✥ㅡ O TREINAMENTO ㅡ✥
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Me jogo na sacada, apreciando o vento fresco e ligeiramente cheiroso que me atinge na noite fria de primavera. A lua está enorme esta noite, se acentuando no céu escuro. Isso sem falar na infinidade de estrelas brilhantes que pontuam a vastidão escura desse maravilhoso céu noturno.
De alguma forma, o céu parece mais bonito no Reino Floral. Mais rico; com mais vida e beleza. Não parece nada com o céu opaco que eu via da minha pequena janela do quarto. Gostaria que lá tivesse ao menos um modo de eu poder observar as estrelas calmamente sem ser observada até cair no sono.
A dor de cabeça constante pulsando em meu cérebro me faz lembrar do anúncio que fizemos horas antes perante todos que assistem TV no reino. O choque nos olhos de algumas pessoas; medo e desconfiança nos outros. Alguns até vieram me pedir para conjurar um pequeno poder como "demonstração". Aparentemente, acreditaram tanto no discurso falso como eu.
Bem, acreditando ou não, o estrago já foi feito. Fui anunciada como a Joia Perdida de Trayan e eleita a espiã pessoal do semideus do Reino Florido. É claro que esta parte eles não colocaram na transmissão, apenas foi passado para as pessoas mais importantes que precisavam da declaração. Lena não acreditaria no que me tornei em apenas 1 semana. Ninguém acreditaria.
Além disso, se tornar a noiva de Korian nunca estivera em meus planos de vida. E muito menos colocar meu irmão no meio de tantos perigos.
Essa parte eles não me contaram que ia acontecer. Porém, após a explosão que tive na frente de todos ㅡ soltando fogo para todos os lados ㅡ, o rei não teve outra escolha. Pelo menos é o que ele acredita.
Seu filho parecia tão feliz quanto eu. Seus olhos estavam sempre me perfurando com violência, e eu devolvia o olhar com igual desafio. Apenas a sua magia me mantinha de boca fechada enquanto seu pai anunciava para todos com alegria fingida a comprometida à seu filho.
Eu quase não consegui chegar no quarto antes que as lágrimas vivessem, rápidas e furiosas.
Todo o peso da última semana caiu como ferro em minhas costas, fazendo-me lembrar de como a vida na mansão parecia ser mais "fácil". Caçar, matar, cortar, cozinhar. Tudo era sempre tão monótono que eu ficava cega demais para perceber os sinais que estavam bem diante de meus olhos. Tola demais para perceber que as pessoas ao redor não eram quem diziam ser.
Kennai é um Inferior. Lembro-me de sua força descomunal enquanto me atacava quando éramos menores e nos machucados que me causava quando brigava com ele. Com minha cabeça tola, nunca parei para analisar os fatos e ligar os pontos até que chegasse na conclusão de que ele tinha poderes sobrenaturais. Não que ele tenha tentado esconder, também. Eu sempre acreditava que quando ele me encontrava tentando fugir diversas vezes da mansão, estava apenas fazendo a patrulha. Quando na verdade lia meus pensamentos e me seguia por onde quer que eu fosse.
Não quero pensar nas coisas que ele leu de minha cabeça. Talvez tenha perfeita consciência do homem de olhos azuis que penetra meus sonhos. E talvez sempre ria de mim quando captava estes fragmentos; uma garota estúpida sonhando acordada sobre uma pessoa que talvez nem existisse. Mas não tinha como evitar.
Ele me acalmava. Ou os olhos dele, digamos assim. Tomei o hábito de sempre que acordava ofegante, suada e tremendo de medo após um pesadelo de bater os dentes, desenhava pequenos traços sobre ele. O que achava que combinava com aqueles olhos azuis e como queria que ele fosse. Vários e vários rostos diferentes estampavam meu caderno velho.
Mas, como sempre, nunca achei que meus desenhos feios fizessem jus à realidade.
Encosto a cabeça na parede, apreciando o som leve e reconfortante das árvores batendo uma na outra. É como o som mais fino do violino tocando bem baixo em minha cabeça, acalmando meu corpo conforme a exaustão pesa sobre mim. As flores do jardim... É como se estivessem brilhando levemente com a luz da lua. As cores se destaca mesmo a esta hora da noite, um pequeno arco-íris depois de uma noite de chuva.
Lentamente, vou fechando meus olhos até conseguir relaxar suficiente ali até me sentir confortável. Passarinhos cantam ao longe, sons da alegria que ainda existe em meu mundo. Eu apenas não a conhecia.
Os pássaros passam voando alegremente pela minha janela de grades. Os dois rodopiam entre si sem parar, não deixando de cantar sua música maravilhosa em nenhum momento.
Livres. Livres para voarem para onde quiserem e ali formar seu novo lar.
Meus olhos pesam mais. Fecho-os por uns instantes, absorvendo o som da natureza.
E adormeço ali mesmo na sacada ouvindo os barulhos calmos da noite.
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ㅡ O que você disse?
Minha voz mal pode ser ouvida sobre o burburinho de vozes incessantes do quartel. Fui arrastada de minha cama pelos poderes de Korian, forçada a me vestir e caminhar pelo imenso jardim até dar de cara com uma enorme construção de madeira e ferro que é onde os guardas treinam. E até agora não tinha percebido o que ele queria comigo, e o motivo. Porém, depois que a conclusão chegou em minha cabeça, lutei com todas as minhas forças para me livrar da magia que segura meu corpo.
O sorriso de Korian pode ser considerado animalesco. Ele está suado e vestido apenas em uma camiseta de algodão simples e calças folgadas. Os outros atrás dele se vestem da mesma maneira.
Seu cabelo loiro brilha fortemente com a luz do sol, parecendo ouro em sua cabeça. Eu pagaria para ver o que aconteceria se eu acidentalmente fazer essa cabeça pegar fogo e derreter até a morte.
Korian cruza os braços, exibindo os músculos fortes e firmes pela camiseta simples. Ele me analisa com deboche, os olhos se movendo por meu corpo esquelético várias vezes. Fico irritada com seu olhar odioso e me viro para ir embora, mas aquelas mãos manipuladas por seu poder me prendem no lugar novamente.
Acho que ouço uma risadinha, mas minha raiva volta tão forte que esquenta minha cabeça.
ㅡ Eu disse que é aqui onde você vai treinar, humana. Como espiã do rei, é necessário que saiba ao menos se defender caso alguém lhe ataque, não? E como minha noiva ㅡ Ele fala a palavra como se fosse uma maldição ㅡ, não posso deixá-la sem saber cuidar de si mesma lá fora. Pode acabar queimando um pobre coitado sem querer.
Absorvo aquelas palavras lentamente, olhando para os homens suados e grandalhões atrás dele. Pelo visto, quando transpiram, a magia se excede e vaza por seus poros. Posso sentir a mesma sensação de perigo de antes flutuando por aqui. Muito poder. Eu com certeza não quero treinar aqui.
ㅡ Mas vai. ㅡ ele sorri novamente, olhando para trás e de volta para mim. ㅡ Tomei a liberdade de criar um espaço exclusivo para você. Uma pena é que este lugar é bem ao lado de nosso jardim venenoso, por isso é melhor tomar cuidado para não cair nos espinhos.
Venenoso? Meus olhos voam para a grande extensão de terra que abriga as mais variadas flores, desde pequenas até umas com mais de um metro de altura. Entre elas, rodopiando como auréolas, estão os espinhos. Eles passam por cada centímetro das flores, não dando nenhum outro espaço caso alguém queira passar pelo meio. Vai acabar morto e cheio de veneno.
ㅡ Bem, humana. Sua primeira missão será dita pelo rei hoje a noite. E amanhã já parte para a ação. Precisamos saber quem são os infiltrados em nosso reino para podermos agir contra eles, e sua tarefa vai ser...
ㅡ Encontrar estes infiltrados. ㅡ digo, com raiva até a raiz dos cabelos.
ㅡ Exato. A maioria deles são do Reino Lunar ou Reino Drysand, então fique atenta. As aparências podem enganar mais do que você imagina.
É, eu já percebi isso.
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Braços em ataque. Ombros retos. Pernas dobradas e separadas.
Essa foi minha primeira lição no campo de treinamento. Mesmo com Korian berrando as ordens para mim com sua voz de semideus, não conseguia parar de olhar para os espinhos que pareciam estar cada vez mais perto de mim. A cada vez que olhava, tinha a sensação de que eles se moviam lentamente até chegar a uma distancia razoável para agarrar meu pé.
Em pouco tempo, achei que treinaríamos meu poder esquisito, mas na verdade apenas estou aprendendo sobre a luta física. Apesar de não ser tão eficaz quanto o uso de poderes, já é uma ajuda. Mesmo que me sinta magrela como um palito ao lado desses homens enormes, continuo experimentando os movimentos que Korian me ensinou durante o dia.
O suor escorre pelo meu corpo devido ao cansaço de estar horas e horas refazendo as mesmas poses. Ataco. Ataco. A blusa fina que visto está colada ao meu corpo. Ataco. Ataco. Respiração ofegante sai em ruídos quando me movo mais uma vez em direção ao imortal idiota que me observa com olhar sarcástico. Ataco de novo. Quando dou mais um passo em direção a ele, sinto o fogo.
Tomando conta de mim. Subindo pelos pés, alcançando os tornozelos e subido pelas pernas até alcançar a cintura. A queimação sobe como um incêndio tomando conta de um prédio, assolando qualquer coisa que se coloque em seu caminho. Abre caminho pelos espaços e toma conta de tudo ao redor, consumindo cada coisa que encontra. Acho que era isso que ele queria; ver meu poder fluir para tentar me ensinar a controlar. Mas sinto que desta vez não vai dar certo.
ㅡ Controle. ㅡ a voz de Korian penetra meus ouvidos, e eu luto para ouvi-lo claramente. Sinto uma dor de cabeça quando tento mover meu corpo para a frente, mas ele não obedece.
Minha cabeça parece estar envolta de névoa, tornando meus pensamentos desordenados e inquietos.
Caio no chão, segurando a cabeça queimando e me encolho como uma bola. Sinto a grama chamuscando com meu poder que não sei controlar. O chiado do mato queimando entra em meus ouvidos mais claramente, e posso sentir um pouco mais as coisas ao meu redor.
O treino parou. Não ouço mais o barulho de espadas ou a magia rondando ao meu redor. Os homens pararam seus afazeres para assistir meu pequeno show fracassado. Quando ergo a cabeça fracamente, Darion me observa com um sorriso esquisito, como se estivesse feliz por eu estar sentindo tanta dor. É como se eu estivesse sendo queimada de dentro para fora; sensação desesperadora.
ㅡ Sinto que vou perder meu tempo treinando uma humana fraca como você, Asterin. Se não consegue ao menos extinguir seu poder para um canto obscuro de sua cabeça, não vai conseguir cumprir a missão. ㅡ Korian diz, de pé e com os braços cruzados do outro lado do ringue. Nem faz menção de me ajudar a levantar quando o calor cessa.
Quase cuspo na cara dele.
ㅡ Eu não tenho nada a ganhar neste lugar, praga de Taryan. Por que deveria fazer algo a troco de nada?
Korian se aproxima como um predador, as botas esmagando a grama enquanto caminha como um touro até mim. Ele se abaixa onde a grama está queimada e agarra meu queixo com força, erguendo meu olhar para o dele. Estremeço quando dor percorre meu corpo, mas mascaro isso quando encontro seus olhos e vejo a raiva refletida ali. O encaro com o mesmo olhar.
ㅡ Somos pessoas de palavra, humana. Podemos não ter sentimentos, mas nossas promessas valem mais do que qualquer ouro que possamos te oferecer. Ou será que você gostaria de passar o resto de sua vida miserável em meu castelo? Ou prefere a liberdade, como falamos? Para você e seu irmão inútil, não se esqueça.
Liberdade. Essa palavra rodou minha cabeça milhões de vezes enquanto fui dormir. Como seria a liberdade, afinal? Para onde eu iria se terminasse o serviço e fosse jogada para algum lugar tão distante que nem mesmo o faro precioso de Kennai me encontraria?
Liberdade pode ter significados diferentes para mim e Korian. Em minha visão, iria para longe. Para as províncias de Ähres, onde as pessoas vivem sem serem governadas pelos semideuses e tem o seu próprio governo. Um pequeno lugar seguro e escondido de todos. Poucas pessoas o conhecem e não pensariam em me procurar por lá.
E talvez, a liberdade para ele pode ser a morte. Se ele acredita na vida pós-morte, não vai hesitar em me matar caso esta seja mesmo sua crença. Talvez nada disto exista, e ele terá me matado a troco de nada. Mas, se existir, eu talvez também aprecie isto. Mas não tanto quanto amo a vida.
Korian e seu pai me prometeram a liberdade depois de terem dado a ordem de que eu seria sua espiã. E que... me casaria com Korian. Quando perguntei por que diabos eles apenas não me obrigavam a fazer isso, responderam que eu era um caso extremo e queriam estudar meu poder. Humana com poder.
Mas casar com ele... isso não era liberdade. Era uma prisão que me apertava e sufocava até não deixar nenhum ar dentro de meus pulmões.
ㅡ Consigo ver, humana, que isso ficou em sua cabeça por bastante tempo. Mas ainda não decidiu, não é? As dúvidas ainda estão aí rondando, e você se pergunta várias e várias vezes se estou falando a verdade.
Não consigo negar. Não consigo acreditar nas palavras que saem de sua boca, mesmo que talvez sejam verdades. Não consigo confiar nele o suficiente para ter um voto de certeza de que eles realmente vão me deixar ir embora sem ressentimentos. Ou sem mandar alguém atrás de mim para me matar. As dúvidas rondam minha cabeça como o fogo fluindo pelo meu corpo; não se extingue e talvez nunca o faça.
A palavra de um semideus é poderosa, isso eu sei. Fomos criados e ensinados a nunca duvidar de uma promessa imortal. Porém, ao ouvir, fico me questionando se devo confiar nele ou ignorar a promessa e aceitar viver o resto da vida presa em uma cela. O que não me parece muito atraente do que a ideia de talvez ser livre.
As províncias de Ähres tem abrigado muitas pessoas que fogem dos semideuses ao longo dos anos. A pequena ilha, situada ao leste das terras humanas, criou seu próprio refugio para aqueles que desejam fugir de alguma situação ou apenas encontrar um pouco de paz. Ouvi histórias sobre a paz reinando naquele lugar, e não consigo imaginar lugar melhor como esse para viver quando for embora deste lugar.
Ähres, como já vi em pinturas e fotos, possui uma das melhores veleidades da natureza que já existiram em Taryan ou nas terras humanas. O pequeno paraíso escondido que nunca foi alcançado por um imortal. Continua seguro mesmo depois de tantos séculos de existência. Tão lindo que até o mais rico imortal desejava um dia morar naquele lugar.
ㅡ Viajando novamente, hein, humana? ㅡ sua mão aperta meu queixo, enviando farpas de dor para minha mandíbula. Sinto meu corpo esquentar novamente com as faíscas de fogo que rolam pelo peito com a raiva contida por ele. ㅡ Espero que tenha chegado a uma decisão. Se não, vai ter até o último dia da lua minguante para me responder. E se continuar com incertezas mesquinhas, os monstros da floresta vão adorar encontrar dois humanos saborosos como você e seu irmão pendurada em uma árvore e pronta para ser devorada.
Meus olhos se arregalam. Ele sorri e se afasta, me deixando para trás com a boca ainda aberta. Observo suas passadas enormes atravessando o gramado até que ele para abruptamente, virando levemente em minha direção. Seu olhar se prende a algo atrás de mim, e Korian abre um sorriso que poderia ser considerado maligno.
ㅡ Tome cuidado com as plantas venenosas, Asterin. Elas gostam muito de humanas.
E volta a andar. Fico um tempo ali, parada e confusa, tentando entender o significado daquelas palavras. E dou um grito alto ao sentir algo tocando meu pé direito.
Me viro rapidamente, quase entrando em desespero quando vejo um enorme talo cheio de espinhos se levantando sobre mim. Então eu não estava viajando. Eles estavam mesmo se movendo em minha direção lentamente, e paravam a cada vez que eu olhava para que eu me considerasse ainda mais maluca.
Desvio para a direita quando o talo se joga no chão, para me pegar. Meu pé machucado dói, mas levanto e tento parar a adrenalina que rola por meu corpo. Ao redor, os homens pararam de lutar novamente e me assistem fugir dessa coisa gigantesca. Alguns sorrindo; outros balançando a cabeça em sinal de pena.
Cuidado com o veneno, Korian disse. Esta coisa está infestada de veneno e se eu não tomar cuidado, serei com certeza morta. E, se consegui sobreviver até aqui, seria muita humilhação morrer por causa de uma planta.
Mas ele poderia morrer com ela? Talvez acabe pesquisando sobre essa planta, afinal.
Quando ela vem em minha direção, corro para a esquerda e recebo uma topada no pé, o que me faz cair. Me lanço com força para cima, escalando a estrutura grande de madeira que me leva ao mesmo lugar onde os homens treinavam. E corro.
Ouço as risadas conforme passo voando por todos eles, mas ignoro. Aprendi a ignorar vivendo nas sombras e não está sendo diferente desta vez. Sou uma piada para eles, sei que sou. E sempre vou ser.
O castelo também passa como um borrão. Mal vejo as criadas passando por mim antes de esbarrar em uma delas e derrubar a bandeja que estava segurando. Seu grito esganiçado me assusta, mas só murmuro um pedido de desculpas antes de correr diretamente para o quarto, mal dando tempo de me jogar na cama antes que as lágrimas cheguem, rápidas e furiosas.
Maldito Hethan por me colocar aqui. E maldita seja Taryan por existir.
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