Capítulo Vinte e Quatro
Com muita ajuda da terapia, de Felipe e dos demais ela havia conseguido colocar sua vida de volta ao eixo, parando de se sentir culpada pelo que passou. Agora mesmo não querendo admitir praticamente já estava morando com Felipe, tudo aconteceu aos poucos sem que ambos nem notassem, muito naturalmente. Ela ia ficar lá apenas até sua recuperação, depois até que a casa de seus pais ficasse pronta, depois, por causa da poeira da obra e de sua alergia, resolveu ficar mais um pouco e então acabou ficando de vez.
Bruno havia conseguido achar a casa ideal para seus pais, porém ela precisou passar por algumas reformas, troca de pisos, uma pintura, uma fachada nova e uma ajeitada no muro e com a chegada de todos os móveis, finalmente eles podiam chamar aquela casa de lar. O melhor de tudo era que a casa ficava há meia hora de carro da casa de Felipe, ou seja, eles sempre estariam perto. Antes mesmo da reforma acabar ou de todos os móveis terem chegado, os três já haviam saído da casa de Felipe, pois principalmente Jean detestava a ideia de estar incomodando alguém, mesmo que esse alguém dissesse insistentemente que ele não incomodava. Por fim com a casa pronta, Denise queria dar uma festa da casa nova para todo mundo, seria sua grande inauguração.
- E você também está convidado Bruno! – disse Janaina. Eles estavam almoçando juntos.
- Eu? Jura? Adoro uma boca livre!
- Claro Bruno, foi você quem arrumou aquela casa pra eles, do jeitinho que eles queriam. Nada mais justo do que você vir pra a grande inauguração da dona Denise. Ela vai fazer a especialidade dela, um empadão de frango com requeijão dos deuses!
- Caramba, me amarro num empadão de frango com requeijão, ainda mais se for dos deuses! – Bruno já babava na comida que sequer havia visto.
- E não se preocupe amor, ela também vai fazer um empadão de brócolis com requeijão que também é dos deuses, só pra você!
- Ah que vergonha, olha eu dando trabalho pra ela, tendo que fazer dois pratos.
- Que vergonha Felipe, eu que não sou besta vou cair de boca nos dois!
- Claro né Bruno, você só não come pedra – afirmou Felipe.
- Se tiver um molho quem sabe...
Os três riram das caras e bocas que Bruno fazia.
- Minha mãe também chamou o Luccas, por tudo o que ele fez por mim e também porque foi tão bonzinho com o Ruan, ela definitivamente adorou seu irmão. Mas infelizmente ele tem compromisso.
- Que bom, sobra mais empadão pra mim!
- Nossa Bruno, tem comida em casa não?
- Deixa ele Felipe - repreendeu Janaina, com um tapinha em sua coxa. – Bruno, pode comer à vontade, o quanto quiser viu? Minha mãe literalmente ama quando a visita come com gosto. Ah e vocês também vão ter a oportunidade de comer minha especialidade, pavê. Não é por nada não, mas é de comer rezando.
-Depois dessa acho que já vou separar meus potinhos pra levar pra casa também. Não é todo dia que se tem comida de mãe e sobremesa de amiga assim dando sopa não.
Mais uma vez Felipe implicou com Bruno e Bruno implicou com Felipe, se estendendo assim até o almoço terminar. Depois de combinado o horário, era só esperar o dia seguinte chegar.
...
Três meses haviam se passado, e como passaram depressa, parecia que ela havia fechado os olhos e quando abriu uma sucessão de coisas haviam se passado, lhe restando apenas lembranças e uma cicatriz esquisita na barriga. Janaina havia tomado banho no banheiro de Felipe e saiu enrolada em uma toalha branca em busca de suas roupas. Não, ela jamais ia admitir que morava com ele, por isso que ainda não havia trazido todas as suas roupas, apesar de que pelo menos, uns oitenta por cento do seu guarda roupa já se encontrava dentro do closet de Felipe. Mas mesmo assim, ela era teimosa demais para se dar por vencida.
Ao entrar no closet e começar a vasculhar suas roupas, se abaixou para alcançar uma calcinha em uma gaveta que por mais que tentasse manter arrumada, já estava uma completa bagunça, quando se levantou abruptamente fazendo a toalha cair aos seus pés, a revelando totalmente nua. Um enorme espelho refletia sua imagem mais à frente e ela, atraída por sua própria imagem, o seguiu, ficando frente a frente com ela mesma. Fazia tempo que não se olhava no espelho, não daquele jeito, na verdade, talvez nunca tivesse a ousadia de se olhar daquele jeito. Ela sempre por algum motivo que não entendia muito bem, evitava se olhar por mais que uns míseros segundos, pois no fundo sempre tinha vergonha de si, de seus seios pequenos, de suas estrias e suas celulites, de sua barriguinha saliente, das marquinhas de espinha em seu rosto. Ela sempre pontuou para si todas as cirurgias plásticas que gostaria de fazer e eram muitas. Também removeria uma grande parte de pelos de seu corpo. A lista era tão grande de coisas que modificaria, que as vezes ela mesma se perdia. Seus olhos foram diretamente até sua cicatriz, mais uma coisa com o que se preocuparia a partir de agora, mais uma coisa para odiar. Agora ela carregaria para sempre Eduardo, muito além de em sua memória, mas em seu corpo, pois foi por causa dele que aquela cicatriz estava ali. De repente, Felipe também apareceu em seu closet, ele havia entrado no chuveiro logo após ela, então também estava atrás de roupa, porém se conteve na porta, observando o que ocorria sem deixar que Janaina notasse sua presença, pois percebeu instantaneamente que alguma coisa estava por acontecer.
Ela então passou o dedo sobre a cicatriz recém curada e ainda muito vívida, se lembrando de tudo o que ocorreu, se lembrando do jantar, se ela se concentrasse bem, conseguia se lembrar até do cheiro que sentiu ao entrar no restaurante. Também se lembrou de sua indignação ao ver os preços e até da surpresa ao ver um manobrista ao chegar no lugar. De repente sua mente foi puxada mais para trás, quando Eduardo armou aquele barraco na porta do trabalho, mas também se lembrou de antes disso, de quando eles eram namorados e por último de quando se conheceram. Foi muito trágico e infeliz o que houve, pois ela sempre iria ter um carinho especial por ele, que fez parte de vários anos de sua vida. Mais uma vez ela olhou para sua cicatriz e não a odiou, por mais que tenha sido de um momento doloroso, ela queria ressignificar aquilo, queria que fosse uma lembrança de como Eduardo um dia foi bom, como era doce e gentil, como era preocupado com os outros e muito esforçado. Ela sempre se lembraria daquele sorriso preguiçoso e debochado. Aquela cicatriz seria para sempre uma lembrança, hora boa, hora ruim. Assim ela olhou para si, de uma maneira geral, suas marcas, suas lembranças. Olhou para suas estrias que a tanto incomodavam e percebeu que elas lhe contavam várias histórias diferentes. De como ela engordou de nervoso e pelo mesmo motivo, passou mal e emagreceu, isso repetidas vezes. Ou então quando ela queria porque queria fechar a boca com dietas mirabolantes, conseguindo emagrecer e logo em seguida, engordar tudo de novo. Ela riu de si mesma e percebeu todos os anos desperdiçados e de toda energia gasta que poderiam ter sido melhores empregados os gastando em dias lindos na praia, por exemplo. E aquelas celulites ali? Bom, algumas resultado do refrigerante que ela, mesmo sabendo que fazia mal, insistia em beber. Mas quem não gosta de um refrigerante bem gelado em um dia de Sol quente? E a barriguinha saliente que lhe custava a perder e que as vezes lhe marcava a roupa? Poderia ser resultado daquele hambúrguer que só o senhor Arnaldo, do trailer da praia, sabia fazer. E também daquele sorvete que ela tomava em seguida. E da pipoca do cinema. E do bolo do aniversário. E do brigadeiro dos dias tristes. E do creme de avelã no pão quentinho. E de tantos outros momentos, de tantas outras lembranças. E come coxinha num dia e corre na esteira noutro. Por que não? A vida é tão curta para se privar de momentos, assim como ela fez a vida toda. Então se aproximou mais no espelho, fazendo uma coisa que nunca havia feito em toda sua vida, ela finalmente se olhou nos olhos e ali se viu. Assim como ela olhava nos olhos de Felipe e enxergava um mundo, ela pode agora, enxergar seu próprio mundo. E amou o que viu. Finalmente ela conseguiu enxergar o que tanto Felipe, sua mãe, alguns amigos, Bruno, a terapeuta, enfim, o que as pessoas tanto falavam a seu respeito. Ela pode finalmente enxergar sua alma, sua essência. Olhando em seus próprios olhos, mesmo que com lágrimas que as vezes borrassem a visão, ela conseguiu se ver. Encarou todos seus defeitos e amou cada um deles, porque cada um deles construiu quem ela era nesse momento. Cada um deles deixou marcas que só ela entendia, assim como a tatuagem que ela carregava em seu antebraço. Sua história estava toda ali, contada em seu próprio corpo e quem ela via dentro de si, era resultado disso. Cada marca, cada cicatriz, cada pedacinho de si. Se ver daquele jeito, nua, não só de roupa, mas de alma e coração abertos, a fizeram perceber o tempo que havia perdido com coisas bobas e ínfimas, mas que agora faria questão de levar consigo para sempre. Que fazer cirurgia, ela queria aproveitar cada segundo de uma vida que lhe foi arrancada por um medo bobo e irracional. Finalmente se sentia livre e leve, como se as amarras que ela mesma havia colocado em si tivessem finalmente se partido. Agora, aos poucos, ela finalmente tornava-se a protagonista de sua própria vida. Agora olhava-se com gratidão por quem foi, com respeito por quem era nesse momento e com esperança de ser uma pessoa cada vez melhor, principalmente para si mesma.
Muito emocionada, ela levantou os olhos e percebeu Felipe quase escondido, parado na porta. Quando ele notou que ela o viu, decidiu entrar, indo em sua direção.
- Me diz que finalmente você viu – disse ele, por detrás dela. Ambos se olhavam pelo espelho.
- Vi.
- E o que você achou?
- Que vocês estavam todos certos e que eu mesma fui a pessoa mais malvada comigo. Mas passou. – Ela olhou mais uma vez pro reflexo de seu espelho. - Eu finalmente entendi que eu devo me amar em primeiro lugar e olha lá. Ela é linda.
- Linda. Maravilhosa. Perfeita. E eu fico muito honrado de poder fazer parte disso com você.
Ela virou-se para Felipe, que a olhava com orgulho.
- Eu também fico muito feliz de você estar aqui, afinal você é parte disso.
Ele a puxou para perto de si, com certa malícia no olhar. Ele a beijou antes de falar.
- Não é por nada não, mas acho que vamos nos atrasar um pouquinho pro almoço de hoje.
- Só um pouquinho? – Ela captou a mensagem de imediato. – Acho que não tem problema não.
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