Capítulo 2
As folhas de caderno levemente enrugadas pelo uso da cola branca e intenso riscar de lápis tentam resistir aos meus dedos e dificultam o passar das páginas.
— Que letra é essa? — pergunto para Carmen. Ela observa atentamente as letras recortadas de revistas, algumas contornadas com canetinha colorida; no canto inferior da página, uma bola pintada com o cuidado típico da idade.
— B! — guincha, animada.
Passo mais algumas folhas.
— E essa?
Os olhos atentos analisam os contornos e se detêm um pouco mais de tempo no pequeno desenho de uma maçã.
— M!
— Você sabe tudo. — Deixo um beijo em seus cabelos pouco antes de Carmen escorregar do sofá.
— Papai, vamo colá agora? — Ela engatinha até a mesa de centro.
— Vamos.
Carmen alinha as letras recortadas minutos atrás no centro da mesa, alcança o tubo de cola e o puxa para perto em um senso de organização que aprendeu comigo.
"Tão diferente do jovem Elio."
O som de palmas desperta a calmaria, que até então reinava absoluta na frente da casa.
— Quem é? — A pequena cabeça se ergue, curiosa.
— Vou ver, filha. — Deixo o caderno no canto livre da mesa. A pessoa no portão volta a bater palmas, antes mesmo que eu possa abrir a porta e acender a luz da varanda.
— Boa noite, vizinho! — O sorriso convidativo debocha de mim.
"Mas que merda essa mentirosa faz aqui?"
Encosto a porta da sala antes que a Carmen reconheça a voz e apresso o passo ao seu encontro.
— Trouxe um pedaço de bolo pra vocês. — Ela explica o motivo da visita fora de hora. — A dona Enésia adorou, é minha especialidade.
— Não precisava disso. — Encaro a tranca do portão e analiso a possibilidade de somente a mandar embora.
— Quem é? — A pequena cabeça desponta debaixo do meu braço.
— O que faz aqui? — Observo a porta da casa escancarada.
— Oi, Lupi! — Carmen encara a mentirosa, sorridente, sem se importar em me responder.
— Oi, Psy.
— Papai, abre pá Lupi! — Os olhinhos brilham animados.
"Eu podia ter batido a porta na cara dela, mas não! Sou a porra de um imbecil civilizado."
Enfio a chave na fechadura; ela range alto, tão alto, que os olhos da mentirosa se fixam em minha mão, mas o ferro vagabundo resiste aos meus esforços.
"Se fosse por qualquer motivo importante, essa merda quebrava sem a menor explicação lógica, mas pra mentirosa da vizinha, essa porra vira titânio. Quebra, merda! Quebra logo!"
— Acho que precisa colocar um pouco de óleo nisso — a mulher observa.
— Obrigado pela dica. — Deixo a chave girar. A grade desliza em minha direção; agora faz todo sentido rodear a casa com um muro homérico, colocar um portão maciço, cobrir tudo com cerca elétrica, adicionar câmeras de segurança e uma placa de cachorro bravo.
"Por que não pensei nisso antes?"
A mentirosa sedutora estende a vasilha que carrega em minha direção.
— O que é isso? — Carmen acompanha tudo com interesse.
— Bolo de cenoura — a mulher conta para ela.
— Eu não gosto. — O pequeno nariz enruga contrariado.
— Hum... — A mentirosa se dobra até ficar na altura de seu rosto. — E de chocolate? Você gosta?
Os olhinhos brilham em expectativa.
— Eu gosto muito de chocoate.
— Eu coloquei um montão de chocolate. — A maldita sorri, ardilosa, já sabe que venceu.
— Um montão? — Carmen repete, animada. — Queo só um pedacinho.
— Tudo bem, você come só um pedacinho. — A mão dourada alisa os cabelos da minha menina.
Analiso rápido as minhas alternativas.
— Na realidade, a Carmen está ocupada agora, ela precisa terminar o dever de casa — jogo contra a mentirosa.
— Mas só falta colá as letrinhas — Carmen protesta.
— Está tudo bem. — A mentirosa se endireita e sorri para mim. — Só vim deixar o bolo.
— Ah, Lupi... — Carmen choraminga. — Binca um poquinho comigo.
— Outro dia, quando tiver acabado o seu dever.
— Papai! — Carmen pula ao meu lado. — Deixa a Lupi me judá a colá as letrinhas.
— Ela está ocupada agora, filha. — Encaro a mentirosa.
— Se não for atrapalhar vocês, eu posso ajudar a Psy.
"Desgraçada!"
Não posso impedir a pequena mão que arrasta a inimiga para dentro de casa, não quando ela tomou de mim cada mínima possibilidade de me livrar da mentirosa, não quando ela sorri abertamente e saltita pelo quintal, não quando sempre entrego cada maldita batalha.
Agarro a grade do portão.
Bam!!
Ela treme com o impacto contra o muro e volta para mim.
— Papai!
— Tudo bem. O portão só escapou da minha mão, filha. — Eu o tranco e as sigo.
○○○
O repórter na televisão tenta dar alguma notícia importante, mas todos os meus sentidos continuam ligados na mentirosa que ajuda a minha garotinha a decidir onde colar as letras e com que cor as enfeitar. Minha visão periférica não perde o exato momento em que Carmen se inclina para ela e alisa os cabelos escuros.
— Seu cabelo é muito lindo.
— Os seus também são. — A mentirosa sorri de volta.
— A mamãe disse que precisa cortá...
— Como é? — Meus olhos injetam na direção delas. — Você só vai cortar os cabelos quando eu disser.
— Mas a mamãe falô que vai ficá bunito. — As ondas chocolate agitam no ar com os seus movimentos.
— Sua mãe biológica não decide nada nessa família.
— Por quê? — Os pequenos olhos me desafiam.
— Porque eu disse que não.
— Mas por quê? — A boquinha se enruga, contrariada.
— Não, é não, Carmen.
A inspiração alta da mentirosa quebra a tensão.
— Psy, por que a gente não arruma tudo agora e vai comer o bolo?
— Carmen. — Eu me altero com ela. — É tão difícil assim chamar de Carmen?
— Pensei que pudesse chamar ela pelo apelido. — Os olhos da mulher crescem, assustados.
— Isso não é um apelido, é a po... coisa de criança.
A mentirosa desvia o olhar para Carmen e sorri largo.
— Vamos? — convida novamente.
Salto do sofá.
— Andem logo com isso. — Sigo para cozinha sem esperar por elas.
— O papai não gosta da mamãe. — Carmen volta a conversar na sala.
— Ele só está nervoso.
— O papai só biga com a mamãe. Biga e biga. — Minha pequena resmunga, irritada.
— É coisa de adulto, tenho certeza que não é nada de mais.
○○○
O bolo derrete na boca, os sabores se unem em perfeita harmonia, é cenoura e chocolate ganhando a nossa língua no tempo exato. Parece provocação... só pode ser provocação.
Carmen lambe o chocolate da colherzinha de plástico lilás com os olhinhos espertos fixos nos meus.
— Eu gosto de cenora.
— Mesmo? Amanhã vou preparar um prato cheio delas pra você.
— Só gosto de cenora no bolo da Lupi.
Não posso evitar o riso e nem criticar a mentirosa, que ri comigo do outro lado da mesa.
— Como consegue não esmagar ela em um abraço apertado a cada segundo? — ela me pergunta sem desviar os olhos da minha menina.
— É uma batalha diária.
A pequena mão empurra a colher por debaixo do último pedaço de bolo, grande demais para ela; os dedos têm de ajudar no transporte do alimento até a boquinha, que o aguarda devidamente aberta; os dentinhos se fecham sobre a massa macia, mas não conseguem abocanhar tudo e se veem obrigados a deixar o excesso cair novamente sobre o prato.
— Humm... Que gostoso! — a mentirosa diz para ela.
— Humm... Muito gostoso. — Carmen limpa o chocolate dos lábios com a ponta da língua, ignora a colher e leva o último pedaço de bolo à boca com a própria mão.
Recolho o seu prato. Há tantas migalhas sobre a porcelana quanto teria se um passarinho tivesse comido ali.
— Papai, posso comê mais um pedacinho?
— Mais um? — Eu a encaro, descrente. — Esse já é o segundo pedacinho nem tão pedacinho assim.
— Tá muito gostoso.
— Fico feliz que tenha gostado. — A mentirosa ri.
— Amanhã, filha, muito doce a essa hora vai fazer mal pra você. — Recolho o resto da louça e levo tudo para a pia. — Agora sobe e escove os dentinhos, daqui a pouco passo em seu quarto para dar um beijo em você.
— Amanhã? — A voz infantil assume o seu tom mais sério.
— Amanhã.
— Tudo bem. — Carmen salta da cadeira e corre até a mentirosa. — Obrigada, Lupi. — Ela deixa um beijo lambuzado em seu rosto.
— Por nada, linda.
— Psy! Linda é a mamãe. — Minha menina ri antes de correr para a escada.
A mentirosa me encara, confusa.
— A mãe biológica se chama Lindalva.
— Vocês não parecem se dar muito bem.
Apenas nego em silêncio.
— E o seu dia de trabalho? — Eu me escoro na pia, cruzo os braços, resoluto, e a encaro de volta. — Foi bom?
— Ahn... não foi dos melhores. — Ela suspira, cansada.
— Posso perguntar por quê?
— Nosso salário vem em grande parte da comissão das mesas, eu não consegui atender muitas hoje.
— E por isso achou justo me empurrar o prato mais caro? — Jogo as cartas sobre a mesa.
— Não... — As sobrancelhas se curvam, descrentes. — Não fiz isso.
— Ouvi você conversando com as suas colegas.
— Eu não penso daquela forma.
— Então por que me recomendou o prato mais caro?
Seu cotovelo encontra a mesa, a mão dourada oculta a face, indecisa sobre algo.
— O prato do dia é preparado com os produtos que já estão há muito tempo em estoque, geralmente com vencimento no dia, por isso é promocional. Não tem nada errado com eles, a comida apenas não é muito saborosa.
— E por que me indicou logo o filé?
— Recebemos o carregamento hoje cedo, a carne não chegou nem a ser congelada.
Estudo a sua face.
— Isso explicaria o porquê de a comida estar realmente boa hoje — admito.
Seus olhos se fixam nos meus. Existe um brilho novo ali, um brilho que não me agrada e não me deixa fugir dele.
— Desculpa, eu deveria ter avisado você do valor.
— Esse não foi o problema, só não gostei de imaginar que fui enganado.
— Eu não faria isso... não é certo. — Sua voz quebra, parece malditamente sincera, e aquele brilho...
Impulsiono o corpo para longe da pia.
— Encontrei algo seu perdido na rua, vou ver a Carmen e já trago pra você. — Fujo para a sala. — Fique à vontade! — grito da escada. Ouço os talheres tilintarem na cuba da pia e a torneira jorrar água, mas nenhuma resposta.
Passo a cabeça pela fresta da porta sempre aberta e espio a garotinha enrolada no cobertor. As mãos de Carmen o seguram contra o peito, os olhinhos pesados lutam com o sono.
— A Lupi foi embora? — A voz sonolenta custa a sair.
Empurro a porta aberta.
— Não. — Eu me acomodo no pouco espaço livre do colchão e aliso os seus cabelos. — Vim buscar a foto da vovó dela.
— Queo entregá a foto pá Lupi.
— Está tarde, continue a dormir.
— Depois a Lupi me conta da vovó dela?
— Eu peço pra ela contar pra você da vovó em um outro dia.
— Tudo bem, papai.
— Durma bem, meu anjo. — É o tempo de deixar um único beijo na pequena testa para a respiração cair em um sono profundo.
○○○
A estranha continua sentada na mesma cadeira em que a deixei, mas a louça brilha úmida sobre a pia.
— Não precisava ter lavado a louça. — Aponto.
— São apenas alguns pratos.
Minha alma inquieta se recusa a se sentar novamente com ela, é incômoda a forma como se encaixa em minha cadeira, como conseguiu se infiltrar em minha casa.
— Aqui. — Estendo a foto para ela. — Estava voando com o vento.
As íris negras deixam o papel e se fixam novamente nas minhas. Essa mania estúpida de olhar direto em nossos olhos. Ela finalmente apanha a foto, confusa, e a gira em seu punho. O reconhecimento vem em um segundo, a mão sobe em um movimento rápido e oculta a boca, mas o choque não foge do olhar.
— Eu... — A voz falha. — Pensei que tinha perdido ela.
— Deve apenas ter...
O soluço alto corta a cozinha como uma navalha, os cotovelos voltam para a mesa, as mãos espalmadas mantêm a foto a salva entre os dedos e ocultam como podem a face, que não pode mais conter as lágrimas.
— Ei...
O choro copioso rasga o peito; é profundo, doloroso como nunca se vê em um adulto.
— Está tudo bem. — Minha mão afaga suas costas sem autorização para estar ali, muito menos a consolar.
— Não faz ideia... — ela luta contra as lágrimas — do quanto esta foto é importante pra mim.
— Percebo. — A mão se recusa a me obedecer. — É a sua avó? — Eu a distraio.
— Minha mãe.
Existe algo pesado naquela declaração. Meus olhos buscam a foto, desnorteados, são muitas rugas e poucos anos, tanto para versão adolescente que sorri na foto, quanto para versão jovem que não passa muito dos vinte anos e chora ao meu lado. Não faz sentido... assim como não faz sentido a mão que se recusa a afastar da mulher, ou o meu corpo, que se senta próximo a ela em uma cadeira que não estava ali minutos atrás.
— Mas... Hrum...
— Ela já passava dos cinquenta anos quando engravidou de mim.
— É...
— São raros os casos de gravidez nessa idade, mas não impossíveis.
— Ela...
— Faleceu tem alguns anos.
— Costumam fazer todas essas perguntas pra você?
— Sempre que descobrem esta foto. — Um profundo suspiro consegue dar fim ao choro. Ela corre as mãos pesadamente pela face, traz a foto para perto de nós e acaricia as profundas rugas da senhora. — É a única recordação que tenho, obrigada por cuidar dela para mim.
Consigo finalmente mover minhas mãos para longe de suas costas.
— Acho que crianças têm alguma espécie de sexto sentido. — Eu me ajeito no assento.
— Por quê? — O olhar curioso ainda brilha úmido das lágrimas.
— A Carmen insistiu que estava "muito tiste" por causa da foto.
Lupita ri baixo.
— Talvez elas só sejam mais atenciosas. Nós, adultos, vivemos eternamente ocupados, os detalhes mais importantes passam por nós sem que notemos.
— Ela quer que você conte a ela sobre... — Eu me atrapalho com as palavras.
— Minha avó. É o que todos pensam quando veem esta foto, não posso culpar ninguém por isso.
— Não cabem culpados nessa história.
Nossos olhos voltam a se encontrar.
— Não é como se tudo tivesse sido planejado — ela concorda.
A compreensão muda toma o ambiente. De alguma forma sabemos que há muito a se compartilhar ali, mais do que podemos supor em um instante de poucas palavras.
— É melhor eu ir, está tarde. — Lupita quebra aquele momento estranho. — Muito obrigado mesmo, vou cuidar melhor desta foto a partir de agora. — Ela se levanta.
— Escaneia ela e sobe em algum servidor na nuvem. — Eu a acompanho até a sala.
— Acho que não sei fazer isso. — Ela ri.
— O quê? — Abro a porta para ela. — Ainda não descobriram a tecnologia de onde você veio?
— Descobriram. — Ela finge me empurrar. — Só não é acessível a todos.
— Eu ajudo você com isso. — As palavras me escapam. Sua boca se abre em um largo sorriso, e não há mais forma de retirar a oferta.
— Obrigada. — Ela acompanha os meus passos pelo quintal.
— Tudo bem. — Abro o portão.
Eu a observo se afastar por um momento. A face de Lupita não deixa a minha mente enquanto tranco o portão, a casa, subo as escadas, verifico Carmen uma segunda vez, abro a varanda e espio o quintal vizinho além do meu fortificado muro. A luz de fora acesa, a porta escancarada, a estranha sentada no chão... tudo soa tão doce e confiável.
"Isso só pode ser a porra de uma armadilha."
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