Capítulo 7 - Breves peripécias
Cuidadosamente, a rainha Verônica deixava a capa cor de sonho na cadeira de balanço e se detinha por um instante na pintura que se mantinha inacabada num antigo cavalete, buscando retratar um distante, pequenino e solitário canoeiro a se arriscar em meio as ondas prateadas de um rio azul-turquesa. Tirando alguns mimos e pertences que já não estavam mais ali, a realidade parecia soar como tudo se estivesse na mais perfeita ordem ao mesmo tempo em que a aparente tranquilidade da ocasião era acompanhada de uma certa melancolia, dessas que a natureza nos proporciona logo depois da tempestade...
-E pensar que tive a coragem de gritar... De gritar com o pobrezinho de meu pai daquele jeito... Por D. Carlos Maria, não sou mais do que uma menininha torpe, grosseira e...
-Minha filha, olhe bem nos meus olhos e prometa nunca mais repetir esse tipo de coisa. Você é Maria Berenice de Serruya, a primeira menina de quatro gerações, a filha mais inteligente e talentosa, futura rainha de Angustura e dona de um coração valioso o suficiente para conseguir refletir e aprender com os seus defeitos, sem se rebelar ou sacrificar a si mesma... E vê se você não deixa viu?
-Não deixo... Não deixo o quê?
-Ali, ali naquele quadro, vê se não deixa a tal da Boiúna aparecer e destruir a pobre dessa canoinha! - Brincava a rainha para distrair a filha, apontando para o quadro inacabado no cavalete.
-Pode deixar mamãe, pode deixar que pelo menos aí não vou deixar... E papai já tem notícias de Alexandre?
-Por enquanto não, mas pelo que ele me disse a missão está prevista para terminar em poucos dias. Aliás, não é de hoje que quando se fala... - Prosseguia a rainha com um ar enigmático. - Que quando se fala não apenas de Alexandre como também de determinado assunto, é como se teu coração ainda estivesse um tanto inseguro, quase sempre a esconder alguma coisa... Até de você mesa!
-A senhora se refere ao... Ao acordo de casamento?
-Na verdade, me refiro ao que você sente por Alexandre...
-O que sinto?! - Exclamava a princesinha. - Ah, mamãe, confesso que ainda não cheguei ao ponto de suspirar ou de perder a cabeça por alguém, muito menos por Alexandre... Se bem que ele era uma criança tão bonita que eu não conseguia me aproximar sem o beliscar bem forte no braço e depois sair correndo para me esconder debaixo da mesa ou da cama... Mas isso não significa nada, significa?
-Ah, ninguém melhor para responder sobre o que se passa no teu coração do que você mesma... Algum problema, querido?
-Pois não querida, é tanta coisa na cabeça que sem querer me distraio como se estivesse perdido no tempo e no espaço... - Respondia o rei Hildegardo Camilo cuja presença era notada com a capa cor de sonho em suas mãos. - Cor de sonho, era assim que meu pai Santiago gostava de se referir aos olhos de minha mãe Oriana do dia em que teve a sorte de conhecê-la até às vésperas de partir... Como são também, Verônica, como são também os olhos de nossa filha, aos quais peço desculpas e também prometo nunca mais gritar daquele jeito...
-E como o senhor e mamãe bem me diziam, vovó o amava de maneira que não deixava de pedir e desejar a sorte de reencontrar a vovô o quanto antes até conseguir... - Respondia Maria Berenice que se levantava com a ajuda de Verônica. - E conseguir depois de três anos...
-Como tive a sorte de reencontrar a vossa mãe três anos antes... Ah, que fazer se o amor tem cada coisa, não é mesmo?
-Que fazer se o amor tem cada coisa... - Murmurava a princesinha. - Papai, mamãe, confesso que já me sinto melhor, mas ainda gostaria de ficar sozinha por aqui e descansar mais um pouquinho. Não se preocupe que dessa vez eu deixo a porta aberta!
Por fim, o rei Hildegardo Camilo estendia suas mãos para a rainha Verônica e ambos se retiravam enquanto Maria Berenice reencontrava o espelhinho dourado que repousava na escrivaninha. Aos olhos da princesinha, ele não era desses espelhinhos capazes de revelar o futuro ou os lugares por onde D. Alexandre passava e muito menos quem era a mais bela do reino, mas era justamente este que ajudava-a a se arriscar numa espécie de jogo onde deveria fazer de conta de que se colocava diante de inúmeras vozes. Vozes que se originavam da própria imaginação e também daqueles que de vez em quando ressoavam nos corredores do palácio enquanto buscavam se certificar de que "a futura rainha de Angustura" não estava por perto...
"Ah, mas esta filhinha de Hildegardo Camilo e Verônica é tão bonita! E seria mais ainda se pudesse sorrir..."
-Se Alexandre e meu pássaro Abaruna já estivessem aqui... Os que talvez pudessem me escutar e falarem comigo sem terem pena de mim... Não que Odivelas e meus pais ainda tenham, mas... Quem sabe?
"Pobrezinha, não vê como ela é fácil de chorar?"
"E de chorar por coisas tão pequenas!"
-Como não chorar? - Questionava Maria Berenice em meio à "brincadeira". - Quando penso que está tudo bem, os meus pais acabam discutindo e as coisas desandam de novo, é sempre assim!
"Quem sabe se não é pela doença?"
"Com tudo o que possui, quem sabe se ela não está mentindo ou procurando motivo para querer a atenção de todo mundo?"
-Mentindo não, eu não estaria mentindo... Não, não, mentindo não! - E não era a primeira vez que este tipo voz a deixava tão nervosa, ainda mais por pertencer a sua prima Georgina, filha mais velha do tio Eugênio e supostamente a sua melhor amiga. Ah, se não fosse D. Alexandre quem tivesse entregado o adorável espelhinho que tinha em mãos, certamente o jogaria da varanda de uma vez!
"Ah princesinha, se você soubesse..."
-E essa voz agora... Essa voz tão diferente, de onde vem? Por D. Carlos Maria, se não vem de minha cabeça, só me falta enlouquecer!
"...Se você soubesse que nenhum destes pensamentos que te cercam são capazes de corresponder ou traduzir a beleza que habita em tua essência... E muito menos de tua existência!"
-Mas essa voz... Essa voz me é tão bonita que se pudesse a escutaria o dia todo... E se me falasse outra vez? - E essa mesma voz se dispunha a se repetir por três vezes até conseguir se reafirmar como verdadeira, motivando-a se levantar e se colocar diante da varanda, sem o menor resquício das lágrimas ou dos murmúrios anteriores.
E não é que esta varanda nos dá uma bela vista para o horizonte? Isso, chega mais perto e estica um pouco mais para enxergar por onde estou indicando. Ali, ali mesmo onde a família dos tangarás já está terminando de construir mais um ninho, a cantiga do distante e solitário uirapuru ressoa mais uma vez, e os ararajubas continuam a repousar nos galhos da velha e frondosa Samaúma, de onde o pássaro Abaruna satisfaz a Dinahi com pequenos gestos de ternura, entrelaçando seus cabelos em duas tranças desarrumadas e contando-lhe novas histórias, e a comitiva de D. Alexandre continua a se manter escondida e concentrada em seu plano de caça.
-Psiu! - Assobiava Tomásio aos ouvidos de Pedro. - Ei, ei Pedro! Daqui você já vê alguma coisa?
-Ainda não, mas não se preocupa que logo, logo chega a hora da revoada e o pássaro Abaruna pode aparecer. daí é só ter paciência...
"Minha Nossa Senhorinha, minha Santinha do Carmo, que não me venha..." Suplicava Pedro, ainda trêmulo e com dificuldades para se manter com a própria espingarda. "Minha Nossa Senhorinha, minha Santinha do Carmo, que não me venha nenhum tucano..."
-Paciência, paciência a gente já teve e muita! - Resmungava Jeromão ao dar um coque na cabeça de Pedro. - E se não se segura direito na espingarda me passa logo que eu atiro duma vez!
-Égua, sai de cima de mim! É um, é dois, é três...
Em questão de segundos, Pedro mal tivera tempo de apertar o gatilho e o restante da comitiva arregalava os olhos com a inesperada aparição que despontava do céu... Uma revoada do que parecia ser um bando de araras vermelhas que pareciam aumentar de tamanho e desciam à toda velocidade para investir contra os "algozes" que se defendiam de acordo com suas armas. Cavaleiros com espadas, cavalos com relinchos e Pedro que se benzia antes de correr com espingarda e tudo até se esbarrar e cair junto de Dinahi no meio da correria.
-Menininha! Ô menininha, já se curou do calcanhar... - Em meio a confusão, a pequena se distanciava, estranhando não somente a aparência de Pedro, que bem lembrava a de si mesma como também a vestimenta, tão diferente daquela que era utilizada por seu povo, sem contar o que sentia por ele estar na companhia de D. Alexandre, ou como ela mesma dizia, estar do lado de "caraíba". Caraíba que vinha de longe e de qualquer jeito para roubar o que lhe pertencia...
-Te afasta, te afasta de meu Abaruna!
-Olha menininha, melhor voltar pra casa e não se meter nessa confusão, senão vai sobrar pra você também e...
-Te afasta de Abaruna! Te afasta de meu Abaruna, amigo de caraíba! - Rapidamente, Dinahi avançava e Pedro corria novamente para escapar da pequena e das araras que também o perseguiam... Ah, se tivesse a chance de parar por um instante e olhar por trás de si mesmo, que não diria do mesmo pássaro Abaruna a quem tantos desejavam ressurgir enquanto se colocava diante de Dinahi?
-Caraíba... - Respondia Dinahi ofegante. - Caraíba e o povo dele anda atrás de ti e não é de hoje, a gente tem que fugir!
-Ele pode me procurar sozinho ou acompanhado de gente, com as melhores armas ou de qualquer jeito... A questão é no motivo da procura, sabe? O amigo da filha de caraíba daquela história, da história que eu te contava que procurava pela pena de uirapuru, você ainda se lembra do motivo dele procurar?
-Porque era da pena que ele fazia o remédio e ajudava a amiga dele a se curar. Se caraíba só precisa da pena, ele não tira Abaruna de mim... - Respondia Dinahi, ao franzir o rosto. Embora pensativa aos pés de uma árvore conhecida como acariquara, de longe a pequena apontava o dedo e também se divertia ao observar como Pedro e D. Alexandre, Tomásio e Jeromão se recuperavam dos ataques e investidas da "revoada vermelha", que a essas alturas já escapava ilesa e desaparecia, sem flechadas e tiros até o término deste parágrafo.
-Misericórdia, que bando mais unido! - Exclamava D. Alexandre, ainda ofegante. - Por D. Carlos Maria, estão todos bem?
-E ainda pergunta? Ah, deem licença que essa jornada já está me passando dos limites! - E de tanto resmungar, Jeromão perdia de vez o que lhe restava de paciência e se afastava da comitiva, sem imaginar que o danado de Juripuri já se aproximava, todo ansioso se divertir. Primeiro, cutucando-o e fazendo-o se perder de tanto olhar de um lado a outro, depois lhe retirando o chapéu ao mesmo tempo em que atraía várias pedrinhas e gravetos de lugares diferentes para voar em sua direção e o atingindo por centenas de vezes até irritá-lo o suficiente para conseguir se apoderar de sua consciência...
"E você ai, pensando que ter nome e sobrenome adianta... Daqui a pouco esse tal de Pedro vira amigo de Alexandre e rouba teu lugar de um jeito..."
-Como se fosse possível... Como se isso fosse possível! Eu sou o único herdeiro da família Guilhon! - Às vistas de quem estivesse por ali, talvez Jeromão não fosse mais do que um cavaleiro distante e resmungão, mas por dentro... Ah, por dentro! Como estremecia ao observar o sorriso de Pedro, tão alegre e despretensioso a ganhar a estima e a confiança de seus companheiros!
"Avança, avança pra cima de Pedro! E quando estiver com as mãos no pescoço dele, aí você entorta e vai mostrando quem é que manda por aqui!"
-Mostrar... Mostrar quem é que manda! Ah, mas se D. Alexandre não tem coragem de mostrar eu tenho! Eu tenho...
E quando Juripuri estava prestes a realizar seu intento sinistro através de Jeromão, Estefânia ressurgia para tontear o cavaleiro com a magia da varinha até que viesse cair adormecido no chão. Com as mãos entortadas e as unhas afiadas, estremecidas com a vontade insatisfeita diante da menina iluminada que novamente o atrapalhava... "Criatura danada", "menina de asa que se achava dona do mundo" ou qualquer coisa que quisesse chamar a fada-guardiã lhe vinha na cabeça, até pressentir que já não poderia fazer nada além de se sentar no chão para esconder o rosto com as mãos e chorar...
—Menina de asa... Menina de asa d’uma figa...
—E pensar que eu te achava tão bonito… Com o rosto pintado de azul e as asas, voando do ninho até os galhos de Abaruna…
—Menina de asa, menina de asa d’uma figa, o que você tem?... – Murmurava o danado da floresta. – O que é que você tem que não me deixa vencer?
—Talvez a tua derrota, ou a ferida que se disfarça por trás de tua risada não seja a única coisa que te faça chorar. Quem sabe se não é a saudade? Unida à vontade de ter de novo a guarda e amizade de Abaruna, ainda que a Justiça das Selvas lhe tenha tirado o direito de o possuir. A não ser que seja o medo. Medo do poder que te possui... Do poder que te possui e te destrói a cada dia!
Ainda que de maneira doce e serena, a voz de Estefânia ressoava no coração de Juripuri e o assustava com tamanha autoridade que assombrava os seus ouvidos e o impedia de suprimir a vontade de chorar, resquício de humanidade do qual ainda se envergonhava. Com os ouvidos tampados e os gritos esganiçados, o danado saltava e corria, corria e corria até se prostrar diante do reflexo que o encarava em meio as águas do rio Miri-Mirim. À essas horas, o tempo escurecia e ele sofria por tentar e não conseguir sufocar a própria consciência que sempre se aproveitava para obrigá-lo a reviver a última vez em que se prostrou diante da Justiça das Selvas...
"E você não vê? Não vê o quanto que se perde por aqui?"
“Eu deveria cuidar... Cuidar de todos eles... Mas na hora de cuidar de mim, ninguém cuidava! E agora vem querer me acusar!”
"Aonde que te acuso?" Questionava a voz que ressoava em meio ao barulho estridente dos pássaros aprisionados em gaiolas e das chuvas que buscavam amenizar o ocorrido. "Teu próprio erro te acusa! E tua dor bem poderia ser amenizada se assim reconhecesse!"
“E depois ser castigado por ti e perder o que resta do meu poder?!”
“A justiça que te rege me exige que me devolvas não somente o teu poder como a pertença de Abaruna para mim. Além disso...”
“Pois então leva, leva teu Abaruna contigo! Leva teu Abaruna contigo que dele me torno inimigo, mas os meus poderes... Os meus poderes, nunca!”
De volta ao presente, o danado se preparava. Sentenciando a si mesmo e resmungando malfazejos, novamente sofria com a ardência dos olhos que se avermelhavam, a coceira das escamas decaídas e os rabiscos que formigavam no corpo. A má vontade que prevalecia sobre a voz que aparentemente silenciava o fazia acreditar que conseguia extingui-la de vez e celebrava, se entregando novamente águas para emergir sob a forma mais poderosa, temida e pelos habitantes de Rio Adentro e de outros povoados do reino de Angustura. Uma forma com a qual poderia serpentear em meio às ondas do rio Miri-Mirim e afugentar os peixes que ali nadavam. Ou quem sabe, os devorar...
“Por trás da mágoa... Por trás da mágoa, teu coração ainda chama... Ainda chama por mim e me chama de amigo...”
“Abaruna amigo... Nunca, nunca Abaruna foi meu amigo, e nunca vou deixar Abaruna ser meu amigo de novo!”
“Do que adianta tampar o ouvido agora? De tanto fazer isso, já se encontra num estado que não consegue escutar nem a ti mesmo...”
“Ah, mas vê se deixa Abaruna, vê se deixa de falar dentro de mim!”
“A força de tua antiga bem-querença que habita no teu coração ainda permite o ressoar de minha voz dentro de ti e que luta a cada instante contra esse poder... Esse teu poder que te destrói a cada dia!”
Silêncio nas águas. De longe, o pássaro Abaruna sentia que já não poderia deter a força de Juripuri naquele instante, mas ele decidia se preparar e continuar a emanar seu poder sobre os que estavam ao alcance de sua proteção; do coração de Dinahi que adormecia aos pés da boa e velha Samaúma, passando pela calmaria harmoniosa que reinava novamente na família real serruyana até o acampamento improvisado no meio da floresta onde Pedro, Tomásio e Jeromão se divertiam jogando cartas e apostando algumas prendas enquanto D. Alexandre se encarregava de atuar como vigia noturno.
—Olha, pra quem não era chegado a jogar até que você leva jeito pra coisa, não? – Dizia Tomásio em tom de brincadeira.
—De longe, confesso que até entendo de jogo, mas não sou muito de jogar... E de resto na verdade, também sou ruim de ganhar. E ruim também é gente que se arrisca, perde e joga até não poder mais!
— Sabe-se lá porque me veio a saudade das minhas primeiras expedições e dos rios por onde tive a sorte de navegar junto de meu pai... – Bocejava D. Alexandre antes de se juntar aos integrantes de sua comitiva. – Ah, qualquer dia ainda vamos retornar às ondas de Miri-Mirim e realizar mais uma de nossas expedições!
—Desde que não seja no tempo da Serpente...
-Da Serpente? - Questionava D. Alexandre antes de Jeromão causar intriga novamente, chamando a Pedro de mentiroso ou de coisa do tipo.
-Da Serpente que mora lá no rio e que só aparece em noite de lua cheia pra derrubar embarcação... De minha parte, parece até mentira, mas não é porque o perigo mora longe daqui que ele não existe ou que deixa de existir...
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