Como tudo começou...
— Papai, deixa eu corrê. — A pequena mão tenta a todo custo se safar da prisão dos meus dedos. O sol do fim do dia, ainda intenso, dificulta a tarefa de a manter em segurança.
— Já te expliquei o porquê não pode correr na rua.
— Pometo ficá na calçada.
— Se diz: prometo — eu a corrijo.
— Pometo.
— Pro-me-to.
— Pro-me-to.
— Muito bom. Mas ainda não pode correr na rua.
— Ahhhh, papai! — A boca se pronuncia em um biquinho delicado que me obriga a lutar contra um sorriso derretido, em uma batalha perdida: aquela é a coisa mais linda que já vi na vida. Todo o meu ser é rendido a essa pequena grande menina, desde o primeiro segundo em que foquei os meus olhos nela, aquela pessoinha frágil que a enfermeira estendeu em minha direção.
"Esta é a sua filha, papai."
Meu coração palpita com a lembrança mais emocionante, e a mais aterrorizante, da minha vida. Um momento doce que ainda tem o poder de deixar um amargor em minha boca.
— Mamãe! — A pequena mão se lança para baixo com um único impulso, o suor faz palma com palma deslizarem, e observo, impotente, a razão do meu viver correr para longe.
— Carmen, volta aqui!
— Mamãe! — As perninhas se movem rua acima.
O tempo para. Registro na rua o silêncio que alivia; o dourado do sol que me impede de acompanhar a cena com clareza; a conversa aleatória na casa de algum vizinho que se mantém alheio ao meu coração disparado. Fios de cabelos negros dançam com o vento, os bracinhos sobem e, em um impulso, envolvem as pernas de uma desconhecida. Meus próprios movimentos são lentos demais enquanto a mulher gira até poder encarar a minha filha e tentar entender o que acontece.
— Oi. — A mulher sorri para a Carmen, um sorriso doce, meigo... carismático demais.
— Não é a mamãe... — ela choraminga.
— Ah, me desculpe pelo engano. — A voz melodiosa tenta seduzir. A única semelhança entre aquela mulher e a mãe biológica é a cor do cabelo, e, mesmo assim, ela conseguiu enganar minha menina.
— Filha. — Encaro os olhos marrons como terra da minha filha, olhos tão semelhantes aos meus, mas que, ao contrário de mim, ficam bem nela, combinam com os seus cabelos cor de chocolate derretido. Um presente da mãe, talvez, é impossível afirmar porque ela insiste em cobrir os fios com tintura preta, mas uma coisa é fato: nem mesmo isso deixou de ser dado de má vontade. — O que disse pra você agora mesmo?
— Desculpa. — Ela se encolhe, arrependida.
— Nunca mais faça isso, me assustou. — Acaricio os seus cabelos e encaro a moça, que ainda sorri. Atrás dela, a velha casa do Casimiro zomba dos tantos anos sem inquilino, ou talvez ria da própria mulher, um pouco baixa demais, que não faz muito para ocultar as suas janelas enguiçadas.
— Me desculpe, minha filha confundiu você com a mãe biológica.
As sobrancelhas dela se movem, confusas, por um segundo.
— Tudo bem. — A mulher se agacha em frente a Carmen e, por algum motivo, a velha casa me sorri banguela com a porta escancarada. — Se em todas as vezes que isso acontecer eu ganhar um abraço desse, espero que se confunda mais vezes.
— Posso abraça ela? — Carmen puxa a minha calça. Meus olhos inquietos buscam a placa enferrujada que há anos está fixada ali, como se a casa em si não fosse velha o suficiente e precisasse de ornamentos para acentuar o ar moribundo.
— Qual é o seu nome? — A voz melodiosa se aproveita do meu silêncio para continuar a seduzir.
— Psy. — A pequena mão torna a puxar a minha calça.
— Carmen. — Volto os meus olhos para minha menina. — O nome dela é Carmen.
— E de onde veio o apelido de Psy? — A moça torna a perguntar para ela.
— Da música. — Carmen explica, animada.
— Gangnam Style*? — A mulher me encara, admirada.
— Nem sempre somos uma boa influência para os filhos. — Dou de ombros.
— Não queo chamar Carmen. — Os pequenos olhos brilham com desaprovação para mim.
— Por que não quer se chamar Carmen? — A mulher continua o interrogatório. — É um bonito nome.
— É nome de velho.
Não posso evitar a minha careta incomodada quando calculo exatamente onde ela escutou tal frase.
— Mas toda Carmen um dia foi criança, uma criança linda como você. — A moça a contradiz e, incrivelmente, Carmen não tem outra pergunta para isso.
O objeto da minha busca continua a brincar de esconde-esconde comigo. "Onde foi parar a placa de aluga-se?"
— Eu me chamo Lupita — a mulher se apresenta.
— Nome engraçado. — A risada infantil anima o fim do dia.
— Diferente, não é? — Lupita concorda. — Quantos anos você tem?
— Assim.
Mesmo que os meus olhos insistam em continuar a busca pela velha placa, sei que a mãozinha está com a palma aberta e mostra exatamente quatro perfeitos dedinhos.
— Tudo isso?! — Lupita finge admiração. — Você já é uma mocinha.
— Não! Sô quiança. — Carmen ri.
— Se mudou pra cá? — eu me intrometo na conversa delas.
— Sim. — Lupita se levanta e me encara com suas íris negras, a pele dourada parece brilhar ainda mais com os raios de sol que a atingem. — Assinei o contrato ontem.
— Eu moro ali. — Carmen aponta, animada, para a casa ao lado.
— Isso quer dizer que somos vizinhas! — Lupita guincha para ela.
— Você vai bincá comigo? — Carmen usa a sua voz de criança pidona, um dos artifícios mais bem desenvolvidos por ela. Tento me imunizar, mas não passa de outra batalha perdida.
— Sempre que puder.
— Ebaaa! — a pequena comemora. — Binca comigo agoa?
Meu corpo se tensiona com a possibilidade de uma desconhecida se infiltrar em minha casa.
— Filha, ela deve estar ocupada — tento impedir a interação.
— Verdade, preciso arrumar as minhas coisas — Lupita concorda, para o meu alívio.
— Ahhh! — Carmen lamenta.
A nova vizinha sorri para mim.
— E como é a vizinhança? — Foi a vez dela de mudar de assunto.
— Ahn... tranquila, nunca há grandes acontecimentos.
— E quantos aos vizinhos? — ela insiste.
— Bom, o seu vizinho da direita você já conhece, é a casa do Casimiro, o cara rabugento e seu locador.
— Prefiro acreditar que o peguei em um dia ruim. — Ela ri.
— Tenho certeza de que está errada, pergunte para a Lurdes ou para o Júnior, esposa e filho dele. — Eu me viro e aponto para a casa do outro lado da rua. — Ali mora a dona Enésia.
— Ela é muuito velha! Mais velha que a vovó — Carmen comenta.
— Filha, não fale assim, é feio — eu a corrijo. — A casa ao lado é da Elisa e família, mas os vemos tanto quanto o restante da rua. São pessoas que passam algumas noites em suas casas e passeiam aos fins de semana, nunca estão por aqui.
— Compreendo. — Lupita se vira para a direita, como se buscasse o fim da rua, seu olhar vacila por um segundo. — Me adapto rápido. — Ela volta a sorrir abertamente para mim.
— Sou Elio. — Estendo a mão para ela. — Seu vizinho da esquerda e que costuma frequentar a própria casa ao menos nos fins de semana.
— Muito prazer, Elio. — Ela ri e aperta minha mão, calorosa. — Fico feliz em saber que iremos nos encontrar com mais frequência que com os nossos outros vizinhos.
— Vai reformar o lugar? — Corro os olhos pelo quintal abandonado, as enormes ervas daninhas guerreiam com a grama e vencem estoicamente a batalha.
Carmen agarra o meu braço e brinca de se pendurar.
— Creio... — Lupita desvia o olhar — que terei de fazer alguns ajustes.
Minhas sobrancelhas sobem em um sobressalto. A face da mulher cora lentamente.
— Paece a casa da bruxa má. — Carmen volta a se interessar pela conversa.
— Prefiro pensar que é a casa de uma princesa antes de encontrar o príncipe encantado — a vizinha rebate.
As mãozinhas deixam o meu braço.
— Você é uma pincesa? — Carmen pergunta com um suspiro admirado.
— Não. — Lupita sorri. — Mas talvez você deva vir morar aqui, se parece mais com uma princesa que eu.
Os olhos questionadores da minha menina se fixam na casa.
— Gosto do meu quarto. — A resposta é séria, nitidamente houve uma grande reflexão a respeito.
— Ela é muito inteligente. — A vizinha ri.
— É sim. — Encaro minha obsessão. O rosto pequenino gruda em minhas pernas com um sorriso tímido e orgulhoso de si.
— E a sua esposa? — Lupita volta a me perguntar. — Quando vou conhecer ela?
— Não tenho esposa.
A mulher me encara, envergonhada.
— Eu... sinto muito... — gagueja. — Falei algo que não devia?
— Não, está tudo bem, a mãe biológica só é um pouco ausente — eu a tranquilizo.
— Ela mora com a vovó e o vovô lá longe. — Carmen aponta direções aleatórias. — Do outo lado da cidade. Eu visito eles.
— Você deve sentir muita saudade da sua mamãe. — Lupita tenta se recompor.
— Sinto mais saudade da vovó — Carmen responde, indiferente. A vizinha me lança um olhar confuso, apenas volto a olhar para a casa atrás dela e observo o muro grosso com o qual cerquei o meu terreno. Poderia protagonizar uma verdadeira luta sobre ele com segurança, o que é o contrário das placas de concreto quebradiças e cobertas de lodo que o separam da casa do Casimiro.
— Vai morar aí sozinha? — pergunto a ela. As ervas daninhas tentam agora conquistar a calçada enquanto absolutamente nada, nem uma mera cerca de madeira, tenta as impedir.
— Sim, sou apenas eu. — Lupita abre os braços sem desfazer o seu sorriso.
— Não tem medo? — Carmen pergunta, curiosa.
— Não, já me acostumei.
— Nunca fico sem o meu papai — Carmen conta, orgulhosa.
— Você é uma garotinha de muita sorte. — Os olhos da vizinha brilham para a minha menina. Tem algo incômodo naquele olhar.
— Vamos deixar a Lupita trabalhar em paz. Diga tchau pra ela, filha.
— Tchau, Lupi! — Carmen abana a mão com entusiasmo.
— Filha, não dê apelidos. Você mal conhece a moça — chamo a sua atenção.
— Sem problemas, eu amo que me chamem de Lupi.
O sol, baixo agora, tinge o céu de laranja, mas o calor não dá trégua, e o inimigo continua a umedecer as nossas peles. Eu me curvo e pego Carmen no colo, o suor não vai me enganar uma segunda vez.
— Tchau, Lupi. — Carmen se joga em direção da vizinha, tudo o que pude fazer foi firmar o corpinho e evitar a queda iminente. Nesse meio tempo, a face dourada já se oferecia para o beijo.
— Até mais ver, Lupita — eu me despeço.
— Até mais — ela responde em voz baixa.
A subida parece mais íngreme com o peso extra.
— Gosto da Lupi. Ela vai bincá comigo, tô tãoo feliz! — Carmen conta, animada.
— Filha, nem conhecemos essa moça — eu a repreendo baixo, ainda podia sentir os olhos da estranha fixos em minhas costas.
— Ela gosta de mim, papai.
— Quase todos gostam de você, e esse é justamente um dos meus medos. — Eu a coloco no chão e busco as chaves em meu bolso. — Eu deixo você brincar com a Lupita, mas só quando o papai estiver por perto. Tudo bem? — Prego os meus olhos sérios aos dela.
— Tudo bem.
Acaricio seus cabelos e abro o portão. Carmen corre em direção a casa sem esperar por mim.
— Direto para o banho! — grito em sua direção.
— Ebaa! — ela comemora, já na varanda.
— Quer que o papai ajude você? — Sorrio para a minha doce garotinha, que salta como um canguru.
— Já sô gandinha.
— Gran-di-nha. — Introduzo a chave na fechadura.
— Gran-di-nha.
Abro a porta.
— Gran-di-nha. — Carmen dispara pela sala e corre escada acima. — Gandinha! Gandinha!
— Não corra! E segure no corrimão!
— Eu seguro! — ela grita de volta já do fim da escada.
A porta do guarda-roupas bate com força. Alcanço a escada. A porta do banheiro range aberta. Avanço os degraus. O plástico da cortina protesta contra o movimento.
— Papai!
— Estou chegando!
O chão do banheiro foi parcialmente coberto por suas roupas sujas. Carmen se coloca do outro lado do boxe, o mais distante possível do jato de água.
Ligo o chuveiro e ajusto a temperatura.
— Pronto.
— Tá bem quentinho? Não gosto de banho frio. — Ela me encara com seriedade.
— Está do jeitinho que gosta. — Eu me curvo para ela e deixo um beijo em seus cabelos bagunçados do longo dia.
— Obrigada.
— Por nada, meu anjo.
Fecho a cortina e deixo a minha pequena grande menina tomar o seu banho com tranquilidade. O reflexo no espelho chama a minha atenção, observo os olhos cor de terra, que poderiam ter um pouco mais de brilho; os cabelos castanho-claros, que poderiam receber um corte mais moderno; e a pele clara com pouquíssimas manchas, que poderia ter uma noite de sono com mais de quatro horas.
"Como estou velho."
— Papai, você faz batatinha? — Carmen me pede.
— Só se você prometer comer todo o seu legume.
— Eu como um poquinho de legume, tudo bem?
— Então vai comer só um pouquinho de batatinha.
Ela bufa alto.
— Você é tão difícil, papai. — A pequena me imita. Não posso evitar o riso. Mesmo que a fase das imitações seja perturbadora, não tem como prever com qual palavra nova ela voltará para casa.
Os pesadelos com o dia em que escutarei um "vai tomar no cu, papai" perturbam o meu sono.
"Mas, pelo menos, mato o desgraçado que ensinar isso pra ela."
○○○
A casa se torna silenciosa. Abro a varanda e encaro o bairro pela tela de proteção, o nylon estraga a visão da noite, esconde as estrelas, deforma a lua, mas garante a segurança da minha garotinha.
Entrelaço os dedos nos buracos e chacoalho a tela, o nylon continua firme e sem folgas.
"Será que aguenta o meu peso?"
Peter Parker** ficaria orgulhoso, mas talvez isso seja um pouco demais... ou talvez não.
Estudo os ganchos da tela. Um movimento a esquerda chama a minha atenção. Além do meu quintal, a nova vizinha entra e sai da cripta para onde se mudou, carrega caixas e objetos velhos que surpreendem por não terem simplesmente se desintegrado em suas mãos. A luz de fora ilumina parcamente um pedaço da grama, a lua cheia revela mais do quintal que ela própria.
A mulher some de vista. Uma pequena caixa rola porta afora, os pelos de uma vassoura deixam a cripta sorrateiramente e a empurram para ainda mais longe. A caixa volta a rolar desprotegida, as ervas daninhas dificultam o processo, sugam a força do impulso e a fazem parar sobre a grama maltratada.
Eu me aproximo da tela e fixo o olhar no resto da velha árvore que alguns chamam de porta. Lupita irrompe o quintal com a vassoura em riste como uma amazona, ela avança sobre a caixa e desfere golpes contra ela como se fosse a morada do seu pior inimigo. Quase posso ouvir o seu rosnado raivoso enquanto lança mais um golpe de vassoura. E outro. E outro...
De repente, ela parece se acalmar. Cutuca o inimigo, se abaixa lentamente e puxa o que restou de uma de suas abas.
— Ah! — Ela salta para longe. Ergue novamente a vassoura e avança contra a caixa insolente que insiste em sobreviver. São tantos golpes, que quero descer e matar a maldita caixa que ousou morar na porra daquela cripta por tantos anos.
A vizinha se abaixa lentamente e segura a caixa com as pontas dos dedos, é tanta emoção, que tenho certeza que é agora que surgirá um dragão gigante cuspidor de fogo.
Ela verte o conteúdo da caixa. Papéis deslizam sobre a grama. A mulher finalmente solta a vassoura e recolhe os restos mortais do seu inimigo com cuidado.
Para.
Verifica.
— Ahhh! — A vizinha chacoalha a mão nervosamente, larga tudo para trás e se abriga na cripta.
Meus olhos se recusam a deixar o quintal ao lado, algo em mim tem certeza de que a batalha não terminou.
Um vento noturno corre pela rua e espalha todos os papéis sobre a grama.
— Ah, não! Não! Não!... — Ela corre pelo quintal. As ervas daninhas tentam esconder os papéis, ela recolhe todos os que encontra e os protege contra o peito. Depois de um tempo, a mulher se endireita, corre a mão pelo rosto em um gesto pesado e volta para a sua cripta.
Dessa vez, o resto da velha árvore se fecha.
"Esses malditos seriados sempre terminam sem concluir a batalha. Cadê a porra do dragão?"
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Gangnam Style. Em: STYLE, Gangnam. PART 1, PSY's Best 6th Part 1. PSY. YG Entertainment 2012.
** Peter Parker é o nome do homem fictício por trás do super-herói Homem-Aranha. EM: PARKER, Peter. Homem-Aranha. Marvel Comics, 1962.
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