23 (theo)
Ela levanta os olhos cor de mel para mim, assustada, quase como se tivesse visto um fantasma, mas no minuto em que me reconhece, consigo ver sua expressão relaxar. Parece aliviada. Fico esperando por uma resposta, mas não a obtenho. Ao invés disso, Liz abre os braços e me envolve em um abraço repentino. Confuso, levo alguns segundos para processar a situação e retribuir o gesto.
O abraço é reconfortante. Suas mãos me envolvem com uma força terna, mas intensa, e consigo sentir o pulsar acelerado de seu coração contra meu tórax.
— Você está bem? — Pergunto, quando seus batimentos cardíacos começam a desacelerar, e sua respiração torna-se mais compassada. Sinto seus braços se afrouxarem ao redor do meu corpo enquanto ela se afasta, e assente em resposta.
— Sim, desculpe, eu só... fiquei feliz em te ver por aqui. — Ela diz, como se fosse um grande choque me encontrar na cidade onde moro. Apesar disso me deixar estranhamente lisonjeado, sei que há algo que ela não está me contando.
Dou de ombros.
— Ah, você sabe. Não há muito para se fazer em um fim de semana por aqui, então, era o boliche ou o karaokê de Rosefield. Achei que as chances de passar vergonha no boliche seriam consideravelmente menores.
— E estava certo?
— Não muito. Não sou muito bom no boliche, mas até que me saio bem cantando Billy Joel.
Ela ri. Uma risada melódica e verdadeira, e não por educação.
— Bom, sinto muito que não tenha considerado melhor as suas opções. — Fala, complacente.
Sorrio. Há algo em sua personalidade que me torna um ser mais suscetível a sorrisos espontâneos, o que, normalmente, não é do meio feitio.
— E o que você faz por aqui, Elizabeth? — Pergunto novamente, já que não obtive uma resposta de primeira vez.
Vejo uma ruguinha de irritação surgir entre suas sobrancelhas ao ouvir seu nome inteiro, o que me gera certa satisfação.
— Bom, Theodore, eu tinha coisas para resolver aqui. — Responde, evasiva.
Inclino a cabeça para trás.
— "Coisas para resolver". Sempre tão misteriosa. E conseguiu resolver?
Ela suspira.
— Para ser sincera, eu não sei. — Admite. — Talvez, por enquanto.
Aperto os olhos, cada vez mais intrigado.
— Está com problemas, Encrenca?
Ela olha para trás, como se estivesse se certificando de algo antes de responder. Por fim, Liz comprime os lábios, reprimindo um sorriso, o que me faz acreditar que a resposta para a minha pergunta é "sim".
— Quer que eu fique por perto? — Pergunto. Por alguma razão, espero ouvir um "sim". Quer dizer, ela não é a pior companhia do mundo. Na verdade, eu já estava pensando em ir embora daqui antes de encontrá-la.
— Isso seria ótimo, na verdade. — Concorda.
Assinto, aproximando-me ainda mais, a ponto de mal sobrar qualquer espaço entre nós.
— O quão perto devo ficar? — Provoco, baixinho. Não sei por quê. Meu corpo age antes que meu cérebro possa processar meus motivos.
Liz levanta os olhos para mim, impaciente.
— Tipo uns dois ou três passos para trás.
Sorrio com divertimento, afastando-me com obediência.
— Certo.
Seus olhos viajam até o copo em minhas mãos, agora quase vazio, intrigada.
— Achei que não bebia. Isso tem tanto cheiro de álcool que se alguém fumar perto de mim, posso entrar em combustão.
— E não bebo. — Defendo. — Não me olhe com esses olhinhos julgadores, isso não era para mim, tá legal? Eu estava pagando uma aposta a alguns amigos.
Ela arqueia as sobrancelhas.
— Uma aposta?
— Sim, eu avisei que era péssimo no boliche. — Explico.
Ela ri.
— Nossa, você deve ser muito ruim mesmo.
— É, sou sim...
Antes que possa me dar conta ou conter meus instintos, meus olhos descem até a sua blusa, na altura de seus seios. A mancha de bebida não para de saltar aos meus olhos.
— Theo! — Ela chama de volta a minha atenção para o seu rosto, agora estampado com indignação.
Me sinto flagrado.
— Desculpe. É que... sua blusa está meio... transparente. — Explico, sem jeito.
Liz arregala os olhos ao analisar a situação.
— Ai, merda! — Exclama — Por que não me disse logo?
— Bom eu tentei não olhar, então não tinha percebido! — Argumento, e ela revira os olhos. — Toma, coloque o meu casaco. — Falo, tirando o moletom e entregando a ela.
— Não, eu não posso. — Ela diz, encolhendo-se em seus próprios braços, constrangida.
Franzo o cenho, confuso. Essa garota é maluca?
— Qual é, quer mesmo que todos os manés desse lugar fiquem te encarando?
Ela inclina a cabeça.
— Você estava encarando. — Rebate, irritada.
Fico em silêncio, pensando em como me defender.
Não há como.
— Bom, acho que isso faz de mim um mané. — Admito.
— É, faz sim. — Ela prontamente concorda.
— Mas um mané arrependido. Me desculpe. Por favor, aceite o casaco como prova do meu arrependimento. — Zombo.
Liz aperta os olhos, avaliando a situação. Talvez ache que usar o moletom de outro garoto parece íntimo demais. Mas, como não lhe restam muitas opções, acaba por aceitá-lo. Fica comicamente grande nela, o que é meio engraçado, mas ainda a faz parecer melhor do que a maioria das garotas aqui. Consigo ver por que Noah passou tantos anos da adolescência obcecado por ela.
— Como vai a perna, aliás? — Pergunto, quando ela termina de se ajeitar.
Liz enfia as mãos nos bolsos da calça e dá de ombros.
— Já consigo correr. — Declara, confiante.
Fico estático.
— Mas... não deveria. — Observo.
— Só um pouquinho. — Ela diz, aproximando o polegar e o indicador.
— Por acaso está querendo voltar à enfermaria? Porque, se quer me ver com mais frequência, existem jeitos melhores de conseguir isso. — Provoco.
Ela inclina a cabeça.
— Ha-ha. Engraçadinho.
Sorrio, e ficamos em silêncio por alguns instantes. Por algum motivo, o barulho dos pinos de boliche parecem mais distantes agora.
— No que está pensando? — Ela questiona de repente, talvez porque eu esteja a encarando por mais tempo do que seria considerado normal.
Não diga que está pensando nos seios dela, penso, enquanto, de fato, tento afastar o pensamento da minha mente.
— Que agora você me deve uma bebida. — Respondo.
Ela sorri.
— A bebida não era sua. — Argumenta.
— Bom, tecnicamente, era, sim. Mesmo que eu não fosse beber. — Rebato, em tom de implicância.
— Então devo te pagar outra bebida que você não vai beber?
Faço cara de pensativo, como se estivesse refletindo sobre a ideia, embora já saiba que não vou deixá-la pagar por coisa alguma.
— É, parece que sim.
Elizabeth ri.
— Bom, lamento muito, mas isso vai ter que ficar para outro dia. Preciso voltar para a casa antes que perca o último trem.
Franzo o cenho, e olho para o relógio em meu pulso, marcando 20h17.
— Trem? Qual é, Elizabeth. Posso te levar de volta para a casa quando quiser. E acredite em mim, não vai querer pisar na estação de trem de Rosefield a essa hora. — Alerto.
— Por que insiste em me chamar de Elizabeth? — É só o que ela pergunta, no final das contas.
Sorrio.
— Eu paro se concordar em ficar e jogar uma partida comigo. Não se preocupe com o trem, posso te dar uma carona até sua casa depois. — Proponho.
Ela arqueia as sobrancelhas, confusa com meu convite inusitado.
— Qual é, eu reconheço uma garota que precisa se distrair de seus problemas. — Digo, tentando convencê-la. Só depois me dou conta de que talvez isso não soe muito bem.
— Não sei se fico impressionada ou ofendida com o fato de você ter notado isso, já que, de certa forma, está dizendo que eu pareço tensa.
Aperto os olhos, analisando a frase. Não foi o que eu quis dizer, mas, ao que parece, foi o que acabei dizendo mesmo.
— Prefiro que fique impressionada, se for possível escolher. — Brinco.
Ela assente, rindo.
— Vai parar de me chamar de Elizabeth se eu te vencer? — Pergunta.
— Sim, e estou torcendo para que você seja pior do que eu no boliche, porque eu gosto muito do seu nome. — Respondo, e suas bochechas parecem corar.
— Tudo bem. — Concorda. — Mas se continuar me chamando de Elizabeth depois de eu te derrotar, eu vou ter que te matar. — Brinca.
Me divirto com a imagem mental de alguém tão franzina como ela sendo capaz de sequer derrubar alguém do meu porte, mas acho sábio não fazer nenhum comentário a respeito.
— Posso não ter uma boa reputação na sua mente, Elizabeth, mas saiba que sempre cumpro com os meus acordos.
Ela aperta os olhos, me olhando com desconfiança, mas enfim, cede.
— Feito.
Liz me acompanha até a mesa onde eu estava sentado com Julie e Mike, próxima às pistas de boliche. Talvez os dois nem ao menos tenham notado a minha ausência porque desde que começaram a namorar, estão um nojo. Qualquer lugar se torna propício para que eles logo comecem a se pegar. Parecem dois coelhos. É embaraçoso.
Pigarreio quando paramos diante dos dois e eles continuam se beijando.
— Ei, olha só quem achou o caminho de volta! — Mike exclama, levantando os olhos para mim. — Nós estávamos prestes a reportar o seu desaparecimento para a polícia.
Solto um riso, mas percebo que Liz parece tensa com as palavras de Mike, porque vejo sua mandíbula se enrijecer. Talvez tenha achado isso ofensivo de alguma forma. Eu sei lá. O senso de humor dele é estranho. Me esqueci de alertá-la sobre isso.
— Você não trouxe a minha bebida! — Julie prontamente nota.
— Eu tive um imprevisto. À propósito, essa é a Elizabeth. — Apresento-a, e o rosto de Julie se ilumina com a perspectiva de ter outra garota para ajudá-la a sobreviver entre nós.
— Oi. Podem só me chamar de Liz. — Ela fala, acanhada.
— É isso aí. Liz para vocês, Elizabeth para mim. — Digo, mais para provocá-la do que por qualquer outro motivo.
— Por pouco tempo. — Acrescenta ela, levantando os olhos para mim, impaciente.
— É o que nós veremos. Vamos resolver na aposta. — Explico para os dois, que nos assistem meio intrigados.
— Ah, não se preocupe, querida, ele com certeza vai perder. — Julie fala, apoiando Liz. Provavelmente está certa. A menos que ela seja muito pior do que eu nisso, o que acho difícil, minha derrota está quase garantida. Mas estou conformado. Não se pode ser bom em tudo. Além disso, não seria terrível vê-la me vencer. Ela fica linda quando sorri. — De onde vocês se conhecem, afinal? — Julie pergunta, enfim, sem se aguentar de curiosidade.
Liz e eu nos entreolhamos, sem saber exatamente o que responder. Laços de família? Em uma festa? Amigos em comum? Na escola? Não sei bem o que dizer, e, ao que parece, ela também não.
— Em uma festa. — Falo, tomando a frente. Tecnicamente, é verdade. Antes daquela noite, nossas interações haviam sido limitadas e um pouco estranhas. Provavelmente por culpa minha.
Liz assente, em concordância. Julie comprime os lábios, como quem avalia uma situação.
— Bom, é, isso parece melhor do que conhecer alguém em uma competição de cachorro-quente. — Dá o seu veredito.
Mike ri.
— Qual é, pelo menos nossa história é original! — Protesta.
— No nosso primeiro encontro, você me viu vomitar meia dúzia de cachorro-quentes. Eu não chamaria isso de romântico. — Ela rebate.
Faço uma careta. Informação demais.
— E ainda assim, eu me apaixonei. — Ele zomba, e Julie lhe dá um tapinha no braço, sorrindo. Não me acho nenhum romântico incurável em particular, do tipo que acredita que amores nascidos na faculdade tenham grandes chances de sobreviver por muito tempo em sua maioria, mas se tivesse que dar um palpite de sorte, diria que esses dois ainda vão acabar se casando de verdade. Tipo, formar uma família e tudo mais. E, com sorte, até lá, ainda vão me convidar para os jantares de ação de graças em sua casa chique nos subúrbios e seus filhos me chamarão de tio, mesmo que eu não seja mesmo irmão de nenhum dos dois.
— Quer saber? Vocês são muito esquisitos, acho que vamos nos retirar e... deixar vocês mais a vontade para serem mais esquisitos ainda.
Julie abre a boca como se estivesse ofendida. Mike dá de ombros, como se soubesse que há uma pontinha de verdade nisso.
— Ah, pare com isso! Vamos nos comportar, eu prometo. Venha, Liz, sente-se ao meu lado. — Julie a chama, batendo a palma da mão sobre a cadeira vazia ao seu lado, quase como se estivesse chamando por um cachorrinho.
Meu coração acelera com a perspectiva de que Julie acabe cruzando algumas linhas que não devem ser cruzadas. Quer dizer, ela é um amor de pessoa, mas limites nunca foram o seu ponto forte.
— Jules. — Chamo-a, como quem pede para se controlar.
Ela inclina a cabeça.
— Relaxe, não vou assustar sua namorada. — Fala, enquanto Liz se ajeita na cadeira. Consigo ver o espanto em seu rosto ao ouvir a palavra "namorada".
E bem assim, enquanto tenta não causar nenhum estrago, o estrago já está feito. É quase cômico.
— Ah, não, nós não... — Liz começa a dizer, tentando encontrar meios de fazer Julie entender nossa situação ao mesmo tempo em que tenta não me ofender com sua rejeição. — Não estamos...
— Somos apenas amigos. — Falo de uma vez, sentindo um pequeno nó se formar em minha garganta. Não se porque sinto uma pontinha de incômodo com isso. É a mais pura verdade. Somos apenas amigos. Mais do que isso, somos praticamente cunhados. Liz é do Noah. Ao que parece, sempre foi, assim como Noah sempre foi seu. E sempre será assim. Nada nem ninguém jamais poderia mudar isso. Especialmente eu.
— Ah. Certo. Foi mal. — Julie fala, constrangida pela primeira vez em toda essa conversa.
Olho para Mike, que esfrega os olhos com um sorrisinho amarelo de quem sabe que a namorada acabou de dizer algo que não deveria e que potencialmente vai deixar um desconforto pairando no ar por algum tempo.
— Amor, que tal a gente ir buscar aquela bebida, hein? — Ele sugere, levantando-se e estendendo a mão para a causadora do caos.
Claro, porque é disso que ela precisa: outra bebida para desinibir.
— Boa ideia, querido. — Ela aceita de prontidão, ciente de que acabou de jogar uma enorme pedra em um vespeiro, e agora precisa dar o fora o mais rápido possível.
Solto um riso observando os dois caminharem apressados para longe de nós, como duas crianças que sabem que fizeram algo que não deveriam ter feito e agora torcem para que os pais não descubram.
— Sinto muito por isso. — Falo, quando se afastam, deixando-nos a sós na mesa — São meio malucos, mas são gente boa.
Liz sorri. Ao menos, ela consegue rir da situação.
— Não se preocupe. Gostei deles. São legais. Como os conheceu?
— Mike é o meu colega de dormitório há uns dois anos. Nesse meio tempo, começou a namorar Julie, que acaba passando tempo demais por lá também. Felizmente temos quartos separados agora. Já tive que passar muitas horas extras na biblioteca.
Ela comprime os lábios e franze o nariz.
— Sinto muito. Não parece muito agradável. E digo isso como alguém que adora bibliotecas.
Sorrio. Não me surpreende ela ser do tipo que gosta de bibliotecas.
— Quando eu era pequeno, e eu nunca ousaria admitir isso para mais ninguém, o meu livro favorito era O coelho de veludo. — Confesso, em meio ao que parece ser um surto repentino de honestidade. — Mas, se alguém me perguntar, nego até o fim.
Ela sorri, admirada.
— Está brincando? Eu amava esse livro! É tão lindo!
Dou de ombros.
— A ideia é meio batida, mas ninguém a executou tão bem quanto Margery Williams.
Liz franze o cenho, como quem não acredita no que acabou de ouvir.
— A ideia não é batida! — Exclama, indignada. — O amor do menino dá vida ao coelho. É emocionante! Onde mais se vê uma história como essa?
— Não discordo de que é lindo. Só não é inovador e original. Quer dizer, você já leu Pinóquio, não é? — Argumento.
Ela abre a boca para responder, mas se detém, percebendo que o que acabei de dizer faz sentido. Parece que eu ganhei nessa.
— Bom, é diferente! — Defende, embora não tenha embasamento nenhum para sustentar sua ideia.
Sorrio de lado, vendo-a lutar para persistir em seu argumento, confirmando minhas suspeitas de que ela é mesmo bem teimosa.
— É a mesma coisa, Lizzie. Particularmente, também prefiro O coelho de veludo. Mas ainda assim, Pinóquio surgiu primeiro.
Mesmo perdendo na argumentação, vejo o rosto dela se iluminar de repente.
— O que foi? — Pergunto, meio desconcertado pelo modo como ela me olha.
— Me chamou de Lizzie. — Observa.
— Ah, me desculpe. Elizabeth. — Corrijo, para provocá-la.
— Não! — Esbraveja, frustrada com a mudança.
Dou risada. Estou descobrindo que existe algo curiosamente satisfatório em implicar com ela.
— Bom, e então, está com fome? — Pergunto a ela, alcançando o cardápio no centro da mesa. Senti meu estômago roncar há horas, mas acabei ficando entretido demais com nosso encontro ocasional para me lembrar de pedir algo para comer.
— Ah, não, obrigada. — Ela agradece, ajeitando o cabelo atrás da orelha. Desconfio de que talvez não esteja sendo honesta.
— Precisa comer, Encrenca. Sabe que problemas não enchem a barriga, não é? Coma um hambúrguer. — Argumento.
— Na verdade, eu sou vegetariana. — Diz.
Levanto os olhos para ela, e fico a encarando, meio pasmo.
— O que foi? — Pergunta, estranhando a minha expressão.
— Eu já estava achando que você não tinha defeitos. — Zombo.
Ela ri.
— Não seja bobo. Esse seria o menor dos meus defeitos.
— E por que isso? — Questiono.
Liz parece confusa com a pergunta.
— Quero dizer, qual é a história de origem do seu vegetarianismo? Você acordou um dia e decidiu que iria parar de comer carne? Viu um documentário traumatizante? Olhou para o seu cachorro e percebeu que se ele fosse uma vaca as pessoas achariam aceitável comê-lo?
— Eu não tenho cachorro. — Rebate.
— Gato?
— Gostaria de ter, mas não.
Aperto os olhos, pensativo.
— Então vou ter que apostar na opção do documentário traumatizante.
— Errado. O meu avô tinha uma fazenda. — Ela diz. Faço uma careta. Esse tipo de história não costuma acabar bem. — A gente costumava viajar para lá nas férias, e no meu aniversário de seis anos, o meu avô teve a ideia de me presentear com uma vaquinha. Ela era uma graça. Eu a chamava de Riley.
— Essa não. — Murmuro, imaginando onde isso vai dar. — Não me diga que vocês...
— Sim. Nós comemos a Riley no final daquele ano, na festa de Natal. — Conclui.
— Minha nossa! — Exclamo, comprimindo os lábios para reprimir um riso, porque sinto que seria indelicado da minha parte rir agora, mesmo que ela tenha contado a história toda em um tom de divertimento e conformismo. Ao notar minha dificuldade em expressar uma reação apropriada, ela mesma explode em gargalhadas, abrindo o caminho para que eu ria também. — Tudo bem, agora eu entendi. É, isso faz sentido. Que tal um hambúrguer vegetariano? Você come grão-de-bico, não é?
Ela franze o nariz.
— Acho que vou me contentar com um milk shake de morango. — Ela diz, e assinto, passando nosso pedido adiante para a garçonete.
Liz me pergunta sobre as aulas na universidade e já estamos quase nos aprofundando na conversa quando vejo a silhueta de Mike e Julie se aproximando de nossa mesa novamente.
— Ei, bobões, tivemos uma ideia! — Fala Julie, sentando-se novamente ao lado de Liz. Parece relativamente mais alterada do que quando saiu daqui. — Que tal uma partida de meninos contra meninas? Assim, quem sabe você tenha uma chance real de ganhar. — Ela diz, me provocando.
A ideia não parece tão ruim, na verdade, considerando que eu já estava totalmente preparado para perder.
Dou de ombros.
— Por mim tudo bem, se não se importarem de serem humilhadas pela soma de nossas habilidades. — Rebato, mesmo não acreditando que isso vá mesmo acontecer. Às vezes, provocação é só uma questão de confiança.
Julie revira os olhos.
— Minha nossa, você é tão convencido. Vamos acabar com vocês. Venha Liz, vou te ensinar alguns truques. — Ela fala, animada, puxando Liz em direção às pistas, enquanto Mike e eu as assistimos partir.
— Cara, sabe que mesmo que eu seja bom no boliche, Julie é muito melhor do que eu, não sabe? — Ele me lembra.
Sorrio de lado.
— É, sei sim.
— Então qual é o plano?
Dou de ombros.
— Bom, nós vamos até lá, fazemos o nosso melhor e com certeza perderemos mesmo assim, mas iremos nos divertir e as garotas ficarão felizes, o que com certeza vai ser ótimo para você.
Ele me observa como se estivesse juntando peças de um quebra-cabeças imaginário, e por fim, ri.
— Ah, saquei. — Murmura.
— O quê?
— Por acaso isso é uma estratégia para se dar bem com uma certa garota? — Ele pergunta, apontando para Liz. Ou isso, ou ele acha que estou interessando em Julie.
— Olha, para começo de história, eu nunca precisei de nenhuma "estratégia" para "me dar bem" com as garotas, então você já começou se enganando nesse ponto. E não, isso não é nenhuma estratégia, é só uma maneira de lidar com o fato de que nós vamos mesmo perder. Além disso, Liz e eu somos apenas amigos.
— Qual é, Theo. Eu te conheço há anos, e nunca vi você olhar assim para uma garota antes. Tem alguma coisa rolando entre você e sua "amiga". — Ele fala, fazendo aspas no ar. — Aliás, por que eu nunca ouvi falar dela antes?
Dou de ombros.
— Porque não é tão importante assim. Ela é mesmo só a minha amiga.
Mike solta um riso.
— Por opção dela, não é? — Provoca.
Dou risada.
— Não é isso. É que... ela e Noah são... — Tento encontrar as palavras adequadas para descrever a situação toda, o que, mais uma vez, se prova um tanto complicado. — Bom, acho que os dois estão juntos há algum tempo.
Vejo uma ruga se formar entre as sobrancelhas do meu amigo enquanto tenta assimilar as novas informações.
— Noah, o seu...
Reviro os olhos.
— Sim, o meu irmão. — Confirmo, antes mesmo que ele termine a pergunta. — E é por isso que essa história é ridícula, está bem?
Mike continua me encarando, meio perplexo.
— Cara... você está com um problemão.
Sua constatação final me deixa confuso.
— Do que está falando?
— Está apaixonado pela namorada do seu irmão! — Ele exclama. Sinto os olhos das pessoas sentadas ao nosso redor se voltarem para nós, discretamente atentas para ouvir sobre um possível escândalo familiar.
— O quê? Mike, eu não tô apaixonado por ela, tá legal? Quantas vezes preciso dizer que somos apenas amigos? — Murmuro, induzindo-o a abaixar o seu tom de voz.
Ele balança a cabeça, como se não estivesse nem um pouco convencido disso.
— Eu não sei, talvez até isso virar verdade? — Sugere ele, sarcástico.
— Olha, isso é ridículo, e essa babaquice pode arruinar a nossa noite, então que tal você...
— Que tal eu fingir que não sei que está apaixonado pela namorada do seu irmão e voltamos a fingir que estamos em uma realidade paralela onde isso é um encontro de casais normal? — Ele interrompe.
Suspiro, irritado.
— Já chega. Nada disso é verdade. Eu só a encontrei por acaso, esbarramos um no outro e...
— E agora ela está usando o seu moletom. Interessante. — Fala, de modo insinuativo.
— Bom, eu emprestei meu casaco a ela porque nos esbarramos e a bebida deixou a blusa dela meio... transparente.
Mike sorri.
— Que acidente infeliz, não é mesmo? — Ironiza.
Reviro os olhos, começando a ficar cansado dessa conversa.
— Não seja idiota, Mike. O que esperava que eu fizesse? Que eu deixasse a garota vulnerável aos olhares dos outros?
— Claro que não, cara. Só espero que saiba que a razão pela qual está fazendo isso, não é a razão pela qual acha que está fazendo isso. — Diz, e eu o encaro, notavelmente confuso.
Mike suspira, impaciente.
— Olha só, Theo... você é como um irmão para mim. E eu sou como um irmão para você, certo? — Ele fala, colocando a mão em meu ombro.
É impressão minha ou essa conversa não está mais fazendo sentido nenhum?
— Onde quer chegar com isso, hein? — Pergunto.
Ele respira fundo e olha para o teto, como quem está prestes a dizer algo sério.
— Quero dizer que... como seu irmão... por favor, não se apaixone pela minha namorada. — Zomba, antes de cair na maior gargalhada sozinho.
Esse é um rapaz estranho, penso, enquanto assisto em silêncio ele se recuperar de sua crise de riso.
— Bom, é brincadeira. Mas, falando sério... — Ele pigarreia, recompondo-se. — Eu espero que perceba o que está acontecendo antes que seja tarde demais.
Não entendo o que ele quer dizer com isso. Na verdade, a coisa toda soa absurda. Quer dizer, sim, é claro que Liz é linda e encantadora e tudo mais. Seria impossível não notar isso. E sim, eu gosto da companhia dela. Ela me faz rir, e é gentil e atenciosa. É agradável tê-la por perto. Mas uma coisa é fato: ela está além dos limites, e eu sabia disso desde o dia em que a conheci. Admito que, inicialmente, gostei da ideia de poder provocar Noah me aproximando dela, o que, eu sei, foi errado. Não planejava cruzar nenhuma linha, é óbvio. A ideia de simplesmente irritá-lo já me parecia divertida o suficiente. O que eu não sabia, no entanto, era que, acabaria gostando dela de verdade, não por ser uma maneira fácil de atingir Noah, mas porque, bom... ela é adorável. Mas ela não é minha.
Balanço a cabeça.
— Mike, esquece isso, tá legal? O que está dizendo beira a insanidade.
Ele ergue as mãos como quem se rende, e declaro a conversa como encerrada.
— E então, seus maricas, prontos para perder? — Julie questiona, aproximando-se de nós. Comprimo os lábios, tentando formar um sorriso. Tento parecer tão animado quanto estava há alguns minutos, para evitar que ela perceba o clima estranho que a sugestão de Mike deixou no ar. Mas não importa. É claro que eles conversarão sobre isso quando estiverem se agarrando no quarto ao lado do meu.
Começo a caminhar em direção à pista antes que ela note o clima de tensão.
— Você está bem? — Liz pergunta, assim que me aproximo dela.
Assinto, agora com um sorriso mais honesto do que o que ofereci a Julie.
A partida se inicia com Mike. Um início mediano, mas não tenho o direito de reclamar. Ele derruba seis pinos, e Julie responde derrubando nove. Na minha vez, derrubo o infeliz total de quatro pinos, e Liz derruba sete. Tanto o meu desempenho quanto o de Mike não melhoram ao longo das partidas, mas se mantém estável na mediocridade. Liz oscila entre boas jogadas e jogadas tão sofríveis quanto as minhas, e Julie, por outro lado, joga como se sua vida dependesse disso, com uma competitividade feroz e digna de troféu, e então me dou conta de que, mesmo com Mike em minha equipe, nós nunca tivemos chance alguma contra ela. O mais engraçado é que tenho setenta e cinco por cento de certeza de que ela está bêbada.
Cerca de uma hora depois, o jogo se encerra, e o placar se encerra da única maneira possível: As garotas ganharam. Julie abre os braços e envolve Liz em um enorme abraço, comemorando como se as duas se conhecessem há anos e tivessem acabado de encontrar uma mala cheia de dinheiro na rua. Mike e eu as assistimos de braços cruzados, rindo da cena. Se soubesse o quão feliz elas ficariam com isso, teríamos jogado antes.
— Eu disse que vocês seriam massacrados! — Julie exclama, jogando as mãos para o ar como se estivesse dançando em uma rave.
Dou risada.
— Foi um golpe de sorte. Venceram por poucos pontos. — Mike resmunga.
Liz faz uma careta.
— Vencemos por cento e cinquenta e oito pontos! — Protesta.
— Ah, o que são cento e cinquenta pontos?
— Cento e cinquenta e oito. — Corrige Julie. — Mas não fique triste, amor. Você ainda pode dançar com uma vencedora esta noite. Venha. — Fala, puxando o namorado em direção a pequena pista de dança, onde meia dúzia de outros casais se reúnem ao som de How deep is your love, dos Bee Gees.
Liz e eu permanecemos de pé ao lado um do outro, assistindo-os de longe.
— Bom, parece que agora você vai ter que parar de me chamar de Elizabeth. — Ela provoca, satisfeita com o resultado da partida.
Comprimo os lábios em um sorriso.
— Mas ainda vai se lembrar de mim toda vez que alguém te chamar pelo seu nome inteiro, não é? — Rebato.
Ela aperta os olhos, refletindo a respeito.
— Touché.
Sorrio. Missão cumprida.
Voltamos a assistir Julie e Mike na pista. São o tipo de casal cativante que chamam a atenção de todos ao redor enquanto se divertem em sua própria bolha. Por um segundo, penso que isso parece divertido, embora a essa altura da vida, esteja convencido de que relacionamentos talvez não sejam para mim. Olho para o lado e vejo que Liz está encolhida em seu próprio abraço, movimentando-se sutilmente de um lado para o outro, no ritmo da música.
— Você... quer dançar? — Pergunto, antes mesmo de ponderar se isso é mesmo uma boa ideia. Ouvi uma vozinha no fundo da minha mente tentando me impedir de dizer essas palavras, mas não dei ouvidos a ela, e agora já é tarde demais. Elas já foram ditas.
Liz parece tão surpresa com a pergunta quanto eu.
— Não acha que pode ser meio estranho? — Ela pondera, já que eu, aparentemente, não fui capaz de fazê-lo.
Dou de ombros. Só me resta agir como se não fosse nada demais, porque não é mesmo, não é?
— Acho que não, quer dizer... você já está praticamente dançando. — Aponto, e ela sorri, acanhada. — Além do mais, é só uma dança. Não é como se eu estivesse te pedindo em casamento ou algo assim.
Ela ri, mas ainda pondera por alguns segundos antes de ceder e me acompanhar até a pista. Tento manter uma distância segura de Mike para não ter que vê-lo tentando me convencer de que isso é mais do que deveria ser. É apenas uma dança. Eu sei disso, Liz sabe disso, e não preciso que Mike fique tentando me convencer do contrário.
Liz coloca as mãos ao redor do meu pescoço, enquanto levo as minhas mãos até a sua cintura, puxando-a para perto. Por alguma razão, não consigo olhá-la nos olhos, o que nunca me aconteceu antes em ocasião alguma. Pela primeira vez na vida, me sinto tenso perto de uma garota, como se estivesse nervoso e empolgado ao mesmo tempo. É meio estranho.
— Acho que essa deve ser uma boa hora para admitir que sou uma péssima dançarina. — Ela diz, quebrando o gelo.
Dou risada.
— Bom, no colégio nós tínhamos um baile semestral com as garotas do colégio católico, e essa era a única ocasião em que nós dançávamos com garotas, então a gente tentava caprichar. Ao menos isso me rendeu algumas habilidades. — Comento.
Ela inclina a cabeça para trás, parecendo surpresa e intrigada.
— Espere aí, você... estudou em um colégio só de garotos? — Indaga, como se essa fosse a coisa mais engraçada que ouviu a noite toda.
— O que foi? Esqueci de mencionar essa parte? — Pergunto, irônico.
— Acho que eu me lembraria disso se tivesse dito antes.
Solto um riso.
— Pois é, estudei, sim.
Liz solta uma gargalhada.
— Eu nunca iria adivinhar se você não dissesse. Na verdade, nem sei se consigo acreditar.
— Ah, acredite. Se quiser eu te mostro o anuário. Só vai encontrar garotos em todas as fotos. É um show de horrores.
A gargalhada se intensifica.
— Não me leve a mal, Theo, mas eu nunca iria imaginar que você passou todo o ensino médio em um colégio católico cheio de garotos.
— Qual é, eu poderia ser padre se não fosse pela enorme fila de garotas querendo se casar comigo, você sabe. — Zombo.
— Ah, sim, eu imagino. Quer dizer, que garota não iria querer um cara que não consegue lançar uma bola de boliche em linha reta? — Ironiza ela.
— Ei! Me ofendeu. Não posso ser bom em tudo.
Ela ri.
— Me desculpe. Tenho certeza de que você deve ser muito melhor em... tênis? Raquetebol? Futebol?
Sinto que a situação não está melhorando para mim.
— Ah, me dá um desconto, vai. Eu cresci em um colégio só de meninos. Como não tinham garotas para tentarmos impressionar, nossa maior habilidade era o xadrez. Conta como esporte, não é?
Liz arqueia as sobrancelhas.
— Uau. Muito sexy. Mas acho que não. — Fala, balançando a cabeça.
— Ah, droga! Era a minha melhor aposta.
— Pelo que vi hoje, você não é bom em apostas também. — Comenta ela.
Dou risada.
— Tá legal, acho melhor pararmos de citar todas as coisas nas quais eu sou ruim ou ficaremos aqui a noite inteira.
Ela abre a boca para dizer algo, mas parece desistir no meio do caminho, após uma rápida consideração, e sou obrigado a ficar com a eterna dúvida do que ela pretendia dizer para mim nesse momento. Consigo me imaginar ainda pensando sobre isso daqui a uns trinta ou quarenta anos.
Fazemos uma pequena pausa na pista de dança para comermos, e depois voltamos para a pista de dança, onde ficamos por mais alguns minutos. Mostro a ela alguns dos melhores que aprendi nos bailes da escola e ela ri tentando me imaginar como um adolescente rebelde que dançava ao som de clássicos do rock. É divertido. Para ser honesto, nem consigo me lembrar de quando foi a última vez em que me diverti tanto quanto essa noite. Na maioria das ocasiões, estou apenas fingindo, como o resto das pessoas fazem. Mas hoje é sincero e bom, e no fundo, desejo que o tempo pare e a noite se estenda por muitas e muitas horas - o que não acontece, porque logo Mike e Julie se aproximam de nós e se despedem, prontos para partir, talvez porque sabem que amanhã, ainda estarão juntos. Mas eu, só tenho este momento, e não estava pronto para que chegasse ao fim.
— Acho melhor a gente ir também. — Comenta Liz, enquanto assistimos os dois caminharem para fora do boliche e suas silhuetas desaparecerem no escuro.
Assinto.
— Bom, pelo que eu me lembro, ainda te devo uma carona, Encrenca. — Falo, alcançando as chaves em meu bolso.
Ela sorri.
— É bom mesmo, porque agora com certeza não vou conseguir pegar aquele trem. — Brinca, e me acompanha pelo corredor mal iluminado até a porta dos fundos, onde saímos para o estacionamento.
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