não", Jimin diz outra vez, mas seu tom de voz mudou. É mais firme. Mais provocativo.
Dimitri chuta uma cadeira, e depois outra, abrindo espaço na sala, formando uma arena entre as mochilas. Eu me desencosto na janela, implorando para que Jimin pare. Vá embora. Mas Jimin avança. Ele nunca se intimidou com brigas, mesmo que perca todas elas. Nós somos os dois perdedores da escola, a diferença é que eu me importo, e Jimin não.
A barulheira atrai os alunos que passam pelos corredores, e do nada alguém está gritando briga! briga!, como uma torcida organizada. É uma tremenda covardia, três garotos grandes contra dois meninos mirrados, mas as pessoas estão se acumulando na porta para ver e não para ajudar. Essa é uma das razões pela qual odeio essa escola e cada ser humano dentro dela, exceto Jimin.
Porque, quando a briga começa, Jimin está mais uma vez fazendo isso por mim. Apanhando por mim. Sofrendo por mim. Eu tento defendê-lo, mas quando entro na briga, sei que não vou durar nem dois segundos. Um instante depois, estou apanhando, no rosto, no estômago, nas costas, aonde quer que a violência de Julian, Dimitri e Biel queira ir. Julian tenta a todo custo me acertar entre as pernas, mas meus braços estão tão esticados e minhas mãos estão tão apertadas entre as virilhas que formam uma barreira de aço, e então Julian grita para Dimitri e Biel o ajudarem a arrancar minhas calças.
Eles me agarram, me arrastam e me puxam, e não sei como consigo resistir. Minha calça está na metade do meu traseiro quando o inspetor irrompe pela massa de alunos na porta. Os professores chegam, e a diretora. Eles tiram o trio de cima de mim e de Jimin como se afastassem lobos da carniça, e ficamos no chão, dobrados e ofegantes. Sinto gosto de sangue na boca e minhas costas estão no chão frio, minha blusa foi totalmente despedaçada.
Alguém me agarra pelas axilas e me coloca de pé. A diretora está dizendo algo, indignada, e vejo um borrão de cores passando por mim conforme empurro os alunos que bloqueiam a saída para chegar aos corredores. Não olho para cima, olho para o padrão de azulejos portugueses passando depressa debaixo de meus Converses. Sinto olhares nas minhas costas, acusações, risinhos, e sinto nojo, tanto nojo que sou capaz de vomitar em suas cabeças. Em vez disso, entro no banheiro masculino, com Jimin logo atrás de mim. Ele passa a chave e se recosta na parede. Arquejamos juntos.
Eu me olho no espelho. Estou devastado. Minha camisa pende em trapos no meu dorso, expondo minha pele cheia de vergões vermelhos que logo, logo serão hematomas. O brasão do Liceu é como uma bandeira picotada a dentadas em meu peito. Os passadores da minha calça jeans foram rasgados e, em algum momento durante a briga, fui acertado no rim. Está doendo. Meu laço preto de luto foi arrancado e tudo que consigo pensar é no quanto harabeoji ficará triste ao me ver sem ele.
Sei que tenho só doze anos e algo está indo muito errado na minha vida, mas não sei como consertar. Estou perdendo tudo, tudo, me estilhaçando depressa, e a única coisa que ainda me mantém aqui está encostada na porta do banheiro, respirando aos solavancos.
Olho para Jimin através do reflexo no espelho. Ele perdeu os óculos. Seus olhos castanho escuros estão em mim, nus, muito abertos, brilhantes de adrenalina e ele parece mais branco que o normal. Sua boca está inchando lentamente com um corte no lábio inferior. Mesmo assim, está mais composto que eu. Esse é outro dom seu, parecer um príncipe mesmo quando está na merda.
"Você não devia ter vindo hoje", ele diz. Vejo sangue em seus dentes, por cima do aparelho ortodôntico.
Passo o braço pelo rosto para limpar o suor.
"Posso ir dormir na sua casa, se quiser, ou você pode ir dormir na minha", ele propõe. "Não ligo para o que eles dizem."
Mas estou vendo um recuo na voz dele, uma aflição bem camuflada. Essa é uma maldição a qual não posso me livrar: perceber tanto, ver o que ninguém mais vê, os menores sinais. E vejo Jimin, seu lado escuro que ele luta para esconder por trás da imagem espetacular de garoto inatingível.
Jimin não tem boas notas. Não porque seja burro ou não goste de estudar – ele tem déficit de atenção, o que é quase igual a dizer que gosta de um monte de coisas ao mesmo tempo até se entreter com a maravilha seguinte. Sempre achei esse nome idiota, déficit de atenção. Soa como se existisse uma cota aceitável de atenção que você deve prestar em tributo à sociedade, e pessoas como Jimin estão abaixo dela.
Acho difícil imaginar que Jimin esteja abaixo de qualquer coisa. Ele dá comida para gatos de rua e abraça cachorros sem se importar em pegar pulgas. Ele levanta para dar lugar aos mais velhos no metrô e se vê lixo na rua, apanha e o joga na lixeira mais próxima, mesmo que o lixo seja dos outros, não dele. Quem faz isso? Você não faz.
Jimin também não tem um pai rico, embora venha de uma família de homens que serviu ao exército e, portanto, possuem a honra e a retidão tatuadas no caráter. Ele gosta de ser essa espécie de mártir, protetor dos excluídos. Mas eu sei. Está na forma como ele olha para mim logo depois do fim de uma briga. Como o canto de seus olhos tremem, como se temessem uma reviravolta do destino, estar em meu lugar, ser o menino que todos adoram bater para ver se meus olhos inchados ficam menores do que já são. Ninguém sente prazer em bater em Jimin. Ele só apanha por tabela. Se não fosse por mim, ele seria tão amado quanto os babacas que nos socaram, ele tem esse potencial.
Abro a torneira e lavo o rosto.
"Só me deixe em paz."
Afasto Jimin da porta e saio. Eu o deixo para trás, porque sei que está chegando o dia em que vou perdê-lo também.
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