02. Tempo
— O tempo não passa, ele ultrapassa...
Girei a chave, sacudindo-a ao ritmo da música que tocava nos meus fones, a qual cantarolava para me distrair. Adentrei a sala que alugava para as aulas de música, em um prédio calmo no centro da cidade.
Tirei os fones, abri as janelas, afinei o violão e liguei o teclado. Minha mente dançava entre memórias e infinitos "e se" desde a visita a papai, mas eu estava animada para aquela manhã em especial.
O som da porta do elevador abrindo me puxou à realidade, uma voz infantil preenchendo o corredor e me fazendo sorrir:
— É aqui, papai?
— Acho que sim, filho.
Fui até a porta e lá estava Murilo e seu filho, Miguel. Os dois eram cópias: os mesmos traços serenos, a não ser pelos olhos azuis do pequeno, curiosos. Era a primeira aula dele e acho que seria difícil definir quem de nós dois estava mais em expectativa.
— Olá! Diga oi, filho. Alba é sua professora.
Eu acenei e Miguel levou a mão ao queixo, analisando antes de dizer:
— Oi! Sabia que um anagrama do seu nome é "bala"? — pisquei, não esperando aquele comentário, mas rindo pela espontaneidade — E você tem cabelo rosa! Posso te chamar de Bala? Acho que combina contigo.
Assenti, ainda rindo, e tomei fôlego para responder. Murilo estava visivelmente acanhado, e começou a se explicar antes que eu pudesse dizer que adorava a ideia.
— Desculpe, ele adora português e recentemente descobriu o que significa anagrama. Procura um a cada palavra nova.
— É um dos apelidos mais legais que já recebi. — os olhos de Miguel brilharam, ele cutucou o pai como quem diz "viu só" e não pude evitar rir mais — É um prazer, Miguel. Me diz, você quer ver os instrumentos?
Ele assentiu, entrando como um raio, fazendo do espaço novo algo familiar em instantes. Murilo aproveitou o momento para agradecer a disponibilidade e avisar que quem buscaria Miguel seria ou a mãe ou o padrasto.
Encontrei-me com um sorriso sincero durante toda a uma hora de aula. Miguel era a primeira criança além de Duda que eu ensinava. Seus dedinhos firmes sobre as teclas me lembravam de minha própria época de aluna, com minha mãe de professora.
Um nó se formou em minha garganta e meu coração ficou leve, um sentimento agridoce de saudade embalando-me. Não doía, mas também não se aliviava.
O sentimento me acompanhou durante as aulas com Miguel, que seguiam firmes duas vezes na semana. Percebi-me apegada e orgulhosa. Apegada à forma que ele me chamava de "Bala!" e orgulhosa em toda conversa que trocava com Murilo.
— Estou impressionada com a desenvoltura dele. Está evoluindo rápido.
— É muito bom ouvir isso. — Murilo sorriu, observando o filho, que havia pedido para treinar uma sequência de notas sozinho — Devemos isso a você por ser uma ótima professora. Obrigado, Alba.
Sorri também. Eu me sentia completa observando os passos não só de Miguel, mas de outros alunos que ensinava, o amor pela música crescendo e os fazendo persistir a cada aula.
— Eu sempre quis aprender quando criança. Por isso que, quando o Miguel se interessou, fiquei tão empolgado. — confessou em um sussurrou, também parecendo perdido em recordações — Mas acho que meu tempo já passou.
O comentário fez com que me virasse para ele como uma coruja girando o pescoço.
— Sonho não escolhe idade, Murilo. Nunca é tarde demais para aprender. Sabia que mais da metade dos meus alunos têm mais de 20 anos?
Ele me olhou de esguelha, parecendo uma criança hesitante pelo escuro, precisando apenas de alguém para lhe mostrar que não precisava temer o que se desconhece porque a familiaridade torna mais fácil de lidar.
— Você acredita que eu poderia aprender?
— Claro!
— Acho que aceitaria esse desafio, se fosse você a me ensinar. — Murilo me encarou com suas íris escuras e cintilantes, um sorriso hesitante nos lábios. Perdi-me em seu olhar antes de sorrir abertamente.
— Seria um prazer, jovem aprendiz.
Sua risada alcançou meus ouvidos, ecoando com leveza. Acostumei-me àquele som, que voltava toda vez que Murilo errava repetidamente uma sequência de acordes, rindo de seu próprio processo.
Eu conseguia ver de onde Miguel havia herdado a resiliência e a forma de comemorar quando acertava. Da mesma forma que me divertia ao dar aulas para o pequeno, um sentimento parecido abraçava o ar quando estava na companhia de Murilo.
Conversávamos aleatoriedades quando dava, o quebra cabeça de sua história se formando aos poucos. Ele tinha 29 anos, trabalhava em uma editora e adorava histórias em quadrinhos. Era divorciado, mas mantinha boas relações com a mãe de Miguel e o atual marido, quem ele dizia ser o segundo pai de sua cria.
As horas com o som do teclado e explicações eram igualmente envolventes, pelo interesse palpável que Murilo demonstrava. A qualquer oportunidade, eu era questionada sobre teoria musical, a paixão trasbordante como prova de que ele se entregava de coração ao que se escolhesse dedicar.
Absorvi essa constatação com uma pontada que notei ser inveja. Inveja do sentimento que era o combustível de Murilo, por perceber que eu tive aquela mesma atitude em um passado agora tão distante.
Mesmo descobrindo uma nova felicidade naquele caminho que reerguia, peguei-me questionando se o tempo me perdoaria por tê-lo desperdiçado.
— Você sempre sonhou em trabalhar com música? Sendo professora? — Murilo questionou em algum momento, tirando-me do eixo.
Eu havia criado um conforto em imaginar que apenas eu o observava com atenção e não o contrário. Porém, surpreendi-me ao perceber que não me importava de ser vista, de contar detalhes meus.
— Não exatamente. Sinto completude dando aulas, mas antes sonhava em ser cantora. E quase consegui.
Uma expressão intrigada emoldurou os traços suaves dele.
— Você é uma cantora, Alba. Eu te vejo cantando no Requintes do Forno toda semana, em outros lugares também. E não só isso, já ouvi que você cantou em festivais, abriu shows locais.
— Sim, mas quis dizer com um contrato de uma gravadora. — evitei encará-lo — Houve uma época que tive isso.
— E por que não poderia ter de novo?
Ergui o olhar e me deparei com as íris intensas de Murilo transbordando algo que eu não sabia identificar, apenas sentir. Sentir como se ele pudesse me observar de dentro para fora, tanto que as respostas prontas que eu tinha para aquele "por quê?" sumiram.
— Você acredita que há diferença na essência entre o que faz agora e o que faria se tivesse contrato com um selo? Digo, você gravaria músicas e tudo mais, mas o cerne continua igual. Você ainda canta, toca, se apresenta, e faz isso muito bem.
Um vento soprou e bagunçou algumas partituras. O relógio indicava que a aula havia acabado há quatro minutos. Ainda assim, nada disso quebrou nossa concentração um do outro.
— Obrigada. — consegui dizer, minha voz um tom mais alto que um sussurro — Eu nunca pensei isso. É como se, por ter perdido a oportunidade, o processo tivesse sido um fracasso.
Murilo sorriu levemente, seu olhar ficou mais intenso. O que me desconcertou foi a consciência de que ele não percebeu a mudança em sua expressão.
— Eu admiro seu talento, Alba. E acho que ter ou não um contrato seria como mudar uma circunstância do que você quer fazer, não a essência do que já faz. Seria como um passo a mais e, se você já o deu uma vez, por que não poderia dar de novo?
Eu também não estava consciente de mim mesma. Só percebi meu sorriso quando minha boca já estava esticada, os dentes à mostra, o coração mais leve.
— Obrigada, Murilo. De verdade.
— Que nada, você quem me ensinou isso. Sonho não escolhe idade, lembra?
Mesmo em casa, minha mente ainda voltava às palavras de Murilo, elas sendo um lembrete que eu não recebia há muito. De repente, o caminho em que me encontrava não parecia tanto um desvio do sonho original.
O tempo não soou gasto, soou verdadeiramente vivido, com atitudes que não me orgulhavam, mas que não haviam anulado minha possibilidade de retornar às antigas oportunidades, se batalhasse por elas.
Não havia deixado de fazer o que amava. Ainda trilhava o caminho certo.
1360 palavras
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro