Capítulo 3
Numa mistura de curiosidade e falta de sono, Mira se transformou em um morcego, saindo pela janela. A vampira, ainda se acostumando com a forma, esperou a feiticeira sair dos dormitórios e observou ela caminhar para a Ala de Estudos. Mira batia as asas com dificuldade, tentando aguentar o peso do corpo.
Amelie chegou sorrateira até a porta. Mira podia sentir a desconfiança e o medo emanando da feiticeira. O corpo de Mira já estava dolorido; ela ainda precisava praticar mais sua transfiguração. No entanto, com sua curiosidade aguçada, ela queria permanecer ali o máximo possível. Será que Amelie vivia um romance proibido?
Uma biblioteca foi revelada quando Amelie abriu a porta. Mira ficou confusa, e seus instintos a clamavam para seguir a feiticeira. No entanto, Amelie fechou a porta, e Mira já não aguentava mais. Suas asas estavam ficando dormentes. Assim, ela decidiu voltar ao dormitório e verificar essa situação em outro momento.
Ela voou o mais rápido que pôde, passou pela janela e voltou à forma normal, caindo no chão do quarto. Com o coração acelerado devido à adrenalina, ela voltou para a cama e passou horas tentando imaginar o que Amelie fazia. Afinal, não é errado querer ler à noite, mas era muito estranho sair no meio da madrugada. Aquela pressão no peito que sentia, aquela sensação de que deveria ir além, não parecia boa. Ainda que seus pensamentos estivessem a todo vapor, Mira não viu quando Amelie retornou ao quarto; ela acabou dormindo.
A madrugada deu lugar ao dia. Amelie, já vestida em seu uniforme, foi até Mira e balançou a vampira.
— Ei! Acorda! Você está atrasada para o café.
Mira abriu os olhos. As cortinas estavam fechadas, e o quarto era iluminado pela luz artificial. Amelie já estava ciente dos cuidados para não acabar matando sua colega queimada. A vampira se sentiu segura e se levantou usando sua supervelocidade. Amelie mal percebeu o vulto da vampira, mas percebeu a porta do armário bater quando ela pegou seu uniforme antes de ir ao banheiro. Mira só diminuiu a pressa quando foi passar uma maquiagem após ter aplicado o protetor solar que a protegia de ser queimada até virar cinzas.
Ela não se contentava com o produto, então, antes de sair, sempre pegava seus óculos e o guarda-sol preto.
A farda da escola não possuía mangas, então Mira colocou por baixo uma blusa de um tecido fino. Ele não esquentava tanto quanto uma blusa de manga normal, então era perfeito para Mira.
A vampira saiu do banheiro pronta e encontrou Amelie a esperando, segurando seus acessórios.
— Vamos lá, os outros devem estar esperando. — A feiticeira entregou os objetos para Mira e tomou a frente do caminho.
— Nós vamos mesmo ter que ficar grudados sempre? — Mira fez careta, lembrando que talvez tivesse raríssimos momentos de paz e solitude.
— Exatamente! Aqui a amizade é obrigatória. — A ruiva parecia determinada a levar aquela missão a sério.
— Não sei se tenho fé nesse grupo inteiro. — Mira deu de ombros, não sabia se todos ali poderiam quebrar a barreira do preconceito.
No refeitório, havia uma enorme bancada com alimentos no estilo self-service. Uma meia parede separava o grande salão da cozinha e dava para ver os cozinheiros trabalhando. No grande salão, várias mesas com bancos estavam ocupadas por diversos seres como feiticeiros, magos e elfos. Não havia outros vampiros, lobisomens ou sereias, mas se tudo desse certo, em seis meses essa realidade mudaria. Em uma das mesas, longe de janelas, Mira avistou seus futuros amigos.
Roberto e Seline estavam implicando um com o outro, utilizando suas magias para pregar peças. O mago gostava de enfeitiçar o nariz da elfa, transfigurando-o para outras aparências. Enquanto isso, Seline se vingou, fazendo uma planta bater no amigo e roubar seu bolinho.
Apolo e Zoe também conversavam e pareciam se divertir. De vez em quando, olhavam para os palhaços da turma e cutucavam o melhor amigo para vê-los. Nicolai estava concentrado em sua comida e, com um pressentimento, ergueu a cabeça. Seu olhar foi direto para Mira quando ela atravessou a porta e foi se servir.
Ele sentia que seu olhar tinha um ímã para ela e tentava imaginar o que se passava na mente dela. Quando mostraria sua verdadeira natureza?
Ao vê-lo, Mira sabia que ali estaria seu maior desafio para não colocar o grupo a perder. Teria que tentar ser amiga de um lobisomem de mente antiquada. Mira não aceitaria uma derrota de jeito nenhum.
Amelie e Mira se juntaram ao restante do grupo. A vampira tirou do bolso um pequeno pote e, de dentro dele, uma cápsula vermelha que ingeriu antes de começar a comer.
— Isso é um suplemento? — Seline perguntou, curiosa, observando a cápsula vermelha nas mãos de Mira.
— Sim, substitui a necessidade de sangue. — Mira respondeu calmamente.
— É isso que impede vocês de serem selvagens, não é? — Nicolai comentou, o desdém evidente em sua voz.
— Educação é mais do que uma pílula, Nicolai. — Mira replicou, mantendo a calma apesar da provocação.
— Então pare de tomar e veremos quanto tempo até você atacar alguém. — Nicolai retrucou, desafiador.
— E o que você fará na próxima lua cheia, Nicolai? — Mira retrucou, o olhar firme, cansada dos estereótipos.
— Que isso, gente? Competição de quem vai surtar primeiro? — Roberto interveio de maneira descontraída.
— Ninguém vai surtar! — Amelie alterou a voz, mas logo se conteve, forçando um sorriso, mas seus olhos estavam arregalados. — Estamos aqui para nos conhecermos melhor. Se isso der certo, no próximo semestre terão outros intercambistas.
— Podemos sair mais tarde, o que acham? — Apolo percebeu que a feiticeira estava tomando muito do peso de fazer o grupo dar certo para si quando, na verdade, todos deveriam dividir a responsabilidade.
— Ótimo, Apolo! Podemos nos ver à noite, após as aulas. — Amelie se animou com a ideia, agradecendo por pelo menos um deles contribuir para o sucesso do grupo.
Eles tinham pouco tempo até a primeira aula, então a conversa diminuiu e se concentraram em terminar de comer. O sinal não demorou a tocar, e foi dado início às aulas obrigatórias onde todos estariam juntos mais uma vez.
O grupo andou junto pelo corredor e entrou na sala apontada por Amelie. O sol iluminava a sala com toda força, ainda que fosse cedo. Mira escolheu o canto da parede onde o ângulo dos raios de sol não alcançava. Amelie sentou ao lado dela e Zoe na frente. Apolo, não querendo ficar distante da sereia, buscou o lugar mais perto possível. Seline e Roberto também acharam seus lugares não muito distantes. No entanto, Nicolai decidiu sentar do outro lado da sala, perto da janela e o mais longe possível do grupo. Amelie o olhou com repreensão, sem aceitar a desconfiança do lobisomem. Ela só pensava que ele estava dificultando tudo.
Mira prendeu o guarda-sol na cadeira para deixar as mãos livres.
A professora de linguagem chegou pontualmente. Seu rosto comprido e corpo magro estavam cobertos por um vestido longo azul. Seu cabelo era um preto azulado que ia até o quadril. Os olhos verdes como uma folha e as orelhas pontudas.
Ela olhou em volta antes de dizer:
— Meu nome é Zaya! Estou aqui para torná-los bons oradores, assim como já formei alguns de nossos políticos e empresários. — Ela parou o olhar sobre Mira. — Peço que deixem seus acessórios de lado. O que não faz parte do código de vestimenta deve ser deixado no dormitório.
Mira levantou a mão e Zaya a concedeu a palavra.
— Professora, eu não posso tirar meus óculos. Eles fazem parte da minha condição. Imagino que, apesar de não fazer parte do código de vestimenta, faz parte da política de inclusão.
— Como é mesmo o seu nome? — Zaya franziu a testa.
— Mira Vancoff.
— Ah, sim! Eu conheço seu pai. Aqui ninguém tem tratamento especial, Mira. Com os avanços que temos, o sol não vai queimar seus olhos! Imagino que tenha usado as proteções, certo?
— Professora Zaya, se baixarmos as cortinas talvez Mira se sinta mais segura.
— Tudo bem, Amelie, é uma boa ideia por hoje.
Com um gesto, Zaya abaixou as cortinas, tornando a sala um pouco mais escura do que antes. Mira então não teve escolha a não ser retirar os óculos de sol. Ela respirou fundo e contou até três antes de abri-los, revelando seus olhos cinzas. A professora arqueou a sobrancelha, deu um passo à frente, prestes a questionar o que estava vendo, mas desistiu e voltou à aula.
Outros alunos também se apresentaram e as próximas aulas aconteceram sem grandes rebuliços generalizados. Mira fazia de tudo para evitar olhar diretamente para a luz; suas mãos suavam, as pernas balançavam, suas cicatrizes coçavam e a respiração parecia pesada até o momento em que pôde colocar seus óculos de volta, no intervalo.
Amélie foi à frente conduzindo o grupo e Mira ficou para trás ainda tentando se recuperar de sua quase crise. Zoe percebeu a vampira reclusa e diminuiu os passos para falar com ela.
— Tudo bem, Mira?
— Sim! — ela foi rápida em responder até sentir que a sereia emanava compaixão — Eu não me dou bem com esse lugar, só isso.
— Também é estranho para mim, mas aí lembro o tanto de coisas que posso descobrir aqui que são diferentes de casa e nas próximas férias poderei compartilhar com meus irmãos. Já estamos aqui então, vamos ver o que dá para aproveitar. — Zoe sorriu com gentileza e tocou no ombro da vampira.
Sem perceber, Mira sorriu e seu coração se aliviou com a doçura da princesa. Assim, elas apressaram o passo para alcançar os outros, sem perceber que o lobisomem as observava logo atrás.
Amélie continuava a tentar enturmar o grupo fazendo perguntas sobre cada um, descobrindo seus gostos e talentos.
— Não acredito que pode transformar água em uma arma — Seline estava incrédula.
— Que tal eu te mostrar? — Zoe sorriu confiante.
A sereia abriu a própria garrafa d'água e com um movimento de mão fez a água flutuar em forma de esfera, depois a colocou em formato de flecha e lançou contra a árvore mais próxima, a água estava rígida, mas não parecia gelo.
— Não é possível! Isso machuca pra valer? — Amélie parecia curiosa, então Apolo usou a água em forma de corda e prendeu Amélie e Seline amarradas já que estavam uma do lado da outra. As duas ficaram coradas e rapidamente o tritão as libertou.
Todos pareciam empolgados com as demonstrações de poder enquanto Nicolai brincava com uma pedra atirando para cima e pegando de volta, e Mira olhava para eles, mas sua mente estava longe; ela pensava na biblioteca da noite anterior. Ela sonhou com uma e logo em seguida viu Amélie entrar em outra, mas até então pareciam diferentes.
Depois de um tempo, o grupo ficou ocupado novamente com os estudos e logo o sol se despediu novamente, dando início à noite. O grupo decidiu dar uma volta na cidade desde que chegassem até a hora do toque de recolher. Mais tranquila por ser noite, Mira usou um vestido de tecido leve e deixou seus acessórios matinais para trás. Os braços e pescoço ainda estavam cobertos por seus tecidos especiais.
— Uau! Que gata! — Amélie elogiou a colega antes de saírem do dormitório.
— Obrigada! Você também está bonita. — Mira sorriu.
Amélie usava uma saia brilhante com uma blusa sem alças.
Ambas se encontraram com o restante do grupo no portão, e Roberto foi o primeiro a se aproximar das duas.
— Caramba, Mira! Para que usar aqueles óculos com esses olhos tão lindos? — Ele parecia impressionado com a vampira.
A fala do colega chamou a atenção de Nicolai, que até então estava conversando com Apolo de costas para onde as meninas vieram.
Um frio na barriga atingiu o lobisomem quando viu os olhos cinzas em sua direção. Ele os reconheceu imediatamente.
Ele pensava que não era nada. Agora finalmente encontrou aqueles olhos, e em seu coração sabia que não havia outros iguais a eles. Os olhos da Mira estavam em seu sonho concedido pelos anciãos e faziam parte da premonição.
Ele se questionava o que deveria fazer agora?
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