ELA
Trabalhar como garçonete se tornou algo insuportável com o tempo. Eu passava o dia inteiro andando de um lado para o outro. Por conta da minha perna tropeçava, derrubei vários pratos e por isso perdi uma boa quantia. Eu não estava acostumada a andar tanto assim. Senti falta do meu emprego miserável no supermercado. Do silêncio no horário do jantar, já que agora Jéssica passava o tempo todo falando de sua vida tão miserável quanto a minha. A minha vida já era tão horrível. Eu não precisava ouvir o tempo todo que a vida de outro alguém era tão vazia quanto a minha.
Eu costumava a acreditar que as pessoas tinham um propósito. Que eu tinha um. Que todos nós tínhamos um destino traçado por Deus. Bem se isso for verdade o meu destino é uma tragédia. E a cada dia que passa sinto a minha vida se dissipar por entre os meus dedos e flutuar no ar seco que paira sobre mim. Eu não tenho nenhuma perspectiva de vida. Os meus sonhos morreram no dia do meu acidente. Eu morri também, mas esqueceram de me enterrar.
Cheguei em casa cansada. Tinha visto tantas faces brumosas. Cabelos brilhosos e roupas cuja o preço pagavam o meu salário. Gente rica que me olhava com pena. Mulheres com cheiros caros que apontavam para mim e diziam para os seus filhos: Estudem para vocês não ficarem como aquela moça. Eu ri de nervoso. Eu não inspirava ninguém. Foi se o tempo em que as crianças me olhavam com admiração e profundo respeito. Em que pescoços viravam em minha direção só para me verem flutuar pelo chão. O tempo em que eu era graciosa. Que a minha mãe ria e me exibia para toda a igreja. E que Tália fazia questão de mostrar as minhas fotos dançando para os moradores do prédio onde ela trabalhava. Incrível como as coisas mudam em um piscar de olhos. Uma hora você tem tudo e em menos de um segundo você já não tem mais nada.
Entrei no meu quarto e respirei fundo. Sentei-me na minha cama e tirei a prótese. O coto estava vermelho. Um banho e uma boa hidratação iria melhorar o aspecto. Meus olhos se perderam nas lascas de tinta da parede. A casa estava velha e o meu quarto tão apagado quanto eu. Meu coração saltou ao avistar um baú de madeira perto do meu guarda roupa. Eu não podia mexer nele. Prometi a mim mesma que jamais mexeria nele outra vez. Porém, também não posso me desfazer dele. O meu passado repousava ali. Dormia como uma criança adormecida. Sonhando com andorinhas e anjos com belas asas. Mas eu me levantei. Caminhei com uma perna só, dando pulinhos no chão. Apoiando as minhas mãos na parede e na cama. O baú estava aberto. Minha mãe nunca o trancou. E eu muito menos. Eu não mexia naquelas coisas há anos. Abri o baú sabendo que me arrependeria disso mais tarde.
Titi, colans, vestidos cheios de paêtes, o meu figurino da Bela Adormecida, do Lago dos Cisnes, A morte quer te beijar... Estava tudo lá. Inclusive todas as minhas sete sapatilhas, porque eu era uma menina mimada que fazia a minha pobre mãe gastar todo o seu salário com sapatilhas novas. Mas meus olhos brilharam mesmo quando eles cruzaram com a minha primeira sapatilha de ponta. Senti-me nostálgica. Eu tinha doze anos quando a recebi. Eu menstruei naquele dia. Me tornei uma mulher. Não porque corria sangue por entre o meu ventre, mas sim porque eu agora era uma bailarina que dançava na ponta. Comecei a ensaiar um solo naquele dia. Clair de Lune para o festival de inverno. A sensação de estar nos palcos invadiu novamente o meu peito. Fechei os olhos com força. Uma bruma suave e doce me envolveu. O cheiro de mofo das roupas foi substituto pelo cheiro das coxias dos palcos. Pelo cheiro de gel e spray para cabelo. O coque apertado na cabeça. A maquiagem pesada no rosto. E a música fluindo pelas minhas veias. Instigando os meus músculos. Flertando com o meu corpo. A música me seduzia. Ela pegava as minhas mãos e fazia elas balançarem pelo ar. Ela mexia os meus quadris. Alongava as minhas pernas. Sua sensualidade brincava com flexibilidade do meu corpo. E eu sorria. Sorria porque eu amava aquele flerte. Aquela paixão. Era mais forte do que eu. Nada mais importava. Então a música me beijava. E o êxtase tomava conta do meu corpo. Um encontro explosivo entre a dança e a música. O orgasmo surgia. E eu explodia de prazer. O palco era o meu lar. A dança estava em mim e eu estava nela. E a música era a minha amante.
Abri os olhos. Minha vida era a mais fácil de todas. Quando eu vi a sapatilha, a minha primeira sapatilha, um par deles estava no meu único pé. Eu havia o calçado. Apoiei as minhas mãos na parede e me levantei. Ergui o outro braço imitando um gesto do ballet. Minhas costas rígidas. Eu ainda sabia todos os passos. Todos eles. Meu pé instintivamente tentou ficar na ponta. Não deu certo. Eu caí. Bati o meu quadril no piso duro e o cotovelo também. Praguejei baixinho. E aceitei a queda. Fiquei olhando para o teto um bom tempo. Eu fui boba. Nunca mais poderia dançar.
Lágrimas saltaram do meu rosto. Eu nunca mais me encontraria. Minha alma estava perdida no fogo do inferno. Não há mais salvação para mim. Talvez a morte física seja a minha única solução.
Fechei os olhos com força e bolei um plano: tem facas na cozinha. Escolho a mais aviada e um simples corte no pulso deve resolver todos os meus problemas.
Tentei criar coragem para me levantar. Quando finalmente o fiz a face de Max apareceu na minha mente. E por incrível que pareça foi aquela face que me impediu de acabar com tudo.
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Obrigada pelos comentários no capítulo anterior! Vocês querem mais um capítulo ainda hoje? Se ultrapassarmos 30 comentários aqui eu posto :)
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