Capítulo 2
Deitada sobre a cama infantil, Carmen ergue as pernas e as agita no ar.
— Cadê o meu anjo? Cadê o anjo do papai?
A pequena e ri com os olhinhos espertos focados em mim, são esses momentos que fazem valer a pena cada hora de sono perdida, os sustos dos choros aleatórios, o estresse com as birras infantis, o pavor de ser o único responsável por ela. Aquele olhar despertou o que de melhor há em mim e tomou tudo para si.
— Cuzão, tá enrolando demais com isso aí. — Oscar reclama as minhas costas.
— Já disse pra não falar palavrão na minha casa. — Abro a fralda descartável.
— Vai se foder. A Gatinha só tem um ano, ela não entende merda nenhuma do que estamos falando.
— O cérebro do bebê é uma esponja, qualquer mer... coisa que disser pode ficar gravada nele. — Visto a fralda em minha menina.
— Falou. Quer o seu sutiã de amamentação agora?
Entrego o urso de pelúcia para Carmen, me ergo e encaro Oscar.
— Você quer que eu xingue você, mas não vai rolar.
— Quero ver quanto tempo isso vai durar. — Ele sorri com provocação. — Você fala tanto palavrão quanto eu, cuzão.
— As coisas mudaram, eu sou pai agora.
— Foi mal, cara. Esqueci que no dia em que a Gatinha nasceu, você foi castrado. Sinto muito por suas bolas.
— Seu... — O empurro para longe. — Quer falar de enrolação? Cadê o vestidinho da Carmen que eu pedi pra você?
— Não encontrei.
— Qual é o problema? — Eu pego a peça no guarda-roupa aberto. — Não sabe mais o que é um vestido rosa?
— Tem tanta coisa nesse guarda-roupa minúsculo, que não vi um vestido menor ainda.
— Crianças usam muita roupa. — Volto para junto de Carmen.
— Para o tanto que se sujam, faz sentido.
Ergo a pequena, ela ri com a movimentação, com as suaves mordidas que deixo nas dobrinhas rechonchudas de seu corpo, com os grunhidos sem sentido que faço para ela.
— Verifica se a casa está trancada, enquanto eu termino aqui. — Visto o vestido em Carmen.
— Tudo nesse lugar vive trancado, inclusive o seu cu.
Observo o homem de pé.
— Não vou falar palavrão, mas posso arrebentar a sua cara.
— Tente, cuzão. Eu desafio você, porra.
— Po. Po. Po.
A pequena atrai a nossa atenção.
— Po... Po. — Ela brinca com os pés.
— Oscar, reze pra que ela esteja imitando a galinha pintadinha.
divisória
Diante de nós, espalhadas entre as flores de crepon e letras recortadas em papel laminado que enfeitam o lugar, mães orgulhosas exibem os seus filhos, por detrás dos sorrisos abertos e espontâneos, elas julgam todos a sua volta: "Que criança mais feia", "Ainda bem que o meu filho não chora desse jeito", "O que esses homens fazem aqui?".
Olhares mal disfarçados e sussurros acompanham os nossos passos. Paro diante do mural de fotos que toma grande parte da parede e procuro entre as molduras de corações a minha pequena.
— "Mamãe, obrigada por cuidar, amar e me dar a vida. Sempre te amarei." — Oscar lê a inscrição ao redor de uma das fotos. — Dar a vida? Essa porra é uma indireta pra você?
— Que seja. Do meu modo, eu dei a vida para a Carmen.
A foto de minha menina surge diante dos meus olhos, sorridente como só ela é. "Papai, obrigada por cuidar, amar e ser minha mamãe. Sempre te amarei."
— Ganhou uma inscrição personalizada. — Oscar deixa um tapa em meu ombro. — Merecido, você é foda, irmão.
A diretora da creche se aproxima de nós.
— A mãe dela não pode vir? — A mulher despeja toda a sua compaixão sobre a pequena em braços, no fundo, ela não chegou a crer que a mãe biológica pudesse aparecer.
— Ela se desconvidou de qualquer tipo de evento.
— Entendo. — Ela força um sorriso para Oscar e eu. — De qualquer forma, aproveitem a festa.
Me movo pelo lugar, incomodado com a curiosidade que paira sobre nós.
— Cuzão, o que viemos fazer aqui? — Oscar me acompanha.
— A minha filha não vai ser privada de nada.
— A Gatinha não vai se lembrar de toda essa merda.
— Mas saberá que eu sempre estive lá.
Um rosto se destaca no grupo de conhecidas. Me viro rápido e mudo de direção.
— Elio. — A mulher frustra a minha fuga. — Que bom que veio prá apresentação.
— É o primeiro dia das mães da Carmen. — Me forço a retribuir a atenção. — É uma data simbólica.
— A Carmen está linda nesse vestidinho. — Ela sorri, deslumbrada. — Se bem que a sua filha é maravilhosa de qualquer forma. Puxou ao pai.
Rio da tentativa de me atrair.
— Não diria isso, se me conhecesse de verdade.
— Nem fodendo. — Oscar ri comigo. — Com sorte, você se contentaria em dar uma bela bifa na cara desse arrombado.
A mulher franze as sobrancelhas para ele, incomodada.
— Esse é o meu amigo, Oscar, e se o que você quer é o contato de um homem, sugiro que tente a sorte com ele.
— Minha nossa, Elio. — Ela me encara em choque.
— Foi mal, sou do tipo direto. Só tem espaço pra uma mulher em minha vida e essa é a minha filha.
Uma caixa de som apita, o tinir agudo reverbera e faz com que todos se encolham, aflitos.
— Mamães, por favor, levem as crianças do primeiro aninho para a área de apresentação.
— Aí, mamãe! Deveria ter se vestido a caráter. — Oscar ri as minhas costas.
— Também deveria ter mantido você longe daqui.
A face da minha menina se contrai incomodada com a movimentação.
— Calma, filha, isso logo acaba. — Eu coloco ela sentada no centro da almofada de coração. — O papai não vai embora.
Os olhinhos marrons me acompanham, cada passo para trás nos deixa mais distantes e faz o rostinho se contorcer, a boca se abre e resmunga contrariada.
"Fala sério, por que inventam esse tipo de merda? Já não é ruim o bastante ter de deixar eles o dia inteiro nessa porra de lugar?"
A melodia suave, calma ao ponto de se tornar irritante, começa a tocar; uma professora se aproxima, acaricia a Carmen, conversa com ela e, ao invés de distrair a menina, a perturba.
— Que bom que a Gatinha não vai se lembrar dessa porra, ela odiaria o dias das mães pro resto da vida. — Oscar se junta a mim.
— Quais são as chances dela gostar do dias das mães?
— Se pensa dessa forma, que merda fazemos aqui?
— Estou apoiando a minha filha. Estou cuidando dela como um pai de verdade deve fazer.
O choro estridente que se mistura a música é um velho conhecido, é sofrido e faz com que outras crianças ameacem se juntar a ele.
— Aqui, filha. — Aceno para ela. — Anjo.
Os bracinhos se esticam em minha direção, o rostinho contraído implora por mim e desconhece os olhares de pena e reprovação sobre ele.
— Mimada. — A fala perdida de alguém chega aos meus ouvidos. O que todos querem, é que eu pegue a minha menina e fuja dali como o pai solteiro derrotado que não sabe criar a filha.
"Me cu. Meu cu que não sei criar a minha filha."
Eu avanço alguns passos e me coloco à frente da fila de mulheres.
— Anjo. — Agito os braços para ela. — Olha o papai.
Carmen ignora os meus esforços e ameaça engatinhar em minha direção.
— "Oppa, oppa, oppa, oppa. Oppa gangnam style!"
Deixo o espírito do rapper coreano se apoderar de meu corpo, a dança estranha perde ainda mais sentido acompanhada da melodia suave, sou julgado, motivo de piada, e nada disso importa depois que Carmen começa a rir.
— Manda a ver, irmão! — O celular de Oscar toca a música certa, ele se deita ao lado de minha menina e coloca o aparelho próximo a orelha dela, a pequena grita, gargalha, e transforma a tensão em felicidade. É uma dança idiota, sim, mas nas noites insone e de choro intenso em que lutamos para nos entender; o aprendizado era lento e penoso; o cansaço chegava, dominava a ambos e não afastava o medo; era a dança idiota que nos unia, trazia calma, paciência e alimentava o amor que cresce cada vez mais rápido dentro de nós.
Avanço até Carmen e a tomo em meus braços, esquecida do sofrimento de minutos atrás, a pequena ri, os olhos marrons estudam os meus. Ouço aplausos que não são para nós, entre as tantas mulheres que nos cercam, somos duas pessoas que só serão lembradas ao nascer do próximo comentário maldoso.
— Somos nós contra o mundo, minha pequena grande menina. Nós contra o mundo.
***
* - Galinha Pintadinha. EM: PINTADINHA, Galinha. Gravadora Som Livre, 2006.
** - Gangnam Style. Em: STYLE, Gangnam. PART 1, PSY's Best 6th Part 1. PSY. YG Entertainment 2012.
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