Capítulo 2
Ceci passeou por toda a rua, reconhecendo os amigos, cumprimentando-os, proseando ali e acolá, até que atravessou o reduto das Meninas Consumistas do Bloco B, que a chamaram:
— Faz tempo que a gente não te vê, Ceci! — Exclamou Érica, a líder do grupinho.
— Sumiu... — opinou Nicole.
— Eu não sumi coisa nenhuma, são vocês que nunca falam comigo... — disse Cecília.
— Migas, por acaso eu falo mal da Ceci aqui?
As meninas balançaram as cabeças negativamente porque Érica as olhou com firmeza.
— Você tem cada paranoia, guria. Mania de perseguição...
— Tá, o que vocês querem comigo?
— Conversar! Ou você se acha tão superior para não conversar com a gente? — Érica indicou um espaço no gramado para Cecília sentar-se: — Vai, relaxa!
Ceci sentou-se e após alguns assuntos banais, chegou o momento mais esperado daquela conversa.
— Não por nada, Ceci, mas as meninas e eu estamos dia desses falando sobre você, a gente estava te olhando e pensou em falar com você.... — Érica, fitando Cecília da cabeça aos pés, foi direta.
— Sobre o quê?
— Você até que não é feia, Ceci. Você é bem bonitinha, sabia? — Continuou Érica. — Mas você ficaria mais bonita se tirasse esse boné. — E a garota assim o fez, sendo repelida por Cecília, que cobriu o alto da cabeça. — Ainda assim eu acho que você fica bem mais bonita com o cabelo solto. Os meninos também acham. Preciso te dizer uma coisinha, mas você não pode se ofender: vestida assim você parece um piá!
Cecília nada proferiu.
— Você queria ser um piá? — Disparou Nicole.
— Você não tem vergonha de andar com os joelhos cheios de arranhões, roxos e curativos? — Foi a vez de Érica.
— Você não usa batom nem esmalte nem brinco, nada... — Gabriela, a terceira garota do grupo, olhou para as próprias unhas pintadas com esmalte cintilante e encarou Cecília de volta. — Como é que você vai arranjar um namorado?
— E quem disse que eu quero arranjar namorado? — Ceci reagiu.
— Não precisa ficar tão braba! — Acrescentou Érica. — É só um conselho!
— A gente só quer o seu bem! — Explicou Nicole.
— Você nem deveria jogar bola. Futebol é esporte de menino, eca! — Concordou Gabriela. — Se você joga bola com os meninos, eles vão te tratar que nem menino, mesmo você sendo menina, ou seja, dificilmente você vai namorar.
— Vem cá, eu perguntei alguma coisa para vocês? Pois eu acho que não! Eu não pedi a opinião de vocês porque da minha vida cuido eu. Vocês deveriam ter vergonha de serem um bando de fofoqueiras desocupadas.
Aquelas meninas tidas como bonitas ao senso comum queriam pregar uma peça em Cecília, virem com àqueles conselhos tolos, tudo para fazer uma maquiagem horrorosa no rosto dela e dizerem que um menino queria ficar com ela, tão somente para vê-la levando um fora e se divertirem com isso.
— A gente até queria que você andasse com a gente, mas depois de hoje, sua mal-educada, a gente não quer você no nosso clubinho das meninas mais lindas do bloco B. — declarou Érica.
— Grande droga o seu grupinho ridículo!
— A gente até queria te ajudar, mas já que você não gosta de críticas construtivas, deixa para lá! Só depois não reclame quando todo mundo tiver namorado, menos você!
Érica e as amigas, com os olhos arregalados, encaravam Ceci como se ela fosse uma espécie de aberração.
— Eu sempre disse que essa Cecília é uma antipática! — Avisou Nicole.
— Ela se acha melhor do que a gente...
Ceci deu as costas para as meninas sebosas, porém foi inevitável não se aborrecer com os comentários maldosos. Ela nunca sonhou em fazer parte de uma patotinha intragável, não tinha nada em comum com aquelas pedantes emperiquitadas e escandalosas.
Ceci comprou um picolé e sentou-se no meio-fio para escapar um pouco do sol, o que era quase impossível. Os dedos finos estavam grudentos porque o gelo doce derreteu-se junto com a raiva. Distraiu-se com outras brincadeiras e um pouco mais tarde encontrou aquela criança meio calada, mas corajosa. Por ora, chamemos de Di.
Não era a primeira vez que Di e Ceci compartilhavam a mesma rua para brincar. Ela já havia visto a outra criança algumas vezes e sentido uma profunda vontade de conversar. Se a timidez a dominasse agora, não conseguiria nunca mais.
— Oi! — Acenou Ceci.
— Oi! — Retribuiu Di.
— Obrigada por mais cedo!
— Imagina... se aquele machão te encher outra vez, pode me procurar...
— Não precisava ter se incomodado. Eu sei me cuidar!
— Não por nada, mas pedir ajuda não tira pedaço!
— Eu dou conta desses meninos. Já bati em marmanjos muito maiores que essas bestinhas. Não esquenta, não tenho medo de cara feia.
— Você é durona. — Concluiu Di, relaxando um pouco da tensão.
— E aí? Você mora por aqui?
— Não exatamente, mas alguns amigos meus moram e de vez em quando eu dou uma passadinha aqui. E você?
Ceci apontou para o edifício em que morava com os avós e a madrinha.
— Moro com os meus avós na maior parte do tempo, mas tenho pai e mãe, acontece que eles trabalham muito e preferem que a gente fique com o vô e a vó.
Di assentiu.
Susi, a cachorrinha de Ceci, alcançou-a:
— Minha menininha... vem cá, minha menininha... — Ceci agachou-se para acarinhar a cachorrinha amarela de porte pequeno e pegou-a no colo: — Susi, está vendo? Ele é o meu novo amigo... diz oi para o menino...
Susi lambeu o rosto de Ceci, que riu e Di, com certo receio de fazer carinho na cachorrinha, perguntou:
— Ela é braba?
— Capaz. A Susi é um dengo só!
Di acariciou os pelos curtos da cachorrinha e tão logo Susi lambeu seu rosto, balançou o rabinho para lá e para cá, toda animada pela nova amizade que fez.
— Só um minutinho... — pediu Ceci, sumindo com a cachorrinha no colo. — Susi, Susi... tá, tá bom... isso, isso... agora obedeça à mamãe e suba! A vovó vai ficar uma arara se souber que você andou saindo... não sabe que é perigoso sair sozinha?
As Meninas Consumistas do Bloco B repararam em Di, que tinha os cabelos claros, crespos e curtos, usava regata preta, bermuda jeans azul, colar de contas no pescoço e sandália marrom de tirinhas nos pés.
— Achei esse piá muito esquisito! — Debochou Gabriela, olhando para Di de esguelha.
— Odeio essas modinhas de grunge... — Nicole revirou os olhos.
— Você viu que a Cecília deu conversa para ele?
— Decerto deve ser namoradinho dela.
Di, por sua vez, demonstrava ser indiferente à movimentação e tinha discernimento suficiente para ignorar os comentários ridículos das Meninas Mais Intragáveis da Rua, observava um ponto em particular e um sorrisinho discreto abriu-se quando viu Ceci correndo.
— Oie, voltei! — Acenou Ceci. — E aí? Quer jogar no meu time?
— Hoje não.
— Queimada?
— Tenho horror desse jogo. Que coisa mais sem propósito! Ficar atirando a bola nos outros... troço mó chato, só é legal quando acaba!
— Vôlei?
— Na verdade, hoje eu não estou muito afim.
— Está certo... com o calorão que está fazendo, eu queria estar numa piscina.
— Trouxe minha bicicleta e quero comprar uns doces no mercadinho. Quer vir comigo?
— Quero! Você me espera?
Di assentiu.
— Eu vou só pegar minha bicicleta e já volto!
Quando Ceci voltou montada na bicicleta, seguiu o novo amigo.
— Você não sente calor usando preto no verão? Minha madrinha disse que o preto retém calor, por isso eu só uso roupas bem fresquinhas no verão.
— Eu gosto de preto.
— Eu gosto do laranja.
— Eu não sou nada fã do calor.
— Eu até gosto do frio, mas entre o calor e o frio, eu gosto mais do calor.
— Calor é uma droga: não consigo dormir quando está calor, fico suando o dia inteiro, os pernilongos ficam me atacando à noite e eu preciso dormir com a janela aberta.
— Não seja injusto: no verão tem férias, praia, sorvete, não precisa fazer dever de casa e pode dormir e acordar mais tarde e aniversário sem ovada.
— Grande coisa! Eu nunca levo ovada no aniversário!
— Você nasceu nas férias, só pode.
— Nasci no verão e mesmo assim não gosto!
— Sou de câncer, nasci em julho. Como eu disse, gosto do frio, mas não gosto do frio quando tenho que levantar cedo para ir para a escola, daí é chato mesmo...
— No frio é bom para dormir!
— Sim, desde que não precise acordar cedo, daí é uma delícia!
Eles desceram das bicicletas e deixaram-nas no murinho do lado da porta larga do mercadinho, adentrando o local. Ceci costumava visitar todos aqueles corredores frequentemente porque a avó a encarregava de fazer as comprinhas da semana e colocar na conta dela, mais tarde, o rapazinho passava de bicicleta, tocava o interfone e subia as escadas com uma caixa vermelha cheia de mantimentos.
O dono do mercadinho era Orlando, um senhor calmo e gentil, morava naquela região havia quase cinquenta anos e conhecia quase todos pelo primeiro nome.
Ceci estava em frente ao freezer, queria outro picolé, mas lembrou-se que já havia gastado mais cedo e quando viu Di encaminhando-se até o caixa, seguiu-o. Nisso, Orlando as atendeu.
— Ceci, pequena Ceci! — Exclamou o dono do mercadinho. — Você por aqui?
Ceci sorriu e cumprimentou o senhor.
— Como é que estão os seus avós? Mande lembranças ao Ariosvaldo, pequena Ceci. Qualquer dia desses passo lá para a gente jogar cartas! — Pediu o dono do mercadinho, que era amigo de longas datas do avô paterno de Ceci. — E você, Diana, Diana, sempre sapeca, sempre moleca, mande lembranças aos seus pais. Faz tempo que não tenho notícias deles!
Ceci, confusa, fitou Orlando, e reparou também que Di ficou desconfortável com aquele comentário.
— Desculpa, tio, não sou a Diana, sou primo dela.
— Primo?
— É. Estou passando as férias lá na casa dela. Foi muito bom te conhecer, até uma próxima!
Di segurou na mão de Cecília e eles correram para fora, apanharam as bicicletas e pedalaram por um bom tempo, até a garota interrompê-lo:
— Você pode pelo menos me dizer para onde a gente está indo? Eu não tenho permissão para sair tão longe assim sem os meus irmãos!
— Quantos anos você tem? Oito?
— Por que você saiu correndo do mercadinho? Por acaso roubou alguma coisa lá dentro?
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