Capítulo 33 | Um Novo Coração
Lorenzo Martins
“Desfaço as suas transgressões
como a névoa e os seus pecados,
como a nuvem; volte para mim,
porque eu o remi.”
Isaías 44:22
Me encarei no espelho, os olhos cravados na própria imagem, tentando entender por que raios aquele maldito terno parecia pesar tanto nos meus ombros. Preto. Sóbrio. Impecável. Elegante demais para um lugar como aquele.
Ajustei a gravata com dedos tensos, puxei o colarinho como se estivesse prestes a sufocar. O cabelo estava arrumado, mas deixei um ar de descuido proposital — não queria parecer um pastor. Passei o perfume caro, mas nem o cheiro familiar conseguiu me trazer de volta ao eixo.
Porque alguma coisa estava errada.
O incômodo no peito crescia, como se algo estivesse sendo arrancado de dentro de mim. Então veio o frio. Um calafrio intenso, como se um choque percorresse minha espinha. O coração disparou — rápido demais, forte demais — e a vontade de socar o próprio peito foi quase incontrolável. Mas me obriguei a respirar fundo, a manter o controle.
Saí do banheiro, saí do quarto.
No corredor, Noah já estava na sala. De terno também, é claro. Mexia no celular, distraído, enquanto esperava Hadassa. Ele parecia tranquilo. Diferente de mim.
Hadassa.
Se eu acreditasse em destino, diria que ela cruzou meu caminho por um motivo. Mas eu não acredito.
Ainda assim, por um instante, quase me enganei.
Quando a vi pela primeira vez, algo diferente aconteceu. Uma sensação incômoda, como se por um segundo tudo ao redor tivesse silenciado. Olhar nos olhos dela, ouvir sua voz… era estranho. Como se a presença dela causasse uma rachadura imperceptível na muralha que construí ao longo dos anos.
Mas eu sou um homem lógico. Racional. E a lógica me dizia o óbvio: Hadassa não era para mim.
O universo tem uma forma peculiar de deixar as coisas claras, e eu entendi a mensagem. Mesmo assim, fui contra. Porque sempre fui assim. Nunca aceito perder nada sem ao menos testar os limites da situação. Mas no fundo, já sabia — meu primo a conquistaria. E, honestamente? Estava feliz por eles.
Mas algo continuava errado.
E isso, sim, me incomodava de verdade.
Porque se tem algo que aprendi ao longo da vida, é que meu coração é um traidor. Sempre tenta me puxar para direções que não fazem sentido. Sempre me engana. Mas dessa vez, o incômodo não parecia ser fruto de uma ilusão qualquer. Era algo mais profundo. Algo diferente.
E, por mais que eu odiasse admitir, algo estava prestes a mudar.
Eu sentia isso.
Me aproximei do Noah. Ele riu baixo, ainda focado no celular.
— Pra quem não queria pisar numa igreja, até que se arrumou bem — zombou, sem nem olhar pra mim.
Revirei os olhos e cocei a ponta do nariz, entediado.
— Estou sendo obrigado a ir. Mas você sabe que me arrumo bem até pra um enterro.
Ele finalmente ergueu os olhos e me encarou.
— Mano, se tem uma coisa que sei sobre você, é que nunca faz nada contra a sua vontade.
Deu um tapa leve no meu ombro e virou as costas, como se tivesse acabado de cravar uma verdade absoluta.
Franzi o cenho, observando-o se afastar.
Porque, por mais irritante que fosse admitir, ele tinha razão.
Eu e Noah sempre fomos assim. Mais irmãos do que primos. Apostas, desafios, alfinetadas, boxe, disputas… sempre competindo, sempre testando limites, sempre querendo ver quem saía ganhando.
E isso não se limitava apenas a esportes ou carros.
Com mulheres, era a mesma coisa.
Na fase de revolta do Noah, quando ele por um triz quase abandonou a fé que tanto defende agora, eu estive lá. Vi a mudança, incentivei, apresentei a ele o que o mundo tem de mais delicioso: prazeres. Sem culpa, sem regras, sem restrições. E eu, claro, fazia questão de escolher mulheres à altura dele — bonitas, imponentes, seguras o suficiente para não se apegar.
Mas houve uma noite.
Uma noite que nunca mencionei. Nem para ele, nem para ninguém.
Deixei Noah em meu apartamento com uma das mulheres que escolhi a dedo, garantindo que não haveria complicações. Peguei meu carro e fui embora, dirigindo sem pressa. E então, parado no sinal vermelho, um homem bateu levemente na minha janela.
Velho, mas não frágil. Olhos intensos. Um semblante… estranho.
Baixei o vidro, sem medo, esperando qualquer coisa — menos o que ele disse.
— Você está brincando com fogo, sabia? — A voz dele era calma, mas firme. — Está mexendo com um filho de Deus. Se continuar puxando ele para o pecado, sofrerá as consequências. Deixe-o em paz.
E então ele se virou e foi embora.
Simples assim.
Fiquei ali, atordoado, os carros buzinando atrás de mim enquanto o sinal já estava aberto.
Depois daquela noite, nunca mais apresentei uma mulher a Noah. E foi exatamente nesse período que ele decidiu voltar para sua religião.
No começo, achei que era só mais uma fase. Mas ele realmente mudou. A revolta, a rebeldia, a raiva que ele carregava no olhar foram substituídas por algo que nunca mais tinha visto nele: leveza.
Mas então, veio ela.
Ângela Mackenzie.
A mulher perfeita. Olhar marcante, postura impecável. Só de vê-la, já era óbvio o porquê de Noah ter se envolvido com ela. E eu confesso: era médico dela.
Resisti. Não por falta de vontade. Mas porque Noah estava com ela.
E quando soube que eles terminaram, eu percebi: dessa vez, Noah realmente se arrependeu.
Eu estava esperando na sala quando ouvi os passos e os burburinhos se aproximando pelas escadas. Mantive minha postura despreocupada, mãos no bolso, olhar indiferente. Mas então, ela apareceu.
Evelyn.
A atenção que nunca dei a uma mulher sem esforço consciente foi capturada instantaneamente. De um jeito irritantemente natural.
Ela estava… impecável. Mas não de uma forma óbvia, não de um jeito que eu esperaria me chamar a atenção. Não era a roupa — porque era discreta. Não era o decote — porque não havia nenhum. Não eram as pernas expostas — porque estavam cobertas. Nem mesmo o batom vermelho chamativo, porque era suave.
Era ela.
A composição. O conjunto absurdo que fazia tudo nela parecer hipnotizante. O olhar brilhante, o sorriso sereno, as curvas discretas do vestido que pareciam moldadas para ela. Era irritante. Inexplicável. E eu não sabia o motivo, mas não conseguia parar de olhar.
Então Noah falou.
— Vamos?
Pisquei, saindo do torpor. Peguei o celular, controlei a respiração e segui para o elevador. Noah e Hadassa à frente, conversando como sempre. Evelyn ao meu lado. Silenciosa. Reservada.
E eu?
Eu simplesmente não sabia quem eu era naquele momento.
Sempre soube o que dizer a uma mulher. Como provocar, como testar os limites, como arrancar uma reação. Sempre soube onde atingir, como desmoroná-las. Mas com ela…
Nada.
Nenhuma frase pronta. Nenhum comentário afiado. Só o aroma doce do perfume dela e a consciência irritante de que, pela primeira vez, minha mente estava vazia.
Isso me incomodou.
Quando chegamos ao estacionamento, Noah se virou.
— Lorenzo, quer ir com Evelyn no seu carro?
Olhei para ele, sem expressão.
— Sabe que eu vim com o Falcão Negro. Meu outro carro está em casa.
Respondi automaticamente, sem sequer soltar a provocação que normalmente acompanharia essa frase. E foi aí que percebi. Eu estava calado demais. Quieto demais. Fora de mim.
— Pode ir com a Bugatti.
Ele jogou a chave para mim e entrou na Lamborghini com Hadassa, sem esperar resposta.
Fiquei ali, segurando a chave, sentindo Evelyn me observar.
Por que eu não estava dizendo nada?
Soltei um suspiro, tentando recuperar o controle, tentando me encontrar no meio desse caos absurdo que ela, de alguma forma, tinha causado em mim.
Me virei para ela, tentando soar firme.
— Vamos?
Ela assentiu, e eu destravei o carro, sentindo que, pela primeira vez, eu era o próprio desafio.
Abri a porta para ela entrar, observando cada movimento sem nem perceber que fazia isso. Dei a volta no carro, me sentando ao volante com a mente em alerta máximo. Liguei o motor, o ar-condicionado…
E então aconteceu.
O perfume dela me atingiu como um soco no peito.
Que droga era aquela?
Não era doce demais, nem forte demais. Mas era ela, e isso foi o suficiente para me desestabilizar.
Segurei o volante com mais firmeza, soltando o ar lentamente.
E então, olhei para ela.
E foi aí que a situação piorou.
Uma vontade absurda de beijá-la me atingiu em cheio. Não desejo bruto, não impulso irracional. Apenas um beijo. Simples. Concreto. Real.
O que estava acontecendo comigo?
Minha mente nunca falhava. Eu nunca hesitava. Sempre tive controle absoluto sobre mim mesmo. Mas agora? Agora minha cabeça estava uma bagunça completa.
Ela era o caos.
E eu não sabia como lidar com isso.
Então ela falou.
— Percebi que você e o Noah são bem unidos.
A risada dela veio suave, fácil. E, por instinto, sorri junto, agarrando aquela deixa como uma tábua de salvação.
— Crescemos juntos. Sempre tivemos uma amizade, mesmo sendo… áspera demais.
Ela ainda sorria. Aquele sorriso.
Como se nada no mundo pudesse abalá-la. Como se não fizesse ideia do que estava provocando em mim.
— Qual sua especialidade?
Um alívio percorreu meu peito. Finalmente, um terreno familiar. Algo que eu dominava.
— Otorrinolaringologia e neurocirurgia.
Ela arregalou os olhos, surpresa.
— Como consegue adaptar sua rotina com o trabalho de médico particular do Noah?
Boa pergunta.
Sorri, um pouco mais no controle agora.
— É corrida, mas ter minha própria clínica me dá autonomia na agenda. Às vezes sou chamado para cirurgias em hospitais, mas organizo tudo para se encaixar.
— Caramba… — ela murmurou, encantada.
E o pior? Aquela reação genuína me fez sorrir.
O que estava acontecendo comigo?
— E você, o que faz? — perguntei, tentando me recompor.
Ela hesitou por um instante, franzindo os lábios.
— Trabalho em uma clínica odontológica e estou cursando enfermagem. Mês que vem começo um estágio obrigatório, e sei que minha rotina vai ser uma loucura. Mas nada comparado a um neurocirurgião.
Ela riu. Naturalmente. Facilmente.
Mas eu não.
Porque naquele momento, minha mente travou.
Enfermeira.
Área da saúde.
Eu nunca acreditei em coincidências. Nunca dei espaço para sentimentalismos ou para esse tipo de conexão sem sentido.
Mas, pela primeira vez, algo dentro de mim dizia que eu deveria prestar atenção.
Eu não pensei muito antes de perguntar.
— Por que não vem pra Balneário? Pode conseguir estágios aqui.
Foi automático, natural. Mas no momento em que as palavras saíram da minha boca, percebi suas bochechas corarem.
Interessante.
— Na verdade… Não sei, por causa da minha faculdade. É presencial. E também tem o meu trabalho na clínica. Não ia conseguir pagar a faculdade só com a bolsa do estágio, então acho melhor ficar em São Paulo mesmo.
Honesta. Direta. Sem filtro.
E eu queria dizer algo.
Mas o que eu queria dizer não deveria ser dito.
Só que eu disse.
— Posso te ajudar com isso.
Ela me olhou, surpresa. Ótimo.
— Como assim?
Mantive minha expressão firme, direta. Sem joguinhos.
— Como te falei, tenho clínicas aqui. Não só uma, mas várias unidades espalhadas pelo Brasil. Logo vamos expandir para o México. Posso conseguir um estágio pra você em Balneário e isenção para concluir sua faculdade.
O choque no rosto dela foi imediato.
— Tá tirando onda, né?
Eu sorri.
Aquela reação dela era boa demais.
O carro reduziu a velocidade conforme nos aproximávamos da igreja. Quando estacionei, inclinei-me ligeiramente em sua direção.
— Tenho um programa nas clínicas para estudantes da área da saúde. Se a faculdade for credenciada, eles podem solicitar isenção das mensalidades. Se tiver interesse, me manda seus dados e o nome da faculdade no WhatsApp, que eu verifico pra você.
Simples. Profissional.
E uma desculpa perfeita para conseguir o WhatsApp dela.
Ela hesitou por um instante, claramente absorvendo tudo.
— E como vou estudar aqui, se minha faculdade é presencial?
Inclinei a cabeça ligeiramente, lançando-lhe um olhar sugestivo.
— Se der sorte e ela tiver um polo aqui…
Lancei-lhe uma piscadela.
Ela sorriu.
Maldito sorriso.
Maldita sensação.
Minha respiração falhou por um segundo. Meu próprio corpo me traiu quando um arrepio subiu pela nuca, os músculos tensionando.
— Então tá, muito obrigada por isso, e acho que será bom ficar mais perto da minha amiga, e será uma honra trabalhar na clínica de um neurocirurgião como você — a voz dela soou firme, decidida. Sem hesitação.
E então, sem aviso, ela me estendeu o celular. Tela de discagem aberta.
O coração deu um maldito solavanco.
Eu? Gelo puro.
Ela tem atitude.
Gosto disso.
Mas, naquele instante ridículo, eu não tive.
— Pode passar seu número e eu te chamo — ela disse, os olhos cravados nos meus.
Que droga era aquela?
O jeito como ela me olhava... Intenso. Firme. Profundo. Como se mais nada existisse.
Minha garganta secou. Olhei para o celular. Me movi para pegá-lo.
Nossos dedos se tocaram.
E eu senti.
Uma descarga elétrica rasgou meu corpo. Rápida. Brusca. Cortante.
O maldito calafrio veio com força, um arrepio se espalhando como fogo.
Droga.
Salvei o número. Me livrei do aparelho como se queimasse. Ela guardou o celular, desceu do carro com uma naturalidade absurda. Como se não tivesse acabado de me desestabilizar inteiro.
Eu, por outro lado, estava tenso. O ar preso nos pulmões, os dentes trincados, as mãos apertando o volante até doer.
“Merda, Lorenzo, o que tá acontecendo com você?!”
Bufei, saí do carro, os olhos fixos no local à frente.
Mas minha mente…
Minha mente estava nela.
O ronco do motor da Lamborghini cortou o ar assim que Noah estacionou em um canto mais reservado. Logo atrás, os carros dos seguranças pararam em sincronia, como se fossem parte de uma coreografia ensaiada.
Marcelo e Carlos desceram primeiro, atentos, e logo foram chamar uns caras de terno. Pelo meu conhecimento, eram obreiros.
Claro.
Queriam organizar a entrada da celebridade.
E eu já previa o tumulto.
Encostei no carro ao lado de Evelyn, que observava tudo com olhos brilhantes, um sorriso incontido nos lábios.
— Ainda não acredito que conheci o Noah pessoalmente e que ele é namorado da minha melhor amiga. Parece um sonho — disse ela, sem desviar o olhar.
Ri baixo. Já estava acostumado com esse tipo de reação.
— O Noah é um cara incrível — falei, mas ao ouvir minhas próprias palavras, franzi o cenho. Sentimental demais.
Pigarreei.
— Vamos entrar? — tentei disfarçar.
Ela assentiu, e seguimos até a porta. Mas antes que pudéssemos entrar, Noah nos chamou à distância.
Fomos até ele.
— Vamos entrar pelos fundos. A frente está lotada. Os obreiros vão nos orientar. Os pastores já sabem, porque Dylan avisou antes. A gente se vê lá em cima — ele disse, a mão segurando firme a de Hadassa.
Concordamos.
Mas Evelyn, curiosa, questionou:
— E por que não entramos juntos também?
— Verdade, vamos juntos — Hadassa reforçou.
Eu e Noah assentimos. Os obreiros nos guiaram.
Seguimos pelo caminho menos movimentado, mas mesmo assim, os olhares eram inevitáveis.
O peso da fama era real.
Jovens de boca aberta, celulares em mãos, olhares brilhando como se estivessem diante de algo extraordinário. Murmúrios. Sussurros.
Hadassa corou. Evelyn sorria sem parar.
E eu? Eu já tinha visto essa cena vezes demais para me impressionar.
— Sabia que seria assim — murmurou Noah, como se já tivesse aceitado seu destino.
Nos acomodamos no andar de cima. Mas claro, antes do culto começar, algumas pessoas vieram disfarçadamente pedir fotos, tentando não chamar muita atenção.
A tentativa foi inútil.
O burburinho só diminuiu quando um cara pegou o microfone e começou a abrir o culto.
— Cara... — encostei em Noah, inclinando ligeiramente a cabeça em direção a ele.
Evy estava ao meu lado esquerdo, a expressão ainda iluminada pela empolgação. Noah à minha direita, sempre com aquela postura despreocupada, mas os olhos atentos. Hadassa ao lado dele, um sorriso discreto nos lábios, mas o brilho nos olhos denunciava sua felicidade.
O cenário estava montado. E a atenção estava toda nele.
— Fala.
— Tá chamando atenção — provoquei, um sorriso discreto no canto dos lábios.
Ele balançou a cabeça, exalando paciência.
— Não posso deixar de vir à igreja por causa da minha fama.
Ergui uma sobrancelha.
— E agora todos já sabem quem é a garota misteriosa das mídias...
Hadassa nos olhou, olhos arregalados.
— É mesmo, Noah! Vão descobrir! — Ela parecia mais animada do que preocupada.
Ele deu de ombros.
— Deixem que saibam. Não tenho nada a esconder.
Sorri de canto.
— Então se prepara para os incontáveis telefonemas da Estela amanhã.
Noah fechou os olhos por um segundo, balançando a cabeça.
— Cala a boca e presta atenção no culto.
Ri.
Foi então que algo dentro de mim se agitou, como um trovão distante que eu fingia não ouvir. O homem no microfone ergueu a voz: “Fiquem de pé.”
Óbvio. O ritual começava.
Mas então veio o golpe seguinte: “Fechem os olhos.”
Que piada. Não fechei, é claro. Mas então senti o olhar de Evelyn sobre mim, afiado, exigente. Ela sabia jogar esse jogo, e o pior? Eu caí.
Olhos fechados.
A oração começou.
Palavras soltas no ar, um discurso emocional que beirava o absurdo. Vozes se elevavam ao redor, corpos estremeciam. Parecia mais um delírio coletivo do que qualquer conexão real com algo superior.
E então vieram as palavras:
“Cura os enfermos, restaura as feridas.”
Medicina. Ciência. Fatos.
Ri. Baixo, mas ri.
A voz continuou, cheia de fervor:
“Quebranta os corações endurecidos, abre os olhos dos cegos, liberta os que estão presos.”
Ri de novo, desta vez sem esconder a ironia.
A oração terminou. O peso no ar era evidente, mas em mim? Nada. Nenhuma fagulha, nenhuma mudança. Apenas a mesma linha de pensamento de sempre.
Depois de algumas leituras daquela Escritura reverenciada, a música começou.
E lá estava ele.
Dylan. Na guitarra. Meu cunhado.
Se ele machucasse minha irmã, eu o faria engolir cada corda daquela maldita guitarra.
Mas, droga, eu gostava dele.
Então senti. Um toque leve em meu ombro. Lisa. Ela se sentou na fileira de trás.
O sorriso doce, triunfante, como se testemunhasse uma profecia se cumprindo.
— Eu pedi por esse dia, Lorenzo.
A audácia dela me fez rir. Um riso frio, cético.
— E eu amaldiçoo esse dia, Lisa.
Senti prazer em ver seus olhos revirarem. Mas então, o golpe final.
Evelyn ouviu.
Seu olhar atravessou minha alma como uma lâmina invisível.
Engoli seco.
Braços cruzados, postura rígida. Meu escudo invisível contra essa palhaçada.
— Cara, só relaxa. Descruza os braços, foca na letra do louvor e acalma o coração — disse Noah.
Revirei os olhos, mas senti algo.
Desconforto.
Uma inquietação rastejando sob minha pele.
Enfiei as mãos nos bolsos, respirei fundo.
E, pela primeira vez em muito tempo… me senti inquieto.
E então veio outro golpe.
Uma das moças do louvor começou a ministrar, a voz suave, cheia de uma serenidade quase irritante. E como se não bastasse toda aquela encenação, veio o pedido:
— Quero convidar vocês a darem as mãos.
Era o meu fim.
Engoli seco. Mas não havia escapatória. Senti a mão de Evelyn tocar a minha. Quente. Macia. Um toque tão leve e, ao mesmo tempo, tão intenso que meu coração, esse órgão meramente fisiológico, ousou acelerar.
Que raios foi isso?
Nunca, em toda a minha vida, eu tinha sentido algo assim. Como um raio cruzando minhas veias, um calor desconhecido que me deixou momentaneamente sem reação. E então, Evelyn apertou levemente minha mão.
Instintivamente, fechei os olhos. Por um segundo. Mas logo os abri.
Ela estava entregue. Absorvida pelo momento. Virei a cabeça para o lado. Noah e Hadassa. O mesmo estado. Todos, todos ali estavam… rendidos. E eu? Entediado.
Soltei um suspiro pesado, olhos bem abertos, observando cada detalhe, cada mínimo movimento.
Finalmente, o grupo de louvor parou. Um alívio. Mas a esperança durou pouco. Uma mulher caminhou até o microfone.
Ótimo. Agora um solo. Mais um espetáculo.
Eu já estava cansado de ficar de pé, cansado daquela atmosfera, daquela comoção absurda. Mas então, olhei ao redor.
Lágrimas.
Clamor.
Pessoas inteiramente entregues a algo que, para mim, não passava de uma ilusão coletiva.
E foi aí que aconteceu.
Meu coração disparou de novo.
Dessa vez, não foi por Evelyn.
Conforme a mulher cantava, algo… diferente me tocou. Uma inquietação que não vinha da razão, não tinha lógica, não fazia sentido algum.
E, sem perceber, me vi tentado a fechar os olhos. Apenas por um segundo. Apenas para… ouvir.
“Sempre me lembro o que passei
No mundo de ilusão
Não tinha paz, não tinha luz
Não conhecia o meu Jesus
Foi quando nas madrugadas
Em sonho Jesus me mostrava
A sua igreja subindo pra a glória
E eu ficava de fora
Acordava desesperada
Sem saber o que fazer
Quando via que era apenas um sonho
Dormindo ainda ficava”.
Um arrepio me percorreu dos pés à cabeça, e por um instante, um medo frio me tomou. Algo estava errado. De repente, me senti… sumindo. Como se minha existência estivesse se dissolvendo no ar.
E então, veio aquela sensação.
Aquela maldita sensação.
A mesma que experimentei anos atrás, quando estive entre a vida e a morte naquele hospital, deitado em uma cama, com a incerteza cruel se aquele seria meu último suspiro.
Era como uma presença.
Algo — ou alguém — tão perto que era impossível ignorar.
Minha lógica gritava que era só meu cérebro pregando peças, meu corpo reagindo ao ambiente. Mas não era isso.
Não podia ser.
Senti um arrepio intenso, seguido por uma brisa sutil, quase imperceptível, mas que tocou minha pele como um aviso. E então veio a paz. Uma paz inexplicável, absurda, impossível de ser reduzida a um fenômeno químico ou a um simples estado emocional.
Meu coração acelerou.
Meus olhos se abriram num rompante, temendo encontrar algo sobrenatural bem à minha frente.
Foi quando ela cantou.
“Quem não vem por amor vem pela dor
Mas é pela dor que estou aqui
Exaltando o santo nome do Senhor”.
Fechei os olhos outra vez.
Pela dor. Pelo peso. Pela turbulência dentro de mim que, por alguma razão, parecia diferente daquela que eu carregava a vida inteira.
Santo nome do Senhor. Senhor...
Meu peito subia e descia em um ritmo errático. A pulsação latejava nos meus ouvidos. Minha respiração estava pesada.
Mas não era medo.
Não era pânico.
Era outra coisa. Algo que me alcançava sem permissão, que quebrava as barreiras invisíveis que eu nem sabia que tinha erguido.
E aquilo me enfurecia.
Eu não era um homem de emoções desenfreadas. Nunca fui. Eu raciocinava, eu analisava, eu lidava com os fatos e a lógica. Mas agora… agora algo maior que a lógica estava me desafiando. Algo maior que qualquer explicação médica ou científica me tocava de um jeito que eu não podia ignorar.
Respirei fundo, tentando recuperar o controle.
Mas então o louvor terminou, e eu senti como se tivessem arrancado o chão sob os meus pés.
Sentei-me devagar, com a mandíbula tensa, enquanto o culto seguia seu curso.
O pastor mencionou Noah. Explicou por que ele não podia cantar. O público reagiu com intensidade — palmas, gritos, entusiasmo — mas eu mal registrei aquilo. Meus sentidos estavam presos em outra coisa.
Então eu tremi.
Foi um estremecimento súbito, involuntário.
O homem que subiu ao púlpito era uma sombra do passado. Mas ao mesmo tempo, não era.
Dr. Edgar.
O cirurgião.
O homem que segurou minha vida nas mãos, que viu o sangue escorrer, que costurou minha carne e me devolveu a existência. Eu não conseguia desviar os olhos dele. Ele parecia o mesmo, mas diferente. O tempo não marcou seu rosto, mas algo mais profundo havia mudado. Seu semblante era leve. Sua postura firme, mas sem a rigidez fria que médicos carregam depois de tantas vidas e mortes em suas mãos.
Ele parecia… inteiro.
Eu, por outro lado, estava longe disso.
Minhas pernas tremiam, meu estômago se revirava. Eu não era de sentir esse tipo de coisa. Nunca.
— Você tá bem? — Evy se inclinou, a voz baixa, preocupada.
Eu queria responder que sim. Queria dizer que estava ótimo, que isso era apenas um efeito colateral da exaustão, do ambiente, da pressão.
Mas minha boca estava seca. Minha voz hesitou antes de sair:
— Tô… tô bem.
Ela não pareceu convencida, mas não insistiu.
O pastor começou a pregação. Falou pouco sobre si mesmo — se apresentando — antes de pedir para abrirmos as Bíblias.
E então ele leu o versículo.
“Eu lhes darei um coração novo e porei um espírito novo em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne.” Ezequiel 36.26.
A frase atingiu meu peito como um impacto físico.
Coração de pedra.
Coração de carne.
Minhas mãos cerraram em punhos. Minhas têmporas latejavam.
Era um acaso. Tinha que ser.
Mas então, por que parecia que aquelas palavras estavam sendo ditas diretamente para mim?
Por que pareciam tão pessoais, tão exatas, tão certeiras?
Um nó se formou na minha garganta.
Algo dentro de mim resistia, lutava, tentava negar. Mas, ao mesmo tempo, algo cedia. E quando percebi, um tremor subiu pela minha espinha.
Ele falava. E falava.
Cada frase, um choque que subia pelo meu corpo, arrepiando cada centímetro da minha pele. Eu tentei resistir. Juro que tentei. Mas era como se algo estivesse desmoronando dentro de mim, algo que eu passei anos construindo — e que agora, sob o peso daquelas palavras, simplesmente não aguentava mais.
E então, como se já não bastasse o turbilhão dentro de mim, o olhar dele me encontrou. Firme. Preciso. Como se alguém o tivesse direcionado até mim.
E ele sorriu.
Meu coração falhou uma batida. Minhas pernas começaram a se mover sozinhas, inquietas. Desviei o olhar, nervoso, como se isso fosse o suficiente para me esconder daquilo que estava prestes a me alcançar.
Mas não era.
— Todos sabem que sou médico há anos. Tenho propriedade para falar sobre medicina — ele começou, e eu já sentia o suor frio escorrendo pela minha nuca. — Há alguns anos, eu fui médico do exército.
Meu estômago revirou. Minhas mãos começaram a tremer.
Noah percebeu. Ele não disse nada, mas pousou a mão no meu ombro. Um toque firme, quase imperceptível, mas que fez minha respiração falhar por um segundo.
O pastor me olhava a cada instante. Como se estivesse falando diretamente comigo. Eu sabia para onde aquilo estava indo. Mas ainda assim, não estava preparado.
— Antes de tudo, eu era ateu. Daqueles de coração duro mesmo. Pra mim, o mundo era ciência. Pura ciência. — Ele soltou um sorriso curto, nostálgico. — Eu era um defensor da lógica, das explicações óbvias, definidas. Mas não imaginava que Alguém, que eu insistia em dizer que não existia, tinha um propósito para minha vida.
Engoli em seco.
— Um dia, fui chamado com urgência para realizar uma cirurgia minuciosa. Um dos militares havia sido atingido durante uma operação. No peito. Por um triz, seria fatal.
O espaço inteiro parecia ter desaparecido. Só existia ele. Só existia aquela história.
— Quando entrei na sala de cirurgia, meu coração acelerou. E não era nervosismo. Eu dominava o bisturi com precisão, sempre dominei. Mas naquele momento, quando olhei para aquele homem pálido sobre a mesa…
Ele olhou para mim.
Direto nos meus olhos.
Minha respiração travou.
Meu coração começou a bater tão rápido que eu temi que fosse desfalecer ali mesmo.
— Eu senti a presença de Deus. Foi como se anjos estivessem rodeando aquela sala. Como se a mão d’Ele estivesse ali, guiando cada detalhe daquela cirurgia. Cuidando para que aquele homem saísse com vida. E ele saiu.
A igreja explodiu em aplausos e louvores.
Mas eu?
Eu estava imóvel.
Noah, Hadassa, Lisa e Evelyn me observavam, mas eu mal conseguia processar.
Porque meus olhos…
Eles estavam cheios d’água.
Eu pisquei, tentando conter aquilo. Tentando manter o controle. Mas era inútil.
— Deus estava a todo tempo cuidando daquela vida — ele continuou. — E eu ouvi uma voz. Não foi um pensamento. Não foi minha consciência. Foi uma voz real dentro do meu coração. E ela disse: ‘Eu permiti isso para que um dia ele entenda o propósito que tenho na vida dele, mas não permitirei que toquem na vida dele’.
O nó na minha garganta ficou insuportável.
— E eu sorri. Saí dali agradecido. Porque naquele momento eu soube, sem sombra de dúvidas, que Deus estava ali. Que Ele tinha um plano. Que Ele queria restaurar a vida daquele homem.
Uma lágrima escapou dos meus olhos.
Eu não a enxuguei.
Não consegui.
Meu peito subia e descia de forma irregular, como se o ar estivesse sendo tirado de mim.
Então ele me encarou de novo. E falou. Diretamente para mim.
— Deus tem um propósito na tua vida.
O mundo parou.
— Você é usado para salvar vidas…
Minhas mãos estavam suadas. Meu peito queimava.
— Mas Deus quer salvar a sua.
O chão parecia ter desaparecido.
— Pare de fugir do chamado de Deus e se renda.
Eu fechei os olhos, sentindo algo rasgar dentro de mim.
— Porque você sabe que Ele existe. Só precisa se render.
Minhas mãos foram ao rosto. Meu corpo começou a tremer.
— Ele é o dono da ciência. E quer entrar no teu coração.
As barreiras desabaram.
As lógicas desmoronaram.
As dúvidas se silenciaram.
— O melhor Deus tem pra ti. Ele está colocando alguém para te acompanhar nessa caminhada. Basta acreditar.
E ali…
Ali eu não aguentei mais.
Desabei.
As lágrimas vieram pesadas, incontroláveis. Meus ombros estremeciam.
Eu não sabia o que estava acontecendo comigo. Não sabia como, quando, em que momento aquilo havia me alcançado.
Mas sabia de uma coisa.
Deus estava ali.
E eu não podia mais fugir.
Me escondi atrás das mãos, os cotovelos apoiados nos joelhos, mas um toque firme no ombro me trouxe de volta. Era Evelyn. Quando olhei para ela, seus olhos brilhavam, úmidos, e ela sorriu. Algo dentro de mim cedeu.
Noah me observava.
— Vai continuar fugindo? — perguntou ele, o tom sereno, mas com um sorriso sutil.
Engoli em seco. Meu peito subia e descia num ritmo acelerado, mas minha resposta veio firme:
— Acho que não tenho mais pra onde correr.
Ele assentiu, satisfeito, e Evelyn apertou levemente meu braço.
Quando o culto terminou e descemos, o pastor Edgar se aproximou, cumprimentando Evelyn primeiro, depois segurando minha mão. Seu olhar era direto, quase como se enxergasse algo que eu ainda não via.
— Dr. Lorenzo… — começou, sua voz carregando uma certeza que me inquietou. — Vejo um futuro lindo em vocês. Mas antes, meu jovem… Deus vai te resgatar.
Meu corpo arrepiou. Respirei fundo, forçando um sorriso.
O que se diz numa hora dessas?
Amém?
Sou novo nisso.
— Obrigado — foi tudo o que consegui responder.
Quando o pastor se afastou, Evelyn ficou ali, próxima demais para que eu ignorasse a inquietação dentro de mim.
— Como você entendeu esse futuro? Para cada um… ou…
— Juntos? — deixei escapar um sorriso de canto, e ela corou. — Se quiser conhecer um homem pecador tentando se redimir… talvez seja isso que ele quis dizer.
Ela assentiu, um brilho nos olhos.
— Estou disposta a conhecer esse homem.
Meu estômago revirou. Meu coração bateu mais forte. Aquilo bastou para me fazer ganhar a noite.
Mas antes… eu precisava fazer algo.
Depois que deixei Evelyn no prédio do Noah e me despedi com um beijo em sua testa, voltei para o meu apartamento sentindo um peso que não era físico, mas esmagador. Algo dentro de mim pulsava, uma inquietação que há anos eu silenciava com distrações e prazeres momentâneos. Mas agora, ela rugia dentro de mim, exigindo espaço.
A tarefa não seria fácil, e eu já sabia disso.
Assim que entrei, tomei a primeira decisão. Desfiz um compromisso que, até pouco tempo, era inegociável para mim. Mas isso era apenas um detalhe. O verdadeiro confronto estava prestes a começar.
Minha casa sempre fora um refúgio para o prazer desenfreado, e o maior símbolo disso estava à minha volta: garrafas alinhadas como troféus, frigobares estrategicamente abastecidos, uma adega impecável. O que eu fazia antes de dormir? O que me ajudava a suportar a exaustão? O que preenchia os silêncios?
Abri o frigobar do quarto. Lá estava ela. Uma garrafa sofisticada, importada, refletindo a luz amarelada. Peguei-a, sentindo o vidro gelado contra a pele quente.
“A última. Um gole. Apenas um.”
“Vai se dobrar assim tão fácil, Lorenzo? Você, um médico, um homem de ciência, vai se render a essa fraqueza irracional?”
Meus dedos apertaram o vidro. O conflito era real, brutal. A razão tentava justificar, mas a consciência gritava mais alto.
Exalei forte. Não haveria despedida sentimental.
Juntei todas as garrafas do quarto, segurei-as com força e levei para a cozinha.
— Clara, Pedro — minha voz soou firme, inegociável. — Quero que se livrem disso. Tudo. Bebidas, narguilés… não quero mais nada disso aqui.
Eles trocaram olhares. Nenhuma pergunta. Apenas um aceno e a execução imediata da ordem.
Segui até a sala, abri a adega, revirei cada canto do apartamento. Não restaria nada. Nenhuma válvula de escape. Nenhuma desculpa.
Quando a última garrafa saiu pela porta, senti algo curioso: meu peito se expandia. Uma liberdade estranha. Como se o peso que carreguei por anos começasse a se dissipar.
Mas ainda não era o suficiente.
Caminhei até a varanda do quarto, a água deslizando pela garganta seca. O ar frio da noite bateu em meu rosto. O céu acima de mim era um espetáculo matematicamente perfeito — estrelas espalhadas sobre um fundo escuro, uma coreografia celestial que minha mente sempre estudou, mas nunca admirou de verdade.
Eu, um homem acostumado a lidar com a vida e a morte, sabia que cada batimento cardíaco era um fenômeno bioquímico exato. Mas, pela primeira vez, me perguntei: E se houver mais?
Como encontrá-Lo?
Como dizer algo a Ele depois de tê-Lo negado por tanto tempo?
Minhas mãos se apoiaram no parapeito. Meus olhos se fecharam.
— Se estiver aí… me escute, por favor.
Minha voz saiu rouca, contendo uma sinceridade que eu não sabia ser capaz de sentir.
— Eu não sei como fazer isso. Mas estou tentando.
Minha voz, normalmente controlada, saiu de forma crua, como uma constatação, um diagnóstico final.
— Deus, no fundo, Você já sabia que eu me renderia a Ti.
Essas palavras saíram com uma certeza angustiante. Eu sabia o que estava acontecendo, mas ainda me perguntava como faria isso. Como poderia alguém tão racional, tão enraizado na lógica, dar o passo que estava prestes a dar?
— Não sei como vou fazer isso. Não sei qual será o impacto dessa decisão. Mas estou aqui. Eu vou tentar, não importa o quão difícil. Então, me ajude, porque sozinho eu sei que não posso.
Minha respiração ficou pesada, como se cada palavra me custasse mais do que um simples esforço de fala. Mas, era necessário. Eu não poderia mais viver com as respostas que me dei durante tanto tempo.
— Vou estudar a Tua Palavra com mais dedicação que estudo os casos clínicos, com a mesma precisão com que faço diagnósticos. Quero Te conhecer, não através de teorias abstratas, mas pela experiência. Quero entender, em cada célula do meu ser, quem Você realmente é.
A verdade começou a se infiltrar como um remédio amargo, mas necessário.
— Me perdoa por cada vez que duvidei de Ti. Por cada vez que racionalizei a Tua inexistência, que preferi acreditar que a razão poderia me dar todas as respostas. Me perdoa por cada pecado, por cada ato impensado, por cada tentativa de substituir o que é eterno pelo que é efêmero.
Eu senti uma pressão no peito, como se toda a lógica que eu conhecia estivesse sendo reescrita, removendo camadas de arrogância, de orgulho, de autossuficiência.
— Me ajude a sentir a Tua presença. Me ajude a ser o Teu servo. Amém.
Quando me virei para voltar para o quarto, uma sensação inexplicável se apoderou de mim. Algo além da razão, algo impossível de explicar em termos científicos.
“Eis que faço algo novo em sua vida.”
Meus pés pararam. Minha mente procurava entender, mas o que eu sentia não era para ser entendido. Era para ser vivido.
“Mantenha-se firme.”
Minha respiração ficou mais curta. Era como se uma pessoa estivesse falando comigo. Audível.
“Confesse-Me como seu Salvador, e serás um instrumento em Minhas mãos.”
Eu sabia o que era ser um instrumento nas mãos de alguém — um médico, um operador. Mas esse convite… era diferente.
“Confirmarei os teus passos e te prepararei para o que tenho para você.”
Algo dentro de mim se partiu, uma defesa que eu havia erguido por anos, a ideia de que eu tinha tudo sob controle.
“Tenha ânimo. Eu o resgatei.”
Meus joelhos enfraqueceram, a consciência do que estava acontecendo me atingiu com a força de uma verdade irrefutável. Eu não tinha mais as respostas. Eu não podia mais viver sem entender Quem estava me chamando.
Eu sabia que algo estava sendo reescrito em minha alma. Não em uma teoria, não em um diagnóstico clínico. Mas em um nível que eu, com toda minha formação científica, não conseguia mais negar.
Deus existe.
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