Capítulo Sete
Dia 1
Enfim a noite caiu, Janaina estava um pouco cansada devido as poucas horas de sono e a correria logo pela manhã, nunca havia visto alguém desmaiar na sua frente e aquilo mexeu muito com ela. Tudo o que queria agora era que Felipe ficasse bem. Depois do lanche que deu lugar a janta, eles assistiram um pouco de TV fazendo alguns comentários sobre o que viam e logo subiram para seus quartos. Ela ficaria no quarto do irmão, que era ao lado do seu.
Felipe estava agora deitado na cama de Janaina e pela primeira vez em muitos anos ele se deitou para dormir antes da meia noite. Ele mesmo não estava com sono, mas percebia nas expressões de Janaina que ela precisava dormir. Como acabou parando ali? Ele nem acreditava que estava na casa de uma pessoa que conhecia há tão pouco tempo, mas via na menina toda boa vontade e carinho do mundo para com ele, não tinha como rejeitar uma oferta tão afetuosa como essa. E também se fosse para se afastar do trabalho que fosse logo de vez. Trabalho. Ele estava realmente preocupado com o trabalho, pois foi arrancado dele com um atestado médico somente dando uma breve explicação, mas ele também confiava em sua equipe, sabia que eles conseguiriam segurar as pontas perfeitamente. " É só uma semana Felipe, só uma semana", pensava, se forçando a acreditar que tudo ficaria bem. Por mais que pensamentos o bombardeassem, estranhamente se sentia confortável e seguro naquele lugar, o que o induziu a um leve sono, mas rápido do que imaginaria que conseguisse.
Por ser uma cidade praiana vire e mexe haviam fortes ventos costeiros, algumas vezes, tampas de caixa d'água menos resistentes passavam voando pela rua e não havia roupas no varal que aguentassem a força do vento. Realmente para quem não estava acostumado, parecia o prenúncio de um vendaval. As árvores dançavam em um ritmo frenético, dando a impressão que poderiam ser arrancadas pelas suas raízes a qualquer momento. O mais estranho mesmo eram os barulhos que os ventos faziam, alguns até pareciam obra de algum ser fantasmagórico que uivava enquanto, alguma menininha travessa gritava a plenos pulmões.
Janaina já estava acostumada com esses ventos travessos e como tinha um sono extremamente leve, acordou no meio da noite esperando sua passagem para conseguir retomar seu sono e enquanto isso não acontecia, a televisão era sua melhor companheira. Felipe por outro lado, não havia experimentado os sons loucos que esses ventos carregavam e enquanto dormia, despertou abruptamente com o som de um grito que parecia muito com um grito feminino, um grito alto, fino, extremamente assustador. A primeira coisa que pensou foi em Janaina e que alguém poderia estar fazendo algum mal a ela. Ele levantou-se com o coração em pulos, jogando a coberta para o lado. Sem ter com o que se armar, com a cara e com a coragem saiu do quarto, no escuro total e ainda meio zonzo de sono, escancarando a porta do quarto de Janaina, dando-a um susto, a fazendo deixar cair o controle no chão.
- Ai Felipe, que isso? – Seu coração latejava em seu peito.
- Você tá bem? Tem alguém aqui? Que grito foi esse? – Ele se apoiava no batente da porta com uma mão enquanto segurava a maçaneta com a outra.
- Que? Não tem ninguém aqui. - Mais uma vez o "grito" foi ouvido, mas não saiu da boca de Janaina. – Ah, você deve estar falando desse grito. É só o vento soprando um apito.
Ele largou a porta e sentou-se ao lado dela, na beira da cama.
- Que susto, eu não estava esperando isso. – Ele passou as mãos pelos cabelos.
Ela riu. Só riu. Riu muito mesmo da cara que ele fazia.
- Isso, ri mesmo, ri mais. Eu vim aqui te proteger e você ri de mim.
- Então a gente ia morrer, os dois, juntinhos.
Mais uma vez o vento deu seu grito.
- Mano, que surreal esse barulho, nunca ouvi vento fazer esse barulho.
- Meu pai diz que é a forma que o vento passa pelas casas aqui detrás. Eu também me assustei nas primeiras noites, mas depois de um tempo você acostuma, espera ele passar e segue a vida.
- Eu nem tinha me dado conta que tinha dormido até acordar desesperado. Perdi até o sono.
- Vem - ela levantou o edredom, convidando-o para sentar com ela –, a cama é de solteiro, mas a gente se espreme aqui pelo menos até o vento passar. Eu coloco o filme no começo de novo.
Meio sem jeito, ele se enfiou na cama junto com ela que assistia um filme qualquer de comédia barata, mas que fez eles rirem que nem duas hienas. Talvez não fosse o filme em si, talvez fosse a presença de um que fizesse bem para o outro.
O sono ia bem até que o cachorro da vizinha começou a latir desenfreadamente, fazendo com que ambos despertassem praticamente juntos, já pela manhã.
- O que você tá fazendo aqui? – perguntou Janaina ainda sonolenta.
- Acho que apagamos depois do filme. – Felipe esfregava os olhos.
Não foi bem verdade, a verdade foi que Janaina adormeceu assim que o vento parou, mas Felipe ficou ali sem vontade nenhuma de ir embora. Ele a olhava dormir um sono tranquilo, nem parecia mais aquela menina toda confusa e com os sentimentos todos embolados dentro de si. Agora ele via uma pessoa tranquila, calma, plena, dona de si, começando a perceber e tomar seu lugar no mundo. Claro que aqueles eram só os primeiros degraus da grande escadaria da vida que ela teria que enfrentar, mas saber que ele foi um dos primeiros degraus que a auxiliaram nessa escalada e conseguir perceber bem de pertinho aquela evolução era extremamente satisfatório. Ele estava orgulhoso e feliz por ela. Ele pegou sua mão, dando um beijinho carinhoso, torcendo para que ela não acordasse e depois de um tempo perdido em seus próprios pensamentos ele acabou dormindo também.
A tela da TV exibia uma mensagem de "Você ainda está assistindo isso? ", e ela a desligou assim que levantou da cama, sua coluna doía pelo mal jeito que dormiu.
- Com três quartos na casa a gente foi dormir no único que só tem uma cama de solteiro. Tô quebrada.
- E eu, meu braço tá dormente.
Pela primeira vez, ambos se viram logo depois de acordar.
- Bom dia Felipe. – Ela deu um sorrisinho.
- Bom dia Jana.
Eles se encararam por um breve tempo.
- Eu sei o que você deve estar pensando, "ela está só os farrapos...".
- Que? – ele despertou de seu transe. – Não, eu...
Ela jogou um travesseiro nele e depois continuou a dobrar as roupas de cama.
- Se meu irmão imaginar que você dormiu na cama dele, ele tem um treco.
- Ele não gosta de mim?
- Não gosta? Ele te ama, ele te venera. Me enche a paciência pra falar com você. Minha mãe nem contou a ele que você ia ficar aqui, se não ele ia querer voltar do passeio.
- Tadinho e porque você não me disse isso antes?
- Ah Felipe, sei lá, não queria abusar da sua boa vontade.
- Faço questão que você o leve qualquer dia desses lá em casa pra gente jogar juntos, almoçar, ele gosta de tomar banho de piscina?
- Felipe, ele é uma criança fascinada em você, ele entraria numa nave rumo ao Sol contigo.
- Então fica assim, leva ele lá pra gente passar um dia bem legal junto. Só vou esperar abrir um espaço na agenda.
Ela passou por ele e abriu a porta.
- Você é demais, vou nem dizer isso a ele agora, se não ele nem dorme. Vamos descer? O que você come de café da manhã? – interrompeu Janaina, antes mesmo dele esboçar alguma resposta. – Também não importa, só tem pão, manteiga, leite e café mesmo... ainda temos que sair pra fazer umas comprinhas.
Pegando o carro que seus pais deixaram na garagem, Felipe e Janaina saíram para fazer compras no mercadinho ainda antes do almoço. Ela não dirigia então ele quem foi o motorista da vez, ficando no carro para que ninguém o visse, o que significaria o fim do descanso. Ainda bem que o carro tinha os vidros bem escuros, não tendo como identificar o condutor. Enquanto ela passava as compras no caixa, olhava vez ou outra para o carro pensando que mais ninguém tinha noção que o próprio Felipe Neto estava ali bem pertinho delas. Muita gente se mataria para conseguir nem que fosse uma foto com ele. Assim era a vida, sempre uma caixinha de surpresas.
Já ele a olhava sem rodeios de dentro do carro. Ela era uma pessoa meio contida, sua timidez transpassava de longe, mas via-se um breve sorriso amigável toda vez que cumprimentava alguém, fosse algum conhecido que passava ou algum funcionário do mercadinho. Ela vinha com várias sacolas pesadas, mas ele não podia sair para ajudá-la a carregar, porém algum funcionário do próprio mercado prestou esse auxílio a ela.
- É isso aí, eles viajaram um pouco pra distrair.
- Tá certo, eles merecem. – Um senhor de mais de sessenta anos a ajudou a colocar as coisas no banco traseiro.
- Obrigada pela ajuda seu Luís.
- Que isso minha filha, de nada. Dê tchau para o seu namorado. – Ele se virou e foi.
Ela deu a volta no carro e entrou já colocando o cinto.
- Namorado? – Ele ergueu uma sobrancelha.
- É, eu costumava ter um, a gente vinha muito aqui e o seu Luís deve ter achado que era ele.
- E o que houve?
- Longa história que não vale mais a pena contar.
- Eu sei como é, também tive um relacionamento, três anos.
- Amador, o meu foram sete.
- Caramba, tanto tempo assim?
- Você já ouviu falar que as vezes a gente fica anos e anos com uma pessoa e não dá em nada e de repente a gente fica com outra pouco tempo e se depara com o amor eterno? Então, talvez agora meu amor eterno esteja me esperando por aí.
Um carro buzinou atrás deles esperando a vaga, pois não haviam muitas disponíveis. Aquele papo acabou caindo no esquecimento, não valia a pena ficar falando de amores e dores passados quando eles podiam ter o vislumbre de dias lindos e apaixonantes bem à frente deles.
Dia 2
No dia que se seguiu não houve vento que atrapalhasse o sono de ninguém e surpreendentemente Felipe estava dormindo cedo e rápido, duas coisas que não acostumavam ocorrer com frequência. Realmente desacelerar era o que ele precisava. Acordou e ficou mais um tempo na cama fitando o teto, quando a conversa do dia seguinte voltou em suas lembranças. Ele queria muito saber o que houve no último relacionamento de Janaina, mas não queria ser indelicado fazendo perguntas, porque dependendo de como ocorreu poderia machucá-la ainda. Ali ele percebeu que já fazia um tempo que ele mesmo não pensava na ex. Há pouco pensar nela ainda doía muito e agora, ela era tão somente uma lembrança, alguns momentos vividos, algumas risadas trocadas, algumas discussões calorosas, alguns momentos íntimos. E só. Não doía, não lhe causava angústia ou tristeza, era somente uma passagem de tempo que ficou para trás. Ele tentou lembrar e perceber em que ponto ela deixou de ter importância e passou a ser apenas uma memória e não conseguiu decidir o dia exato. O fantasma dela foi aos poucos sumindo e sumindo, até não conseguir mais enxerga-lo. Porém também, lá no fundinho de seu subconsciente, ele sabia que isso tinha a ver com Janaina, porque a partir do dia em que ela apareceu em sua vida sob a forma de caracteres, alguma coisa começou a mudar. E ele permitiu-se admitir que gostava disso. Gostava do jeito doce dela, de sua timidez, de como ela desviava o olhar abruptamente ou de como ficava exageradamente vermelha quando estava envergonhada, de sua forma infantil e ingênua de ver o mundo, de como era carinhosa, gentil e empática com as pessoas, de como era simples e também de como era forte, mesmo sem saber ou querer admitir. Era engraçado que mesmo ele sabendo todos os fantasmas que ela carregava, mesmo sabendo de alguns de seus defeitos, ultimamente as únicas coisas que ele conseguia ver eram todas as coisas boas que emanavam dela, sua energia era renovadora.
Ali deitado em seu travesseiro, ele se deu conta que era naquele quarto, naquela cama, com aquele travesseiro que ela chorou sozinha, várias e várias noites se perguntando quem era ou o que devia fazer. Foi ali que ela viveu sozinha seus maiores medos, suas angústias. Foi ali que ela se questionou sobre sua vida. Um nó se formou em sua garganta somente em imaginar aquela menina tão sensível chorando até perder o fôlego. Como ele queria poder ter estado ali com ela, a acolhendo em seus braços naqueles momentos de maiores dores e sofrimentos, com o abraço mais apertado que pudesse dar, dizendo-lhe que tudo iria ficar bem. Mas também, felizmente aquilo tudo passou e aquele mesmo travesseiro que aparou suas lágrimas, hoje via seu enorme sorriso.
Decidido por fim levantar-se, ele arrumou a cama mais ou menos do jeito que ela arrumava e saiu do quarto a fim de ver se ela já estava acordada. O primeiro lugar seria o quarto ao lado do seu e sim, lá estava ela, acordada e... Dançando com uma vassoura? Sim, ela estava com umas roupas meio surradinhas e dançava com alguma música que ouvia em seus fones de ouvido, enquanto dançava com uma vassoura. Ela não o viu chegar, pois estava de costas para a porta e ali dava seu show particular.
Dias de limpar a casa eram sempre os piores, mas limpar a casa sozinha, com seus fones de ouvido tocando suas músicas favoritas e sem ninguém para encher sua paciência era divino. Ela havia aprendido a gostar de arrumar a casa quando não tinha ninguém, porque ali podia se soltar, podia dançar, ir até o chão, cantar, sem que ninguém a visse. Às vezes ria sozinha de si mesma. Se fosse para limpar, que fosse com um pouco de diversão. Felipe olhava da porta achando graça do pequeno espetáculo particular que estava assistindo. Ela fazia uma pequena coreografia que havia inventado de outras faxinas, quando se virou e deu de cara com ele a observando encostado no batente da porta.
- Que susto, a quanto tempo você está aí? – Ela tirou rapidamente os fones dos ouvidos.
- A tempo suficiente para ver sua dancinha.
Ela ruborizou na hora, desviando o olhar sem graça. Ele adorava isso.
- Ah para, não fica com vergonha, sua dancinha era ótima.
- Sem comentários para você.
- Hoje é dia de faxina?
- Sexta feira né? Não custa passar um pano no chão e nos móveis para tirar a poeira. – Ela queria se esconder sob o pano que segurava.
- Ótimo, vou tomar um café, trocar de roupa e já subo pra te ajudar.
- Não, que isso. Você está aqui pra descansar.
- E perder toda essa coreografia? Você vai me ensinar tudinho.
Ele comeu umas frutas de café de manhã bem rapidamente e vestiu umas roupas velhas do pai de Janaina para que pudesse ajudar na faxina.
- Vai, coloca aí a música que você estava ouvindo.
Ela ligou uma caixinha de som e conectou ao seu celular.
- Tem certeza que quer ouvir minhas músicas? Você pode não gostar.
- Tenho sim, "vambora".
Ela deu play na música, era uma música um pouco antiga de uma boyband que ela amou na adolescência e ainda amava até hoje, principalmente depois do comeback após um hiato de alguns anos.
- Não acredito que você vai me fazer dançar isso – ele reconheceu a música.
- Eu te avisei.
- Bora, como era a dancinha mesmo?
Ela aos poucos foi se soltando e quando se deu conta estava dançando junto com Felipe, que não tinha problema nenhum em passar vergonha. Ela estava ali, dentro de um quarto, com roupas velhas, cabelo pro alto, descalça e com uma vassoura em mãos, mas estava feliz. Muito feliz. Janaina amava dançar, mas nunca dançava por vergonha, tinha vergonha de tudo, então nunca dançava em público, fosse em uma festa ou em um show, deixando a dança para quando estava em casa e sozinha. E ali agora ela não estava sozinha, estava compartilhando um momento íntimo com alguém, ambos faziam coreografias de algumas músicas conhecidas ou improvisavam algo no momento e se acabavam de rir. Ela ria tanto que lágrimas rolavam de seus olhos, uma característica bem forte nela, sempre que ria demais, seus olhos lacrimejavam e ela sabia que aquele era o primeiro indício de que estava realmente feliz. Sua barriga doía de tanto que ria. Aquela foi a primeira faxina que ela fez com Felipe. Aquela seria a única faxina que ela faria com Felipe. Mas estava amando cada segundo. Ela nunca havia tido um momento tão legal assim com alguém e a cada instante agradecia principalmente em ser com ele.
Dia 3
A noite caiu com um frio que passava pelas paredes. Se alguém chegasse perto da porta, sentia como se um ar condicionado muito forte tivesse ligado, mas era apenas o frio vindo de fora da casa. A noite estava muito propícia para maratonarem uma série que ambos amavam e já haviam visto uma centena de vezes. Uma vez a mais não era demais, não é? Eles riam das mesmas piadas e faziam alguns comentários a respeito do que achavam interessante. No sofá, dividiam um edredom e vestiam calça de moletom com meias nos pés. E ainda dizem que as pessoas ficam mais fashion no frio.
- Esse frio é normal? Olha minha mão, tá gelada. – Ele pegou no tornozelo de Janaina, bem no espacinho entre o fim da calça e o início da meia
- Ai Felipe, morreu foi? – Ela se encolheu de frio.
Ele riu.
- Fazia tempo que eu não sentia tanto frio assim, sem um ar condicionado ligado e nem parecia que ia esfriar, o dia foi tão lindo.
- Aqui é assim mesmo, de manhã sol e à noite um frio insano. Acho que vou preparar alguma coisa pra esquentar. Gosta de mingau?
- Pra passar esse frio aceito até água quente.
Ela se levantou do sofá, fechando o casaco um pouco mais e foi rumo a cozinha. Um certo tempo depois, Felipe surgiu atrás dela.
- Quer ajuda?
- Não, já estou quase terminando. – Ela finalizava o mingau no fogo.
- Quer que eu pegue os bowls pra gente?
- Que bowl Felipe, que bowl, é tigela. Ti-ge-la. Repete comigo, tigela.
- Tá bom, as tigelas. Onde estão?
Ela apontou para o armário, enquanto desligava o fogo. Assim que ele abriu o armário deu de cara com as tigelas, pegou duas e levou para a pia. Ela esfriava um pouco o mingau na torneira.
- O que você tá fazendo?
- Esfriando um pouco o mingau até chegar na temperatura perfeita. Aprende, porque é assim que vamos fazer pros nossos filhos.
- "Nossos? ".
Ela quase engasgou. Não acreditava que tinha falado "nossos filhos".
- É, ué... um dia você terá seus filhos, eu adotarei os meus... e é isso. – Ela começou a servir.
Cada um pegou sua tigela sobre a pia e voltaram a sala.
- Adotar? Você não quer filhos biológicos?
- Nem se eu quisesse muito, mas eu não posso ter filhos.
- Ah, eu não sabia disso, sinto muito. – Esse assunto, sabia ele, era bem delicado.
- Não sinta, eu mesma não senti. Tá tudo bem.
- Então você não se importaria de contar em como descobriu.
Ela olhou para o mingau e depois para ele.
- Foi por isso que eu terminei com meu ex.
- Que babaca, ele te deixou por causa disso?
- Na verdade não, eu que deixei ele. – Ela fez uma pausa.
- Mas por causa disso? Ah Jana, quando a gente gosta de uma pessoa a gente dá um jeito. Adoção por exemplo é incrível.
- Não foi porque eu me senti mal de não poder dar um filho a ele, mas por causa do que ele fez. Nosso relacionamento ia mal, a gente brigava muito, depois voltava, já estava bem desgastado sabe? A gente terminou definitivamente pouquíssimo depois que comecei a trabalhar pra você.
- Eu nem imaginava que você tinha alguém, não com você dizendo que estava tão sozinha.
- Pra você ver... mas o pior nem foi isso. Quando ele descobriu que eu comecei a trabalhar, ficou doido, acho que ele gostava de me ver em casa, porque assim sabia onde eu estava e podia me controlar. Mas o pior veio depois. Ele voltou todo gentil, carinhoso, atencioso, parecia estar tudo bem, então um belo dia eu comentei que minha menstruação estava atrasada e então vi os olhos dele brilharem e ele me contou o que fez. Ele tinha tirado o preservativo e eu não percebi. Ele disse que fez isso porque me amava muito e queria ficar comigo para sempre. Felipe, eu fiquei sem chão.
- Imagino, mas você não toma remédio?
- Não, também não confio em remédio, mas isso é papo para outra hora. O fato era que ele sabia que eu não tomava remédio e se aproveitou disso para poder me controlar. Eu me senti totalmente usada, manipulada, me senti péssima. Eu não sabia o que fazer. Literalmente eu surtei naquele dia. Eu chorei, gritei, meus pais vieram ver o que estava acontecendo, porque a gente estava em casa, eu contei tudo em meio a lágrimas e pela primeira vez vi meu pai com sangue nos olhos. Ele expulsou meu ex da minha casa e disse pra ele que só voltaria se eu quisesse e era óbvio que eu não queria. Ele foi embora. Eu nem tive coragem de fazer um teste, só sabia chorar dentro do quarto. Meu irmão tadinho, entrou em pânico, ficou do meu lado chorando junto comigo sem nem entender o que estava acontecendo direito. Mais tarde, naquele mesmo dia, minha menstruação desceu e depois eu vi que eu tinha feito as contas errado. Nunca senti tanto alívio na minha vida. Foi depois desse dia que eu aceitei fazer terapia.
- Eu lembro que naquela semana a gente ia iniciar aquele projeto e você... Nossa, como eu não percebi?
- Ah Felipe, você estava super ocupado e fazia pouco tempo que eu estava trabalhando com você.
- Nossa, mas agora pensando bem, eu consigo lembrar de você meio triste, quando veio até mim perguntar da terapia. – A ficha dele começou a cair ali. – Eu também lembro de você entrando na sala que nem um furacão e saindo logo em seguida, retornando com muita maquiagem no rosto.
- Eu estava tentando esconder que chorei no banheiro o almoço todo.
- Jana, me desculpa mesmo por não perceber aquilo, você devia estar precisando de um ombro amigo naquele momento e eu fui tão indelicado que nem percebi. – Ele segurou uma mão de Janaina.
- Para Felipe, por favor, você não teve culpa. Naquela semana a gente estava atarefado até o pescoço, planejando a ação de marketing, traçando as linhas de atuação, fazendo as fotos, fazendo a divulgação, a análise dos números. Foi tudo muito atumultuado logo naquela segunda. E ficou tudo bem. Passou. E a maior ajuda você me deu, que foi a terapia que agora eu amo demais e isso foi o que mais valeu pra mim.
- E ele? Parou de te encher?
- No início foi um tédio, ele me seguia, esbarrei com ele mil vezes lá na estação de ônibus. No início eu batia de frente, discutia, mas depois eu entendi que não valia a pena e conversando com a terapeuta, ela foi enfática em dizer pra eu apenas ignorar que assim ele ia entender o recado. E parece que ele finalmente entendeu. Já deve fazer mais de um mês que nunca mais vi a fuça dele.
- Que bom, se ele tentar alguma coisa, me avisa que eu tomo todas as providências cabíveis. – Ele estava realmente muito bravo com todo esse absurdo. – Mas me diz, e como você descobriu que não podia engravidar?
- Ah é verdade, então primeiro, mesmo com a menstruação eu fui fazer um exame de sangue para comprovar que eu não estava grávida. Já vi tanta história de mulher que menstrua a gestação inteira, mas o resultado deu negativo.
- Pera aí... Eu acabei de me lembrar de uma coisa estranha. – Ele fitava a parede, se recordando de tudo. - Não me diz que foi aquele papel, quando eu estava com os advogados?
- Esse mesmo.
Janaina sempre ficava com vários papeis importantes de Felipe sobre sua mesa e quando ele precisava e ela, por ventura não estava na sala, ele mesmo levantava e pegava sobre sua mesa. Ela também reunia as correspondências de Felipe, separando as do trabalho com alguma coisa eventual de fã que chegava. Nesse dia ela havia pego o resultado do exame de sangue, mas não teve coragem de ver na hora, estendendo aquela tarefa o máximo que podia. Se desfez do envelope antes mesmo de entrar na empresa, porque ele chamava muita atenção e colocou apenas o papel dobrado na bolsa. Na hora do almoço Felipe havia saído pouco antes dela, então aproveitou que estava sozinha para olhar tal resultado, chegando a abrir o papel quando de repente Bruno entrou na sala, fazendo-a colocar o papel no meio dos papéis de Felipe. Ele insistiu que ela fosse almoçar com ele e ela acabou deixando o resultado ali, junto com os demais papeis. Durante todo o almoço Bruno não parava de tagarelar e ela não tirava a cabeça de seu exame, rezando para Felipe não retornar à sala antes dela. Toda vez que tentava sair, ou Bruno engatava animadamente em um assunto, ou alguém surgia para se juntar a eles no almoço. Quando finalmente o almoço chegou ao fim, ela foi a primeira a se levantar e correr para a sala, encontrando Felipe conversando com dois advogados enquanto segurava aqueles papeis no qual o dela estava no meio. Seu coração pulava uma batida quando ele, conversando com os dois, passava folha por folha, dividindo a atenção entre as duas tarefas. Quando ele distraidamente pousou os papeis sobre a mesa, focando a atenção nos demais da sala, ela viu o tal papel sobre a pilha e queria dar um jeito antes de ele retomar a atenção aos papéis. Felipe conversava fervorosamente com ambos, discutindo sobre alguns processos em andamento. Quanto mais o tempo passava, mas ela gelava. Ele reuniu todos os papeis em sua mão e ainda com os olhos nos olhos dos dois, disse:
- Janaina, você sabe onde estão aqueles papéis do processo do...
Mesmo sem deixar ele terminar, ela de sobressalto retirou todos os papeis das mãos de Felipe.
- Não estão aí, eu vou procurar.
E do nada saiu de sala, sem ao menos saber o que ele queria realmente. Ainda recostada do lado de fora da porta, ela olhou o papel de seu exame com um enorme "NEGATIVO" estampado nele. O amassou e jogou na primeira lata de lixo que encontrou, respirando aliviada. Por fim, foi até os arquivos percebendo que não fazia a menor ideia do que estava procurando.
- Eu nunca ia imaginar que estava segurando seu teste de gravidez em minhas mãos.
- Acabou ficando ali bem em cima, para quem quisesse ver.
- Bem que... agora que entendi o que o Carlos quis dizer quando saiu da minha sala. Quando eu levei os dois até a porta, o Carlos falou assim: "Poxa cara, não foi dessa vez, mas continua tentando". Eu juro que na hora não entendi nada, mas estava tão ocupado querendo o papel que você acabou nem trazendo, que deixei pra lá.
- Ele devia estar achando que você estava tentando ser papai. – Ambos riram. - Enfim, voltando ao assunto de como descobri, eu fiquei o resto da semana encucada tentando entender o porquê de eu não ter engravidado, então, aproveitando o belo plano de saúde que a empresa oferece, eu fiz um monte de exames e finalmente descobri que não posso gerar bebês.
- E você está bem mesmo com isso? – Ele parecia preocupado.
- Sinceramente? Sim! De verdade isso não era uma coisa que eu tinha como prioridade, pelo menos não nos próximos dez anos ou mais.
- Que bom que você lidou bem com isso.
- Com certeza isso foi de longe, o menos pior. Só espero que a próxima pessoa com quem eu me relacionar consiga lidar com isso também.
- Eu acredito que se há amor, compreensão e respeito de ambas as partes, tudo se dá um jeitinho.
- É verdade.
Mais uma vez ambos se encararam com um olhar carinhoso. Ela amava se perder nos olhos dele. Dizem que os olhos são o espelho da alma e ela amava o que via nos olhos de Felipe. Parece que ela fazia uma viagem até o interior dele e voltava de lá incrivelmente carregada de coisas boas. Depois de um tempo, quando o olhar já beirava o constrangimento, ele se levantou abruptamente.
- Quer que eu leve sua tigela pra pia?
- Olha lá, ele aprendeu a falar tigela. – Ela zombou dele.
Dia 4
Como previsto por Janaina, o dia seguinte amanheceu lindo, quase sem nuvens e com o Sol brilhando. Ela molhava algumas plantas com a borracha e Felipe admirava o céu, deixando os raios de Sol penetrarem em sua pele branca.
- Nossa, quanto tempo eu não paro pra pegar um Sol – desabafou ele.
- Eu também não sou muito de ficar torrando no Sol. Às vezes a gente arma nossa piscina de litrão aí – ela apontou para um espaço grande e vazio do quintal –, mas eu mesma quase não paro dentro.
- Bem que uma piscina agora cairia bem hein!
- Não seja por isso.
Janaina mirou a mangueira em Felipe, o molhando. O impacto das gotas de água gelada na pele quente pelo Sol, fez os pelos de Felipe se eriçarem.
- Ah não, é guerra isso?
Ele correu atrás dela que corria com a mangueira mirada nele, o molhando cada vez mais. Quando ele finalmente a alcançou, tirou a mangueira de suas mãos e com uma expressão sapeca, a molhou por inteira com ela tentando frustradamente se proteger com as mãos estendidas em sua frente. Ambos riam e agora começava o embate de quem controlaria a mangueira, cada um puxando para seu lado, os molhando mais e mais. A mangueira já estava toda esticada pelo quintal e Janaina distraída na batalha da mangueira, tropeçou, caindo um tombo feio. Felipe prontamente a ajudou a se levantar, aparando-a pelo braço. Quando ela levantou a cabeça, ambos estavam bem próximos, tanto que suas blusas molhadas se colaram uma na outra.
Ele ainda a segurava por um braço e ambos se encaravam sem saber o que dizer, só ficando ali, um olhando nos olhos do outro. Eles jamais haviam chegado tão perto um do outro, tão perto que ela via pequenas gotas escorrendo pelo rosto dele, seguindo uma que correu do olho até sua boca. Ela encarou aquela gota como um convite e sentiu um grande desejo de estar bem ali onde aquela gota estava. Tudo parecia estar passando mais lentamente naquele momento. Sua boca ansiava por um beijo. "Chegue mais perto", seu coração gritava, porém, seu corpo não saia do lugar e sua mente estava confusa demais para decidir algo. Alguma coisa estava acontecendo bem ali, ela conseguia sentir, mas não sabia o que era. Lentamente um pareceu estar indo em direção ao outro, como em uma cena de filme romântico, os olhos começavam a dar indícios de que iam se fechar. A ponta de seus narizes se encontraram, com a respiração falhada por conta da ansiedade. Quando então os lábios iam finalmente se encontrar, Janaina apoiou seu peso na outra perna, suavizando o pé que estava sobre a mangueira no chão e isso fez com que a água viesse com toda velocidade de baixo para cima, acertando os dois em cheio. Ambos se afastaram com o susto, Felipe sentindo o nariz arder pela água que entrou. Janaina finalmente sentiu seu joelho doer e olhando para baixo, viu que saía sangue dele. Ela lavou a ferida com água e sabão e ele foi dentro de casa buscar uns curativos. Nada mais foi falado sobre aquele quase beijo.
Dia 5
Mais uma vez o dia amanheceu lindo, mas por volta das cinco da tarde, quando o Sol começava a querer de despedir para dar o palco a Lua, o frio recaía sobre a cidade, os fazendo aderir novamente o visual moletom com meias. Janaina vestia um pé diferente do outro, porque naquela casa uma meia de cada par sumia misteriosamente, parecia que a máquina de lavar era uma espécie de buraco negro que fazia questão de sugar uma meia para outra dimensão.
De repente, enquanto os dois jogavam um jogo de cartas na mesa da sala, um acusando o outro de roubo, todas as luzes se apagaram ao mesmo tempo tornando o ambiente um breu.
- Não acredito que a luz acabou justamente quando eu estava ganhando! – exclamou Janaina.
- Ganhando? Mas você estava com mais que o triplo de cartas que eu nas mãos.
- Eu ia virar o jogo bebê. – De repente ela acendeu a luz da lanterna do celular. – Que ótimo, será que vai demorar muito pra luz voltar?
Ela se levantou da cadeira e foi até a janela, constatando que a luz acabou em sua rua e mais à frente também. Não havia um ponto de luz acesa em lugar nenhum, parecia um apagão geral.
- É, acho que vamos ficar um tempo sem luz – concluiu ela.
- Ual, olha esse céu. Nunca vi tanta estrela junta na minha vida.
O céu estava limpo, não havia quase nuvens e todas as estrelas cintilavam juntas. Algumas maiores, outras menores, mas todas em plena harmonia, realmente a vista era deslumbrante.
- Realmente aqui sempre deu pra ver mais estrelas do que na sua cidade, mas dessa vez superou.
- Eu quero ver isso lá de fora! – No escuro mesmo, ele alcançou a mão de Janaina e a puxou para o quintal. - Apaga essa lanterna!
Ela assim o fez e realmente o que eles viam era um espetáculo da natureza, nenhum vídeo seria capaz de reproduzir tamanha beleza, talvez nem os olhos conseguissem captar tão bem toda sua esplendorosa magnitude. Ela se lembrou que haviam umas toalhas de banho na corda, e foi até lá buscar uma para ambos poderem assistir as maravilhas celestiais mais confortavelmente. Então estendeu no chão, junto a parede e chamou Felipe para juntar-se a ela. Ambos sentaram lado a lado, seus ombros roçando um no outro.
- É um espetáculo, não é? Como não paramos mais vezes para admirar essas coisas? – Felipe ainda estava admirado.
- Não é? Mas também as luzes atrapalham bastante essa vista.
- Eu juro que depois de hoje eu vou parar para admirar mais as pequenas coisas.
- Que bom, espero poder compartilhar alguns desses momentos contigo. – Ela mudou abruptamente de assunto, olhos grudados no céu. – Você acredita em ET?
- Que? – Ele achava graça das tiradas repentinas dela.
- ET Felipe, extraterrestres. Homenzinhos em naves espaciais com os "zoião" preto.
- Olha, eu não sei ao certo se sim ou se não, mas eu acho que seria muita prepotência da nossa parte acreditar que em um universo tão vasto e infinito nós estejamos sós. Mas eu deixo esse questionamento para os cientistas responderem.
- Nossa, que palavreado mais rebuscado, engoliu um dicionário foi?
- E você, acredita? – perguntou ele, entre risos.
- Eu não sei bem, eu sou uma pessoa que nasceu com uma curiosidade sem fim, mas também sou cética em relação a muitas coisas. Às vezes eu acredito piamente, as vezes eu acho que é balela, mas se fosse verdade, seria bem legal eles aparecerem pra gente né?
- E se eles forem maus e escravizarem a gente?
- Aí você vai ter que lavar louça com mais frequência.
- Para de ficar jogando isso na minha cara, se eu tenho alguém pra lavar minha louça, foi porque eu "me-re-ci"! – Ele falou entre risos, fazendo uma clara alusão ao meme.
- Claro que mereceu, você mereceu tudo que conquistou. Ah tenho outra: tem uma teoria que diz que quando alguém morre vira uma estrela no céu. Você acredita?
- Ah eu acho difícil essa hein, com certeza existem muito mais estrelas do que gente que já morreu desde que a Terra foi criada, fora que existem estrelas bem mais antigas que nosso planeta.
- É, pensando por esse lado... mas bem que eu gostaria que isso fosse verdade, porque aí a pessoa não iria embora pra sempre e a gente sempre poderia vê-la. – Sua voz estava embargada, transparecendo suas emoções.
- Tem alguém que você teria gostado que tivesse realmente virado uma estrela?
- Tem sim, meu avô.
- Sente falta dele?
- Todos os dias da minha vida. Como a gente pode sentir tanta falta de algo que nunca teve?
- Como assim?
- Ele se foi quando eu era pequenininha e mesmo assim sinto tanta falta. Sinto falta das histórias que não vivemos, dos sentimentos que não compartilhamos, dos momentos que não tivemos, do sorriso que nunca vi, dos abraços que nunca senti. Sinto falta de uma vida que não tive. Será que se ele fosse vivo, alguma coisa seria diferente?
- Talvez. E talvez nem estivéssemos aqui.
Um pequeno silêncio reflexivo tomou conta de ambos, mas logo algo despertou a atenção de Janaina.
- Olha lá Felipe, uma estrela cadente. Faz um pedido, faz um pedido!
Ela fechou os olhos fazendo um pedido a estrela, já ele, o que mais ele podia pedir? A Lua estava tão linda e tão grande que iluminava um pouco os dois e ele conseguia ver o contorno de Janaina com os olhos bem fechados fazendo seu pedido, enquanto ainda pensava no seu. Foi então que percebeu que ele não tinha mais nada a pedir, só a agradecer, porque tudo o que ele queria naquele momento estava bem ali. Ele olhou para a estrela já quase sumindo e agradeceu, por tudo, por todos, mas agora, principalmente por Janaina aparecer em sua vida e bagunça-la um pouco.
A luz voltou pouco tempo depois.
Dia 6
O almoço aquele dia foi especial, pois foi o último que ambos teriam e por isso Janaina caprichou no que pode. Ela quase não podia acreditar que passou quase uma semana sem comer carne, mas também não achou tão complicado assim, apenas diferente do que estava acostumada, porém ela não conseguia parar de imaginar um belo bife à milanesa em seu prato, ou um bom e velho estrogonofe de frango, seu favorito.
Felipe estava diante a pia, lavando a louça do almoço, pois nada mais justo lavar tudo depois dela ter feito toda a refeição deles.
- Nem acredito que hoje é sua última noite aqui. – Enquanto ele lavava, ela secava a louça para guardar.
- Que? Como assim? – Ele parou de lavar a louça, olhando para sua companheira.
- Ué, amanhã já é sexta de novo, dia que o Sergio vem buscar você.
- Nossa, esses dias passaram tão rápido que nem senti. Olha que eu achei que ia ser um pouco entediante ficar longe da internet.
- Também, com uma anfitriã que nem eu, impossível ficar entediado.
Ele deu um empurrãozinho de leve nela.
- Eu vou sentir falta de você.
- Mas você ainda vai me ver todo dia, esqueceu que eu me apoderei de uma parte do seu escritório?
- Ah mas não é isso, vou sentir falta disso sabe? Dos papos à toa, das brincadeiras, do banho de mangueira no quintal. Até da louça eu vou sentir falta. – Ele continuou então a enxaguar a louça.
Realmente a realidade de Felipe mudou muito naquela semana. Eles jogaram jogos de tabuleiro, ela fez ele jogar adedonha, jogo da velha, teve um dia que ela cismou em pular amarelinha e por que não? Foi muito divertido no fim das contas. Eles também assistiram a muitos desenhos na TV, ainda mais os antigos de um canal que só passava clássicos. Janaina era uma mulher adulta, mas sua alma de criança ainda permanecia aflorada, a leveza, a simplicidade e as vezes até a ingenuidade com o que ela levava certas coisas era uma coisa única, coisa ao qual ele não via em ninguém há tempos. Ela lidou com essa crise em sua saúde, como uma criança lida com o horário do recreio na escola e isso o ajudou muito em sua recuperação, tanto que ele conseguiu se desconectar totalmente do trabalho e se dedicar exclusivamente ao seu repouso. Porque deixar nossa criança morrer se podemos muito bem conviver com o melhor dos dois mundos?
- Não seja por isso, eu largo uns copos lá na copa pra você lavar.
- É isso que eu amo em você, seu senso de humor é ótimo.
- E olha que eu nem tô forçando, eu sou assim mesmo.
- Tímida pra quem não conhece e sem vergonha depois que cria amizade.
Ela deu uma risada alta.
- Nossa, acho que ninguém jamais me descreveu tão bem quanto você. Dá licença porque quando eu entro na vida de alguém eu entro com tudo! Não gosto de ser "meio" em nada sabe? Ou eu sou cem por cento ou então nem me chama.
- Com certeza, de todos os amigos que eu fiz nesse tempo todo, você é a mais... – Ele parecia não encontrar uma palavra.
- Mais...?
- Você é tão... tão que eu nem tenho uma palavra pra completar essa frase. Você é a mais "mais".
Ela deu uma toalhada na bunda dele.
- Trabalha mais e fala menos, assim não vamos sair daqui nunca! Mas eu gostei de ser a sua mais "mais", você também é o meu mais "mais" agora. – E ela deu uma piscadinha pra ele, com uma expressão quase infantil.
Ah ele ia sentir falta disso. Muita falta mesmo.
Dia 7
- Felipe, Felipe, acorda.
Janaina sacudia Felipe ainda na cama, o Sol nem pensava em despontar no horizonte, o relógio marcava cinco horas da manhã. Pensando em como deixar os últimos momentos de Felipe em sua casa mais inesquecíveis, Janaina decidiu fazer um café da manhã para ambos desfrutarem enquanto assistiam o nascer do Sol na praia. Ela havia acordado bem cedinho, então assou um bolo de laranja e enquanto ele assava, ela preparava pequenos sanduíches. Também preparou uma pequena porção de salada de frutas, colocando em potinhos individuais, fez uma garrafa de café com leite bem quentinho e arrumou tudo no carro, assim que o bolo estava pronto. Em seguida tomou um banho, trocou de roupa e finalmente veio acordar Felipe em sua cama.
- Que? Que horas são hein? – Ele se sentava na cama, meio desorientado, esfregando os olhos.
- São cinco horas.
- E por que está tentando me tirar da cama tão cedo?
- Vamos, eu te prometo que você não vai se arrepender.
Mesmo a contragosto ele se levantou e vestiu a roupa que ela havia previamente separado, escovando os dentes logo após.
- Pronto, estou pronto, e agora?
- Vem comigo, tira o carro da garagem.
- Que? Carro? Vamos aonde?
- Vamos fugir. – Ela pegou sua mão e puxou para fora de casa.
Logo eles estavam parados na orla da praia.
- Um piquenique? Que horas você acordou pra fazer isso?
- Não importa, vem logo, me ajuda a arrumar as coisas na areia. Não quero perder nada.
- Não é perigoso?
- Não, o pessoal corre na orla e mesmo assim, a maioria quando o Sol já nasceu. E também a gente não vai estar longe do carro, qualquer coisa a gente larga tudo e sai correndo.
Janaina forrou sua canga na areia e arrumou os comes e bebes, reservando espaço para os dois se sentarem. Sem a luz solar um frio chato os envolvia, que mesmo com casaco ainda eriçavam seus pelos. Ela sentia a pontinha de seu nariz congelada, então logo optou por servir o café para ver se esquentava um pouco. Ele a acompanhou.
- E quando essa ideia surgiu? – Eles olhavam para o infinito do mar.
- Ontem mesmo, assim que deitei a cabeça no travesseiro.
- Você já tinha vindo ver o nascer do Sol antes?
- Nunca, minha primeiríssima vez. E você?
- Também não, quer dizer, ver o Sol nascendo enquanto estou dentro de um carro rumo a algum trabalho não conta né?
- Você parou pra admirar ele?
- Não!
- Então não conta. – Um vento leve passou por ambos, bagunçando seus cabelos. – Deus que frio, eu tinha que ter calculado melhor nossas roupas.
- Posso? – Ele se referiu a abraça-la.
- Claro!
Ele a envolveu em seus braços fazendo-a corar imediatamente, um calor começava a emanar de dentro de si, afastando o frio. Ela apoiou sua cabeça em seu ombro.
- Olha lá, ele está vindo.
E aos poucos iam aparecendo os primeiros raios do Sol, trazendo tons alaranjados ao céu. Janaina sabia que o nascer do Sol era um momento lindo, mas jamais imaginava que fosse tão incrível assim. Aquela sensação vinha do Sol ou era a companhia de Felipe que a fazia sentir assim? Aquele era um espetáculo que poucos conseguiam ou sabiam admirar e ambos tinham a sorte de ter um ao outro para poder dividir o momento. Parecia que o mundo havia desaparecido, restando apenas Janaina, Felipe e o Sol, como testemunha de algo que nascia junto a ele. Aos poucos o Sol foi trazendo sua luz, até finalmente despontar por completo no horizonte. Seus raios brigavam com o frio, o fazendo gradativamente dissipar-se, trazendo um calor confortável em seus rostos. Ficar ali para sempre parecia o certo a se fazer, pena que seria impossível.
O único barulho naquele momento era o das ondas, que iam e voltavam quase os hipnotizando. Um queria saber o que o outro pensava naquele momento, nem que fosse apenas por um minuto.
Aos poucos iam surgindo um ou outro para iniciarem suas caminhadas matinais, vendo um casal jovem abraçado na areia. Alguém contemplou aquela imagem, invejando-os um pouco, pois quantos casais ainda eram românticos assim hoje em dia? Preocupada com o início da movimentação, Janaina mesmo não querendo, afastou-se dele, que retirou seu braço que a envolvia.
- E aí, gostou?
- Se gostei? Esse foi com certeza, um dos melhores momentos da minha vida. Nunca senti tanta paz.
- Paz... – repetiu Janaina. – Era exatamente isso que eu sentia, paz.
Mais uma vez um se perdeu nos olhos do outro, um dando ao outro toda a verdade que havia dentro de si. Todo aquele show que o Sol havia dado não era nada comparado a poder nadar dentro dos olhos de alguém. Era como se uma onda forte os carregasse cada vez mais profundamente para dentro de suas almas, sem dar-lhes chance de fugir, mas também quem queria fugir? Ambos tinham ânsia de se afogar um no outro, naquele momento parecia que só aquilo fazia sentido. Mas e agora? Mas e depois? Se depois um maremoto viesse, deixando para trás um rastro de destruição? Felipe sabia que não era tão simples para ele poder se relacionar com alguém, ainda mais alguém tão sensível como um floco de neve feito ela e ele jamais queria ser alguém que, mesmo se essa nunca fosse a intenção, a machucasse. Ambos então aproveitaram apenas a companhia um do outro, dividindo o café da manhã que ela havia preparado com tanto carinho. O fluxo de pessoas começou a ficar mais intenso, deixando claro que era hora de partir. Tudo voltaria ao normal.
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