28 (theo)
— O que faz aqui fora nesse frio? — Adélia pergunta, me flagrando sentado na varanda. Minha saída discreta não passou despercebida para ela.
Dou de ombros.
— Só precisava tomar um pouco de ar. — Falo, o que não é completamente mentira. Só não é a verdeira razão pela qual eu estou aqui.
— Sei. — Ela diz, desconfiada, sentando-se ao meu lado, observando as casas da vizinhança onde costumávamos andar de bicicleta quando crianças. Fico com a impressão de que ela já sabe que estou mentindo. — Quer me contar alguma coisa? Tem algo te incomodando.
Franzo o cenho.
— Por que acha isso?
Ela sorri, inclinando a cabeça.
— Porque eu te conheço.
Sorrio. Apesar dos longos anos de amizade, esse não é o tipo de questão que eu gostaria de compartilhar com ninguém em voz alta, nem mesmo com ela. Uma vez que eu admitir o que sinto em voz alta, não tenho como voltar atrás. Tenho tido dificuldade de admitir isso até para mim mesmo diante do espelho, e as vozes da minha cabeça não param de me julgar. Não preciso de outra voz fora da minha cabeça me dizendo o que eu já sei: eu sou uma pessoa terrível.
— Está tudo bem, Addy. Não se preocupe.
Adélia suspira, abraçando os joelhos contra o peito para amenizar o impacto do vento gelado. A blusa dela parece fina demais para o final de setembro. Consigo ver seus ossos tremerem por baixo dela.
— O jantar foi... estranho. — Comenta.
Nada fora do comum na minha família, penso. Estamos todos acostumados a troca de farpas, perguntas que geram desconforto e conversas mal elaboradas que sempre deixam algo sub-entendido martelando em sua cabeça por dias a fio.
Mas esse é um lado da minha família que até mesmo alguém tão próximo como Adélia não conhece. Tudo o que ela conhece são os Thompsons: família unida, perfeita e inabalável. Família de aparências.
Suspiro fundo.
— É, foi sim. — Concordo, como se fosse algo atípico.
— Acho que seu pai assustou a pobre garota.
Solto um riso fraco.
— Acho que ela não se assusta facilmente.
Diante do comentário, ela me olha com estranheza.
— Você já a conhecia? Liz? — Pergunta.
Dou de ombros, tentando parecer indiferente ao ouvir o nome dela.
— É, eu... a conheci na festa, quando Noah a levou. — Respondo, sucinto.
Ela assente.
— Só isso?
Não consigo encará-la enquanto minto:
— Claro, por quê?
Ela fica em silêncio por alguns segundos, como se estivesse ponderando suas palavras.
— É que... notei que vocês pareciam... meio íntimos.
Engulo em seco, encarando a rua molhada diante de nós. A chuva caiu pouco depois que Liz chegou até aqui. Teve sorte de não ficar encharcada. Sinto repulsa do fato de que Noah não teve a decência de buscá-la em sua casa.
— Impressão sua. — Respondo, monótono.
Adélia suspira ao meu lado, impaciente.
— É sério? Vai mesmo tentar negar o que eu vi com os meus próprios olhos?
Esfrego o rosto. Não quero ter essa conversa agora.
— Eu não sei o que acha que viu, Addy. Mas está enganada. — Falo.
Ela inclina o rosto, cética.
— Por acaso você acha que eu nasci ontem?
— Onde quer chegar, Adélia? — Questiono de uma vez, para que não precisemos passar por essa enrolação desnecessária. Quase me sinto ofendido que, mesmo depois de todos esses anos, ela ainda não consiga ir direto ao ponto comigo.
Ela suspira, zangada.
— O que foi aquela ceninha no jantar, Theodore? — Indaga, levantando-se de repente.
Franzo o cenho, confuso com sua reação exacerbada. Pelo modo como fala, quase penso que decapitei minha família com uma faca de manteiga.
— Do que está falando?
— Não se faça de bobo para mim, Theo. Eu vi o jeito como olhava para ela durante o jantar. Você trocou os seus pratos na mesa quando achou que ninguém estava olhando! Quer dizer, por que faria isso? Vocês... por acaso...
Adélia nem consegue terminar de estruturar sua pergunta. Posso ver que a ideia a deixa alterada, como era de se esperar.
— Só fiz isso porque ela é vegetariana, e vi que estava com vergonha de admitir isso. Ela só queria causar uma boa impressão. — Explico.
— E como você sabe disso? — Ela questiona, irritada.
Começo a me sentir como um namorado canalha que a traiu com uma amiga próxima com a forma como ela me coloca contra a parede nesse momento, o que me incomoda profundamente. Não entendo o porquê disso tudo, já que não sou nenhuma dessas coisas para ela: nem namorado, e nem canalha. Sou apenas Theo, seu amigo de infância.
Suspiro, irritado, mas não respondo. Se disser algo, vou ter que lidar com as consequências de não poder engolir minhas palavras de volta.
— Theo, você... você está apaixonado por ela? — Adélia pergunta, consternada.
Levanto o rosto para ela, prestes a dizer que não. Prestes a dizer que isso é ridículo. Mas não consigo dizer. Não consigo respondê-la. Não quero dizer que sim, porque isso é terrível, vergonhoso e tornaria tudo real. E não quero dizer que não, porque, honestamente... não consigo negar.
Adélia solta um suspiro diane da minha ausência de respostas, como se tivesse levado um soco no estômago, quase a deixando sem ar.
— Theodore, o que está fazendo? — Ela indaga, exasperada.
Esfrego o rosto. Passei a última semana inteira me perguntando exatamente isso. Me sinto exausto.
— Eu não sei. — Admito.
Ela cruza os braços enquanto caminha de um lado para o outro diante de mim, como se estivesse tentando encontrar uma solução para isso. Como se houvesse uma solução para isso.
— Como isso aconteceu? — Pergunta, parando em minha frente.
Balanço a cabeça.
— Olha, eu admito que, no início, só me aproximei dela porque achei que isso deixaria Noah zangado. Mas... a gente se deu bem de verdade. E eu não sei porque ou como isso foi acontecer, só... aconteceu. E, quando percebi, eu já estava apaixonado. Achei mesmo que éramos só amigos, mas na verdade eu estava me apaixonando por ela. Não planejei isso. Mas também não precisei me esforçar para que acontecesse. — Confesso, fazendo uma pausa para tentar encontrar o momento exato em que tudo começou a dar errado, mas me sinto preso em um círculo de sentimentos, como se não houvesse começo e nem fim, como se esse sentimento sempre tivesse existido aqui. Adélia me olha com certo desgosto, decepcionada com o que eu me tornei no final das contas. Não me olhou assim nem mesmo quando fui expulso por vender medicamentos no colégio. — Não foi a minha intenção, tá legal? Não precisa me olhar como se eu fosse a pior pessoa do mundo, eu já me sinto assim sem a sua ajuda.
Ela massageia as têmporas. Ao que parece, a coisa toda é tão grave que lhe dá dor de cabeça.
— O que vai fazer, Theodore? — Pergunta, por fim.
Faço uma careta. O que posso fazer?
— Eu sei lá. — Respondo, com toda a honestidade que há em mim.
— Precisa resolver isso. — Ela fala, sentando-se novamente ao meu lado, me olhando com expectativa, como se isso fosse o suficiente para me trazer uma repentina solução mágica.
Dou de ombros.
— Bom, você tem alguma ideia? Porque eu não sei como... — Começo a dizer, mas antes que eu possa finalizar a frase, Adélia, para a minha surpresa, parte para cima de mim e me cala com um beijo.
Meus sentidos desaparecem por alguns segundos enquanto tento processar o que está acontecendo. O beijo não é ruim, mas parece inapropriado, o que o torna estranho. Nem ao menos consigo fechar os meus olhos enquanto acontece.
— Por quê fez isso? — Pergunto, quando ela finalmente desgruda seus lábios dos meus, após segundos que pareceram uma eternidade na minha cabeça.
Ela encolhe os ombros, meio sem jeito, como se o repentino surto de coragem tivesse acabado.
— Por quê a surpresa? — Indaga.
— Bom, porque nós sempre fomos amigos. Só amigos. Crescemos juntos, você é como uma irmã para mim e para o Noah. Eu te vi trocar a maioria dos seus dentes de leite e estava presente durante aquela sua fase estranha em que cortou a franja e teve que esperar anos parao seu cabelo crescer e voltar ao normal de novo. Eu te vi crescer, Addy.
Adélia balança a cabeça, indignada, como se todos esses anos eu a estivesse iludindo só para partir o seu coração agora.
— Qual é, Theo. Corta essa conversa de "quase uma irmã". Nós não somos irmãos! Não importa o quão próximos tenhamos crescido, o fato é que não somos irmãos. — Argumenta ela. — Sou apaixonada por você desde a adolescência. Quase enlouqueci quando seus pais te mandaram para o colégio interno em Rosefield. Como pôde nunca perceber isso?
A informação me surpreende. Os olhos de Adélia parecem passar um tipo de desespero silencioso, me olhando fixamente e esperando que eu lhe desse a resposta que espera. A resposta que poderia mudar completamente a dinâmica entre nós. A resposta que poderia resolver o meu problema e o dela de uma vez só, de uma forma muito conveniente. Mas não posso fazer isso. Não posso mentir dessa forma apenas por conveniência, nem para mim e nem para ela. Não seria justo para nenhum de nós, e eu nunca poderia pensar em usá-la dessa forma, na expectativa de que, talvez, um dia, ela me ajude a me esquecer da garota por quem realmente estou apaixonado mas não posso ter. Jamais poderia partir o coração de Adélia dessa forma porque ela não é qualquer garota. É minha amiga. E, apesar de não ser realmente minha irmã, como fez questão de pontuar, ela não deixar de ser aos meus olhos. E isso é algo que nunca vai mudar.
Suspiro, sentindo um aperto no peito, ciente de que, a partir daqui, de uma forma ou de outra, nossa amizade nunca mais será a mesma.
— Me desculpe, Addy, é que eu nunca olhei para você dessa forma. — Admito, sem jeito. A situação é delicada demais e tento medir minhas palavras para não magoá-la, mas talvez isso seja inevitável.
Ela inclina a cabeça para me observar. Suas mãos ainda estão sobre o meu peito, sentindo o pulsar acelerado do meu coração. O nervosismo que o momento me causa faz minhas mãos suarem frio.
— E acha que conseguiria olhar para mim dessa forma algum dia? — Pergunta, como se estivesse se agarrando ao único fio de esperança que ainda lhe resta.
Engulo em seco, sentindo o peso de seu olhar sobre mim. Odeio o que está acontecendo aqui.
Quando não respondo, Adélia torna a aproximar sutilmente o rosto do meu, de modo que nossos lábios ficam cada vez mais próximos de se tocar outra vez. Talvez meu silêncio tenha sido interpretado como uma abertura à possibilidade de que isso aconteça algum dia, o que não foi a minha intenção.
— E-eu sinto muito, mas... não consigo. — Respondo, afastando o rosto. — Me desculpe. Isso é estranho para mim.
Adélia se afasta e solta um riso de deboche, como se achasse isso irônico.
— Estranho? É sério? Então, para você, é estranho dar uma chance a uma amiga que conhece há anos, mas tudo bem se apaixonar pela namorada do seu irmão que você conheceu tipo, ontem?
— Eu não disse que isso não era estranho também, tá legal? Só é... diferente.
Ela morde a parte interna da boca e balança a cabeça, como se estivesse se esforçando para entender a lógica do meu raciocínio, mas isso fosse impossível para ela.
— Quer saber? Você é inacreditável. — Fala, levantando-se abruptamente.
— Sinto muito. — Murmuro, encarando o chão. Sinto um pouco de dificuldade de encará-la agora, pela estranheza que a ideia causou entre nós.
Frustrada, Adélia começa a caminhar em direção à cerca que envolve o jardim, praticamente marchando para fora daqui.
— Onde está indo? — Me atrevo a perguntar.
— Eu tenho que ir embora daqui. — Ela diz, sem olhar para trás.
Levanto-me depressa, correndo em sua direção. Não gostaria que, depois de anos de amizade, as coisas terminassem assim.
— Addy, qual é. Não tem algum jeito de resolvermos isso?
Adélia de repente para, voltando-se para mim com um olhar feroz.
— Não! — Exclama, praticamente rugindo. — Não tem, Theodore. — Consigo vê-la lutar contra lágrimas densas que surgem em seus olhos, e odeio saber que elas estão ali por minha causa. — Sabe, eu passei a vida toda gostando de você. Sei tudo sobre você, até mesmo os seus defeitos. E aí essa garota chega e de repente você é maluco por ela? Eu nunca vi você se apaixonar por ninguém! E, se quer saber, no fundo eu esperava que, quando você se apaixonasse por alguém, seria por mim. — Admite. — Eu achei que se continuasse por perto, um dia você iria perceber que poderia ser eu, sabe? Que você notaria que eu sempre estive ali, e... e que isso bastaria para te fazer enxergar que talvez sejamos perfeitos um para o outro.
Engulo em seco, sem saber como reagir a isso tudo. Me sinto péssimo por não sentir o mesmo que ela, ou por ela se sentir dessa forma quando me parece inconcebível a ideia de olhar para ela de um jeito romântico. Não deveria ser tão difícil. Adélia é uma garota muito bonita, divertida e bem-humorada. É decidida e inteligente, e sempre sabe como fazer os outros se sentirem bem quando está por perto. Qualquer um teria sorte em tê-la em sua vida. Mas eu não posso ser essa pessoa. Não posso sequer imaginar cumprir o papel que ela espera que eu cumpra quando tudo o que vejo ao olhar para ela é uma irmã mais nova. Sempre me imaginei apertando a mão de seu futuro namorado com força e ameaçando matá-lo caso partisse o seu coração. Mas nunca poderia me imaginar sendo o namorado em questão.
— Addy, eu sinto muito mesmo. De verdade. — Falo. Não é como se isso pudesse tornar as coisas melhores agora, mas ao menos é verdade.
Ela dá de ombros, balançando a cabeça, parecendo magoada.
— Não importa. Isso não muda nada. — Fala, tornando a me dar as costas e caminhando para longe de mim com pressa.
— Ao menos deixe eu te levar em casa. Já está tarde. — Peço.
Sem olhar para trás, ela levanta o dedo do meio, afastando-se cada vez mais.
— Vá se ferrar, Theo!
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