Agnes (Capítulo Único)
Agnes
Agnes, com seus olhos muito redondos e profundos, observava um sonolento Paulo, de cima da cabeceira da cama. Era madrugada caminhando para a manhã quente da primavera. Mas Agnes não tinha sono, e não se conformava em ver Paulo roncando. Não teve dúvida: tacou a pata na cara de seu escravo, que sobressaltou-se e berrou:
— Ahhhhhh!!! Gata maluca, o que pensa que tá fazendo?? Olha a hora, bicho do mal, pensa que não tenho nada pra fazer amanhã não??
Agnes fixou o olhar entediado em Paulo. "Humanos são tão estranhos...". Paulo enterrou a cabeça sob o travesseiro e ressonou. Sem sucesso. Agnes pulou em suas costas, arranhando-a como se o amanhã não fizesse o menor sentido. E não havia mesmo. Ela vivia cada momento como se fosse o único que importasse. Se os humanos pensavam diferente, era um problema apenas deles. Pensando bem, Paulo até se identificava bastante com o pensamento felino, mas o sono era mais forte naquele momento. Os arranhões nas costas, porém, não passariam incólumes. Paulo pulou na cama, abriu a janela ao lado da cama, que ficava encostada à parede, e jogou a insone Agnes para fora. Ela miou alto, revoltada. Ele fechou a janela e ela miaria ali debaixo até o surgimento dos primeiros raios solares.
E, com os raios luminosos que saudavam o novo dia, Paulo foi obrigado a acordar pelo seu pai, que não permitia que o garoto chegasse atrasado ao colégio.
— Sério, pai...? — choramingava Paulo, travado no sono, às sete da manhã de uma terça-feira.
— Não, Paulo, estou brincando! Vou passar o resto da minha vida te sustentando. Claro que é sério! Levanta a bunda daí e aja! Mais ação, menos inação! — Paulão, o pai de Paulinho (para os amigos mais chegados), chegava na voadora verbal, sem perder a ternura. Alguma coisa em sua mente lhe dizia que o filho não diferia muito de si na juventude que já ia longe.
— Tá, já vai, já... já... — E voltou a dormir.
Paulão, acostumado com a cena, abriu a porta da casa e deixou Agnes passar zunindo em direção ao quarto. A gata negra tinha o estranho poder de arrancar Paulinho da cama na porrada. Dito e feito.
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Já fazia algum tempo. Três amigos e uma gata negra jovem. Eles se conheceram ainda no ensino fundamental e estudavam no sétimo ano. Paulo e Josué tinham 14 anos. Elis, repetente, ia para a casa dos 15. Estudavam na mesma turma de uma escola pública curitibana do bairro Seminário. Ah, e havia, claro, a Agnes, uma gatinha preta e serelepe encontrada naquele ano, 2014. A gata era de Paulinho, o aluno mais extrovertido da turma, agregador de confusões e satélite onde orbitavam boa parte dos colegas, para desespero dos professores.
— Josuééé... Josuééé... — sussurrava Paulinho, com uma voz pretensamente cavernosa, às costas do colega, na carteira de trás.
— Que foi, piá? Presta atenção na aula!
— Josuééé...
— Cara...
— Jos...
— Cale. A. Boca.
À medida que foram se conhecendo, a amizade ganhava corpo. Elis logo seria adicionada àquilo que eles chamariam de "Trio Sinistro". Faziam parte da turma do "fundão", e nenhum deles era exatamente o que chamamos de "gente normal". Mas, afinal, o que é gente normal, né? Paulinho não se identificava com pessoas que ele considerava "certinhas". Gostava da liberdade, de viver a vida em plenitude. Estudava para passar, mas gostava de ir ao colégio para bagunçar. E arranjava aliados aqui e ali. Josué foi um dos primeiros naquele ano, um pouco tímido no começo, mas que se soltou rapidamente e entrou no ritmo do novo amigo.
Elis se tornaria a melhor amiga de Paulinho, pela identificação com o misticismo; ambos amavam temas obscuros e brincavam com essas coisas. Foi ela quem apresentou a ele a Tábua Ouija, que o deixou maluco. O menino não sossegou até comprar um tabuleiro. Sua mãe não gostou da ideia, mas o pai não viu problemas ("são garotos, deixe que brinquem"). E o rapaz se pôs a estudar o assunto. Levava a sério aquela brincadeira. Elis adorou ter companhia para as coisas do oculto. Josué foi chegando de mansinho, com seu ceticismo amedrontado. Elis sugeriu uma sessão de filmes de terror em sua casa, localizada no bairro Vila Izabel, numa sexta-feira à noite. Era uma casa antiga, de madeira, onde seus bisavós moraram. Consta nos registros que a casa fora construída em 1926, e sofreu poucas reformas ao longo do tempo, basicamente de manutenção, conservando assim os traços do passado. Aquelas paredes viram e ouviram muitas histórias...
Paulinho levou a pequena Agnes, sua gatinha preta encontrada em frente de casa, abandonada e molhada, suplicando atenção e comida. E levou também a Tábua. Agnes batizou o tabuleiro, fazendo xixi nele.
Após a sequência de filmes ("O Chamado", "Poltergeist" — o original, de 1982, e "Ouija: O Jogo dos Espíritos"), Paulinho sugeriu brincarem um pouco. Josué não se sentia muito confortável com a situação, ainda impressionado com a seção de películas macabras, especialmente diante da escuridão de uma madrugada chuvosa. E Elis ainda queria jogar no porão, com a devida anuência de sua mãe, uma seguidora da religião neo-pagã Wicca...
— Você tem que ter mais cuidado com essas coisas, Paulinho. Essa tábua não é um joguinho de tabuleiro, é coisa séria, pesada. Você já jogou isso? — Josué tentava demovê-lo da ideia.
— Ainda não. Tentei sozinho, mas não consegui. Por que você tem tanto medo? Acredita mesmo que os espíritos baixam quando mexemos com a tábua?
— Eu acredito que espíritos nem sempre bem intencionados podem aparecer e nos prejudicar. Não vejo motivo pra brincar com isso, não.
— Bom, eu acho que pode ser uma forma de se comunicar, né? Com as pessoas queridas que já morreram e tal...
— Ou com entidades não muito queridas. Como ter certeza de que quem está ali é mesmo a pessoa que você acha que chamou?
— Hum... pelas perguntas que fazemos?
E as discussões se prolongavam. Levou um tempo até Paulinho convencê-lo, mas acabou rolando, perto das três da madrugada. O trio, acompanhado da cada vez mais sapeca Agnes, que atormentava os jovens, pulando neles e escalando suas blusas, correndo e voltando, armou o tabuleiro no chão poeirento. Foi por pouco que a gata não mijou de novo na tábua, mas Paulo a salvou a tempo. Amuada pela bronca, ela se atirou sobre um velho armário, que pertenceu à bisavó de Elis, nos fundos do recinto. A mimosa gatinha olhava fixamente para o tabuleiro, de cima para baixo, com aparente desinteresse. Paulinho largou a deixa:
— Então beleza, cheguem aqui, vamos começar. Precisamos fazer uma oração, né?
— Isso, eu tenho aqui o papel. Posso ler? — pediu Elis.
— Manda ver!
A bela tábua plana em madeira incluía letras e números, a palavra "YES" no canto superior esquerdo, e a palavra "NO" no superior direito, além de um indicador móvel, a peça onde se toca com os dedos para seguir o "espírito". Elis começou a leitura, titubeante e gaguejando um pouco no início. Antes, foi definido que tentariam contatar um tio de Paulinho, Robson, morto há quase três anos.
— "Em nome de DEUS, Jesus Cristo, Da Grande Irmandade da Luz, dos Arcanjos Michael, Raphael, Gabriel, Uriel e Ariel, por favor protejam-nos das forças do mal durante esta sessão. Façam com que não haja nada além de luz envolvendo este tabuleiro e seus participantes, e permita que nos comuniquemos somente com forças e entidades da Luz. Protejam-nos, Protejam esta casa, as pessoas presentes nela, e façam com que haja somente Luz e nada além de Luz, AMÉM!"
— Tio Robson, pedimos a sua permissão para conversar contigo. Sim ou não? — entoou dramaticamente Paulinho, mas sem traço de ironia ou brincadeira.
Um arrepio percorreu os demais integrantes. Agnes abriu os olhos e observava com atenção, os olhos bem abertos e redondos, pupilas dilatadas. O que esses humanos estão inventando agora?
Paulo, Josué e Elis aguardaram, com seus dedos sobre a peça-guia. E aguardaram. Esperaram um pouco mais. E mais um pouco. Nada. Ué?
— Tá faltando concentração, gente! Vamos todos nos concentrar, cheguem mais perto, todos bem quietos — pediu Elis.
Dito e feito, o trio se aglomerou um pouco mais, até que Josué deu um grito fininho quando viu a gata ao seu lado, deitada com as patas para dentro. Ela desceu com a leveza e o silêncio característicos dos felinos para acompanhar mais de perto aquela maluquice.
— Se revelando, Josué? — Paulinho não perderia a chance de troçar o amigo.
— Hunpf — murmurou Josué, constrangido.
— Deixa que eu assumo. — Elis ditou. — Robson, você autoriza a nossa entrada? — Ela se mostrava nitidamente concentrada. Ninguém ria, Josué observava os pelos de seu braço arrepiados. Mesmo Agnes observava tudo com grande interesse.
Três dedos de pessoas diferentes sobre o indicador móvel. Um leve movimento, como uma brisa sutil. Olhares fixos. Agnes com os olhos cada vez mais redondos. O indicador se moveu muito lentamente em direção a uma das pontas do tabuleiro, o canto superior esquerdo... YES.
— OK... — Elis ergueu o olhar para os dois amigos. Eles pareciam absorvidos pelo movimento.
— Bons atores, galera. Parabéns! Mas vocês mexeram esse troço que eu sei, deu pra ver! — O comentário jocoso de Josué quebrou o clima, mas nenhum dos três participantes tirou o dedo da peça.
— Que interesse eu tenho em empurrar a peça, cara? Se não tá a fim de participar, vaza! — Elis, nitidamente irritada, estrilou.
— Ih, calma, gata, precisa ficar nervosa, não. Eu, hein? Tô sossegado aqui, podem continuar com essa coisa. Só não queira me convencer...
"É comigo a conversa? Que que te fiz, humano inútil?" Pensou a revoltada Agner.
A peça subitamente escorregou por baixo dos dedos e voltou ao centro de repente. Todos se assustaram.
— Que porra é essa, agora? — Josué perguntou, espantado. — Cês tão de sacanagem, né?
— Fique quieto, por favor — pediu Elis, com pouca paciência.
— Galera, isso é a força do pensamento! Telecinese, manjam? É pura energia. O "espírito" só vai responder aquilo que a gente sabe.
Agnes simplesmente desapareceu quando a peça se moveu, mais rápida que uma flecha. Preferiu a segurança do armário. Humanos...
Um leve murmúrio toma conta do ambiente. Muito leve. Quase como um zunido. Agnes percebe, os olhos arredondados como nunca. Mas nenhum dos três a via naquele momento. Elis, porém, comentou:
— Sentiram isso? Um vento...? Um...
— Uma voz? — Paulinho perguntou. Os cabelos pareciam mais espetados que o normal.
— Vocês são doentes — comentou Josué, num tom contido e acabrunhado.
O murmúrio se elevava e se fechava em torno deles.
"oui... oui... oui... oui..."
Indecifrável ainda. Os dedos firmes no indicador, que começava a se mover de forma muito lenta, mas constante, em movimentos circulares.
"oui... oui... ouida... ouida..."
— Paulo, vamos sair do jogo. Eu digo, ok?
— Ok, ok.
— Adeus, Robson.
"...ouida... ouida..."
— Adeus! — Ela repetiu, nervosa. Josué suava muito, mas não tinha coragem de simplesmente tirar o dedo.
— Porra, adeus, merda! Sai fora!
A peça-guia seguia se movimentando por todos os quatros cantos do tabuleiro e passou a desenhar um oito no sentido horizontal (deitado), em fluxo constante. Elis sentiu seus olhos esbugalharem, pois sabia que aquilo indicava a presença de um espírito maligno, e o que ele queria dizer é que estava no controle da situação. Os garotos podiam não saber, mas ela entendia bem o que estava acontecendo.
— Não tirem de jeito nenhum os dedos! De jeito nenhum, por favor! — O lamúrio fraco e trêmulo vindo dos lábios esbranquiçados da menina apavorou-os. Sabiam que não se tratava mais de uma brincadeira. O ceticismo que Josué usava de escudo caíra por terra.
Nem que quisessem poderiam tirar. Os dedos pareciam grudados, Paulinho até tentou, mas não conseguiu. Pânico. E a voz se tornou muito clara, nítida e opressiva.
OUIDA... OUIDA... OUIDA...
— E agora, Elis?? — perguntou um desesperado Josué.
Agora fodeu, ela pensou. Mas respondeu:
— Deixa eu tentar pensar. Deixa eu tentar lembrar.
Agnes, sempre à frente dos três amigos em apuros, viu o que nenhum deles reparara até então. O tabuleiro se movia levemente de baixo pra cima. Havia algo abaixo dele... Garras? Mãos? Algo escuro, indefinido. Algo que poderia colocar seu escravo pessoal, Paulinho, em perigo. Eles não viam nada, a racionalidade já era. Jovens que eram, jovens demais. Jovens demais... para morrer.
"Que merda é essa?", pensou a pequena e arisca Agnes, toda arrepiada, com a coluna arqueada, em dúvida entre o ataque, a defesa ou a fuga.
— Tem que virar o tabuleiro! — gritou Elis.
— Ahn?? — Um vidrado Paulinho questionou.
— Virar! Virar! Vira ele de ponta-cabeça!
Então, de súbito, perceberam o catatônico Josué, olhos negros, suas mãos agora firmes no tabuleiro, segurando-o. Abriu a boca, então, e disse em um timbre cavernoso:
— Su nioj...
— Que caral**! Que que esse maluco tá dizendo? — Paulinho, em pânico, gritou.
— O que é isso?? O que significa??
— Eu sei lá, eu quero sair dessa merda, ahhhhhhh!!! — Paulinho estava adentrando em um estado de extremo pânico.
— Su nioj!
Josué repetia indistintamente, outra voz, outra vida, ou não-vida, ausência de vida, o fim de toda ela, a inconstância molecular, paredes recuando e se retraindo e voltando para sufocá-los. Paulo e Elis estavam presos ao indicador; por mais que se debatessem, não conseguiam sair. Josué segurava o tabuleiro, com a aparente intenção de impedir que ele fosse virado, o que cortaria de imediato a comunicação com a criatura que conduzia a situação.
— Já sei! Nove! Oito! Set... — Elis tentava a contagem regressiva que cessaria o contato no zero, conforme seus conhecimentos do assunto.
Nesse momento, Josué, ou a criatura que o dominava, jogou fortemente sua mão no rosto de Elis, que gritou e se contorceu, presa apenas pelo dedo na peça maldita. Paulo viu atônito dois ou três dentes voarem da boca dela.
Poucos metros distante da cena bizarra, um ser negro observava a tudo. Viu que os tentáculos ou braços ou mãos, forma indefinida, se ligavam a Josué como um simbionte, um parasita. O ser se armou, afiando as garras na madeira velha do antigo porão. Encorpou-se como só os felinos sabem fazer, tornando-se muito maior e feroz. Os olhos injetados, o senso de proteção, seu pupilo em perigo, o mal diante de si. Não havia possibilidade de fuga. O miado rascante, que começou como um vestígio, foi ganhando força e uma modulação espantosa, aumentando de tom até superar com folga os sons emitidos pela criatura. Num só salto de quase cinco metros, ela se atracou com unhas e dentes nos tentáculos que saíam debaixo do tabuleiro e agarravam Josué.
Foi uma briga de foice, Agnes ensandecida, ela que já havia posto cachorro grande pra correr, lidava agora com algo muito maior. Não havia fuga. E ela sabia disso. Por isso mesmo, usou de toda a sua força e do fator-surpresa para intimidar e espantar a fera bestial. Os garotos foram libertos, seus dedos enfim soltos, com força, impulsionados violentamente para trás.
A criatura debatia-se em torno da gata selvagem, que não cessava sua luta e os arranhões, que faziam jorrar sangue dos braços múltiplos da besta. Então, um grande clarão seguido de uma explosão. Os eflúvios de sua pequena e guerreira alma espalharam-se pelo porão até desaparecerem. O tabuleiro desapareceu junto, bem como os tentáculos. Silêncio profundo. Era como se nada daquilo tivesse acontecido. Os jovens estavam bem, mas estarrecidos. Josué não lembrava de nada. Paulinho gritava por Agnes. Mas ele sabia. Ela se sacrificou por ele. A guerreira que o acordava todas as manhãs foi promovida ao posto de acordadora de anjos. Paulinho, Elis e Josué puderam seguir suas vidas em paz, graças à negra criatura de olhos redondos e miado espesso que acalentava as noites do seu jovem dono. Entre o choro e o choque, uma certeza: foram salvos pelo amor incondicional.
Notas:
Por que "Ouida"? Segundo o historiador Robert Murch, o próprio tabuleiro teria sugerido o nome "ouija" em uma sessão de Elijah Bond com a cunhada, Helen Peters. Mas é mais provável que essa manifestação tivesse a ver com o colar que Bond usava, contendo a foto de uma ativista política chamada Ouida. (Fonte: Revista Mundo Estranho, abril de 2018)
Por que "Su nioj"? É "join us" (junte-se a nós) ao contrário. Autoexplicativo, né? A música Hell Awaits, da banda de thrash metal Slayer, começa com esses dizeres.
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