Capítulo LXI
Aiala flutuou até o próximo portão ele era feito de Ouro e reluzia em um intenso brilho dourado, parte do portão era feito com esmeraldas, sua beleza era sufocante. As imagens encontradas nos portões anteriores aqui se encontravam retratadas de maneira espelhada, dentre as figuras menores Aiala foi capaz de identificar as figuras destacadas nos portões anteriores, o homem portando um livro e a mulher alada. Ao centro do portão havia a enorme figura de uma ampulheta e abaixo dela haviam escritos em grego antigo.
- No fim tudo se curva ao tempo. - A garota leu em voz alta.
Imediatamente reverberou um alto estalo, como se algo estivesse rachando. Aiala se aproximou do portão e ficou diante dele analisando se algo havia trincado, enquanto olhava a superfície da porta a garota sentiu líquido quente escorrer do seu nariz, ela levou a mão ao rosto para limpar e sob a luz dourada viu seu próprio sangue sujar sua mão.
Outro som de estalo e um ruído infernal de algo arranhando a parede do outro lado.
A garota esticou o braço no qual o bracelete estava preso e tocou o figura da ampulheta, ela sequer teve se apercebeu de que fora a mesma mão usada para limpar seu sangue.
O som voltou de forma ensurdecedora, Aiala levou a mão até as orelhas para tentar proteger os tímpanos, foi em vão. Sua visão começou a oscilar e um zumbindo tomou seus ouvidos. Ela gemia de dor.
Quando finalmente começou a recobrar os sentidos Aiala ouviu o som de algo gotejando e então o som começou a se espalhar pelo ambiente, parecia o princípio de uma chuva. De repente uma gota atingiu sua cabeça e então outra atingiu sua roupa e a frequência da queda das gotas aumentou, ela começou a ficar encharcada, suas roupas estavam completamente suja, só agora ela havia percebido que usava uma túnica de mangas longas totalmente branca, mas já não era branca, era vermelha. Estava chovendo sangue.
O que era uma chuva se tornou torrencial e o nível do líquido começou a subir, Aiala tentou fugir indo para cima, mas correntes surgiram prendendo-a. Ela se debatia, tentava se soltar sem êxito, não demorou para que a água começasse a cobri-la e logo Aiala estava se afogando no sangue, ela tentava sair dali, tentava pedir ajuda, mas não conseguia. Ela começou a ouvir a voz dos seus amigos chamando-a
A garota despertou no campo de batalha, segurava sua própria garganta buscando ar para respirar, arfando. Seus companheiros suspiraram de alívio, minutos atrás vivenciaram momentos de terror enquanto viam Aiala sufocar sem razão aparente, mas não podia deixar suas posições ou ela ficaria presa onde quer que estivesse para sempre.
- Você devia ter fugido. - Reclamou Nikolaus.
- Eu tentei. - Disse ela. - Mas eu queria ter aberto o terceiro portão.
Nikolaus suspirou exasperado.
- Tentou abrir o terceiro? - Indagou Brontes.
- Não consegui, ele era diferente dos outros, não tinha maçaneta nem argola, nem fechadura, mas parecia ter algo do outro lado. - Disse Aiala. - Algo grande.
- É claro. - Falou Arges se aproximando. - Na verdade é admirável que você sequer tenha tentado abrir o portão.
Aiala finalmente olhou em volta, muitos já haviam perecido, mas era o esperado o que ela não esperava era que aquele ambiente lhe fosse tão familiar, ela sentia que já havia estado ali. Um sentimento angustiante a atingiu e foi o suficiente para que ela ficasse alheia a conversa, estava tão cansada e distraída que não ouviu direito quando Arges pediu a faca de Dídimo emprestada, ela apenas viu o objeto girar no ar e pousar na mão do gigante.
Ela estava tão exausta, sua cabeça girava ela não estava entendo nada, assim não compreendeu o que acontecia quando Arges se voltou para Nikolaus e disse o que ela ouviu a seguir.
- Tudo poderia ter sido diferente se você tivesse conseguido abrir a última porta, mas eu não estava contando que você conseguiria mesmo. - Falou Arges antes de atirar a faca de Dídimo contra o peito de Nikolaus, como quem atira uma farpa.
Estéropes virou o rosto, não queria ver aquilo.
Para Arges aquele grupo já tinha servido ao propósito, mas ele não matou Nikolaus gratuitamente. Quando o Ciclope mais velho indagou sobre quem era aquele mais próximo de Aiala, isto é, da chave, ele não estava jogando conversa fora e foi intencionalmente que ele sugeriu que Nikolaus deveria ficar no ponto Sul. Aquele era o último ritual, algo necessário para abrir o último portão e liberar o ser mais maligno no mundo, Tifão, aquele capaz de fazer os orgulhosos deuses olimpianos temerem por suas vidas.
O último portão requeria que o espírito da chave fosse quebrado e Arges não poderia ser mais grato pela chave ter escolhido uma humana, afinal é fácil demais quebrar o espírito de um humano.
Nikolaus caiu de joelhos diante de Aiala que observava toda a cena sem compreender o que estava acontecendo, o som do campo de batalha e os gritos dos seus amigos se tornaram abafados, tudo parecia em câmera lenta. O corpo do homem tombou no chão e Aiala começou a vagarosamente caminhar na direção dele.
- Ei! - Chamou ela quase murmurando, estava desnorteado. Ainda fazia o caminho até ele.
Ela não podia crer no que estava acontecendo. Era como se ela estivesse presa em um sonho, tudo ali era tão familiar.
Enquanto caminhava ela olhou a sua volta, lá estava aquele maldito campo de batalha, esse momento havia movimentação, mas não havia sons mesmo que aquele lugar estivesse envolvido em um intenso conflito.
Então Aiala ouviu um sonoro som de trombeta, ela começou a olhar a sua volta enquanto procurava de onde vinha o som, a garota viu corpos espalhados pelo chão, sangue vermelho e dourado se misturando, humanos e criaturas que ela nunca poderia ter imaginado que veria na vida estavam lutando entre si, pôde ouvir gemidos de dor, gritos de desespero, urros animalesco, brados de ódio e o prantear daqueles que aos poucos desistiam da guerra e da vida ao ver seu bem mais precioso cair em batalha. Ela ouviu a trombeta outra vez. Quem estava tocando? O som soava tão perto e ela não conseguia ver nada além do desastre a sua volta e o corpo o homem estendido no chão. O caminho até o corpo de Nikolaus parecia durar uma eternidade, mas tudo estava acontecendo rapidamente.
A jovem de cabelos negros caiu de joelhos junto ao corpo do homem, ela estava em choque e nem sabia como segurá-lo. Ao ouvir mais uma vez o som da trombeta percebeu que o autor se encontrava perto dela.
Um homem, sim, um humano tocava o instrumento, seus ombros pareciam cansados e seu corpo balançava enquanto se forçava a ficar de pé e de alguma forma ele parecia triste, aquela era uma figura familiar para a garota, mesmo que ela não fosse capaz de ver o seu rosto, ela pode reconhecer Dídimo, mais uma vez a tristeza atingiu Aiala como um soco no estômago. Certamente ele se culparia pelo resto da vida, pois o aquilo que deveria ter sido apenas uma brincadeira entre amigos ao redor de uma fogueira acabara por se tornar algo assustadoramente profético.
Terror se instaurou no âmago de Aiala quando ela ouviu os gritos de Níobe que corria em sua direção o mais rápido possível afim de socorrer a amiga que estava a beira do abismo. Era quase como se Níobe tivesse vislumbrado aquilo que Aiala havia selado na parte mais escura do seu ser e temesse que ela o deixasse sair.
- Não chore, você não tem culpa. - Disse a Capitã aos berros. - Não dava pra saber que iria acabar assim.
Ela estava correndo e gritando, sua atenção não estava no campo de batalha e por isso ela não viu quando um monstro menor se aproximou por trás erguendo a enorme espada. Um grito se instalou na garganta de Aiala, a cena que vivenciou em seu sonho estava se repetindo diante de seus olhos e ela sabia muito bem comi aquilo acabaria.
O monstro desceu a espada separando carne, juntas e ossos, mas não foi Niobe quem ele atingiu. Ignátios surgiu veloz como um touro e com o braço empurrou a Capitã com toda a força, em troca da vida de sua protegida perdeu o braço, ele urrou de dor, mas não se abateu, avançou brandindo seu machado contra a besta e lhe arrancou a cabeça. Níobe se ergueu e partiu para atacar outro que se aproximava na intensão de aproveitar-se do ferimento do velho, a capitã o matou. Enquanto o cozinheiro apoiava seu machado no chão para estacar o sangramento, a capitã dava cobertura.
- Eu sempre soube que acabaria assim, apenas fui tola demais para evitar isso. - Murmúrou Aiala para o corpo de Nikolaus.
- Não foi culpa sua. - Nikolaus murmurou tentando respirar, estava na ânsia da morte.
A voz dele fez Aiala despertar e deu a ela esperança de que aquilo não acabaria assim. Ela o aconchegou nos braços, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa Dídimo passou correndo no seu campo de visão, o pirata avançava para junto de Níobe e Ignátios. Ele era rápido, se juntou a batalha e isso fez Aiala pensar que seria o suficiente, eles ficariam bem.
- Íris sumiu, disse Aiala. - Ainda perdida. Suas forças haviam se exaurido e ela se sentia uma completa inútil. - Ela deve ter ido buscar ajuda, vai ficar tudo bem. Vai ficar… - Aiala finalmente olhou para o ferimento de Nikolaus.
- É muito grave? - Perguntou ele fazendo esforço para respirar. Aiala não respondeu, encarava a faca cravada no peito de Nikolaus.
- Você não vai morrer, você não pode… - Ela se desesperava ao notar a quantidade de sangue que escorria pelo chão, tentava estancar o sangramento sem sucesso. Quando se tratava de Nikolaus Aiala perdia a racionalidade.
- Aiala! - Chamou Nikolaus com dificuldade.
- Não fale, Íris vai chegar logo. Você vai ficar bem. - Dizia ela.
- Aiala! - Aquela altura a vista de Nikolaus já estava escurecendo aos poucos e ele já estava certo que não havia jeito para dar no seu corpo. - Me escuta.
- Não faz isso comigo, por favor. - Suplicou ela. - Es… - Ele tossia, a faca havia perfurado o pulmão e Nikolaus sufocava no próprio sangue. - Escuta, você precisa entender que não teve culpa de nada.
- Como não tive? - Ela lamentava.
- Não! Eu vivi como quis e até mesmo minha morte foi eu quem escolhi assim, eu vim aqui preparada, só queria ter sido mais útil. - Ele tentou rir, mas só conseguiu se afogar ainda mais em seu sangue. - Não me arrependo de nada. Ainda que soubesse que minhas escolhas me levariam em uma jornada só de ida para minha morte, eu não mudaria nada porque essas escolhas me levaram por um caminho onde eu pudesse te conhecer. - Ele parou de falar e parecia procurar por ela. - Aiala? - Chamou mal podendo vê-la ainda que seus olhos estivessem abertos.
- Eu estou aqui. - Respondeu a garota à beira das lágrimas pois percebeu o que estava acontecendo.
- Sou grato, graças a você fui capaz de amenizar o meu vazio. - Ele começou a hiperventilar e após tomar alguns segundos para se recuperar voltou a falar. - Estou indo na frente, mas não tenha pressa... Na verdade se para te encontrar de novo você tiver que morrer, ficarei feliz em não vê-la nunca mais. - A sua consciência se esvaia aos poucos, ele só queria estar com ela até o fim. - Tenha uma boa vida.
- O que está dizendo? Você vai ficar bem, vamos dar um jeito... Sempre damos um jeito. - Dizia ela.
Nikolaus começou mover os olhos como se estivesse perdido, parecia esperar pela resposta da pessoa que ela já não podia ver, era como se ele não tivesse ouvido ela falar.
- Por que você não está dizendo nada? - Ele já não a ouvia.
- Mas eu tô dizendo que...
- Onde você foi? - Ele procurava por ela, parecia uma criança que havia sido abandonada.
- Não faça isso seu maldito, não se atreva a morrer. - Ela gritava em desespero. - Você não tem autorização para morrer. Você não pode ir, você não… - a expressão de Aiala se tornou subitamente sombria. - Eu preciso de você. Se você ficar eu escolho você. - Aiala estava sentindo tanta dor, estava passando por aquilo de novo.
-Morrer nem é tão ruim assim. - Disse num fio de voz. - Aiala eu… fui um bom menino? - Ele se lembrou de como sua mãe costumava dizer que ele era um bom menino quando voltava sujo e arrebentado de tanto trabalhar pelos remédios. Sua vida passava diante dos olhos e por alguma razão ele queria ouvir aquela resposta da pessoa que ele mais amava.
Silêncio.
Ele se esforçava para ouvir. Aiala se aproximou do ouvido dele sentindo que aquele era o último adeus.
- Você foi um bom menino. - Respondeu para ele docemente.
O homem sorria, parecia extremamente realizado ao ouvir aquilo.
- Obrigad…
Ele se foi.
A expressão trágica estampada na face de Aiala era evidente, seus olhos desnecessariamente esbugalhados como se tentasse captar qualquer sinal de vida em seu querido amigo. Suas mãos tremiam e o ar começou a faltar em seus pulmões, sua cabeça latejava e ela sentia que estava morrendo, ela não podia acreditar no que estava acontecendo. Ela gritava a plenos pulmões, seus gritos eram de dor, mas não de uma dor física, lágrimas jorravam de seus olhos descontroladamente e elas sufocavam sua alma tanto quanto sufocavam seus pulmões, ela tossia e seu estômago doía como se tivesse levado um soco. Nikolaus estava morto em seus braços.
Por que aquilo estava acontecendo com ela? O que ela fez para merecer tudo aquilo? Por quê? Por quê? Aiala não conseguia achar respostas e agora ela já não queria. Aos poucos as lágrimas cessaram e seu rosto antes triste e desesperado se tornou frio, cada pequena parte do seu corpo desejava sangue e vingança acima de tudo, ela não ia se segurar mesmo que isso significasse...
Morrer.
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Vota! Na força do ódio? Sim, mas vota.
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