Capítulo 21 | Céu Estrelado
Noah Tremblay
“Tu bem sabes como fui insensato, ó Deus; a minha culpa não te é encoberta”.
Salmos 69.5.
Coloquei Lara na cama com cuidado, tentando não acordá-la, mas não funcionou. Ela se mexeu, piscando os olhos sonolentos antes de me encarar.
— Noah — sua voz saiu baixa, arrastada pelo sono. — Sinto sua falta em casa.
Soltei um sorriso leve.
— Eu não posso ir pra São Paulo, Larinha — murmurei, puxando a manta sobre ela e ajustando o ar-condicionado na temperatura certa.
Ela ficou quieta por um instante, mas então soltou algo que me pegou de surpresa:
— Você sabia que eu gostei muito da Hadassa?
Meu coração deu uma batida estranha.
— Ah, é?
— Sim — ela murmurou, os olhos já pesados de novo. — Ela combina com você. Acho que vocês seriam felizes juntos.
O jeito inocente com que falou me fez sorrir, mas, por dentro, senti um aperto no peito. Eu já sabia o quanto Hadassa dominava minha mente. E, mesmo gostando dela mais do que deveria, ainda convivia com o medo de que ela pudesse quebrar minha confiança… como já fizeram antes.
— Você sabe que ela é minha assistente, não sabe? — questionei, tentando desviar.
— Sei. Mas isso não quer dizer que vocês não possam ficar juntos — ela rebateu sem hesitar. — Eu ouvi a mamãe e o papai dizendo que não tinha necessidade da Hadassa morar com você… mas você quis, né?
Um arrepio subiu pela minha espinha.
— O que você tá querendo dizer com isso?
Ela abriu um sorrisinho esperto.
— Que você quer a Hadassa por perto mais do que admite.
Fiquei sem palavras. O comentário dela me atingiu como um soco no estômago. Crianças não filtram o que dizem. E, por mais que eu tentasse evitar esse pensamento, Lara tinha razão. Eu queria Hadassa por perto. Mais do que deveria. Mais do que eu imaginava.
— Agora dorme, vai — falei, tentando mudar de assunto.
— Canta pra mim? — pediu, fazendo um beicinho.
Soltei um riso baixo.
— Tá bom, vem cá.
Deitei ao lado dela, e ela logo se aconchegou no meu peito. Cantei uma das minhas músicas até sentir sua respiração desacelerar. Só então me levantei, apaguei o abajur e saí, fechando a porta com cuidado.
Mas as palavras dela continuaram ecoando na minha cabeça.
O que minha irmã mais nova disse não deveria ter mexido tanto comigo. Mas mexeu. Eu já estava inquieto, mas agora a ideia de simplesmente deitar e dormir era impossível. Peguei meu violão e fui para o rooftop. O frio da noite me envolveu assim que pisei lá fora, mas eu precisava daquilo. Precisava respirar, organizar os pensamentos, fingir que tinha algum controle sobre o que estava sentindo.
Sentei no banco de jardim e comecei a dedilhar as cordas. Uma nota. Depois outra. E outra.
Mas entre cada acorde, ela aparecia. Sempre ela.
Seus olhos castanhos profundos… outra nota. Seu sorriso, que me desmonta e me tira do eixo… outra nota. Seus lábios, que fazem minha mente gritar para beijá-los… mais uma nota. Seu cheiro, que me faz esquecer do resto do mundo… e então, já era.
Eu já não estava no controle.
Me peguei caindo na minha própria armadilha. Fiz questão de erguer um muro entre nós. Coloquei um contrato no meio, limitei qualquer laço pessoal. Tudo para evitar que a história se repetisse. Ela era minha assistente, ponto final. Eu não precisava saber de nada além das agendas que organiza, das reuniões que marca. Mas aqui estou. Pensando nela. Querendo mais do que deveria.
Soltei o ar devagar, fechando os olhos, e então a lembrança veio como um golpe. A noite passada.
Eu me lembrava de tudo. De cada palavra. De como praticamente implorei para beijá-la.
E se ela tivesse cedido? Se tivesse dito sim? O contrato estaria em pedaços. Talvez eu tivesse cometido um erro irreparável. Talvez Hadassa já estivesse de malas prontas para São Paulo, decidida a me deixar para trás.
Mas o problema é que tudo o que eu disse… era verdade.
Eu podia fingir que não lembrava. Que foi um delírio passageiro. Mas eu me perdi naquele olhar depois do filme. E me entreguei.
Enquanto queimava de febre, falei sobre os lábios dela, sobre sua beleza… Mas e se eu fui além? E se, em meio a esse turbilhão, acabei abrindo uma porta que nunca deveria ser aberta? Meu passado. Meu maldito passado.
Se eu disse alguma coisa sobre isso, então talvez… já seja tarde demais.
As cordas vibravam sob meus dedos, mas minha mente estava em outro lugar. Olhei para o céu estrelado, sentindo o caos dentro de mim. Minha vida estava uma loucura. Achei que vir para o Brasil me ajudaria a fugir dos meus fantasmas, mas o peso veio junto. O recomeço que eu tanto queria se mostrou uma ilusão. Eu não estava em paz. Minha consciência pesava como montanhas sobre mim, esmagando qualquer vestígio de descanso.
Fechei os olhos, apertando a mandíbula. Eu sabia o quanto tinha sido infiel a Deus. Sabia o quanto O desonrei. Subia ao palco como se fosse um adorador, mas nos bastidores… eu era tudo, menos isso. Um hipócrita. Um falso. Quantas vezes usei o nome dEle enquanto minha vida gritava outra coisa?
O vento frio soprou contra mim, trazendo lembranças do Canadá. De tudo o que deixei para trás. De como minha imagem se manchou enquanto eu deveria estar limpo diante de Deus. Respirei fundo. Eu sabia que não podia me envolver com ninguém. Não assim. Não enquanto essa sombra me seguisse.
— Até quando, Senhor? — Minha voz saiu baixa, com um peso que eu não sabia mais como suportar. — Até quando vou carregar esse fardo?
Meus olhos fixos no céu pareciam buscar uma resposta que não vinha.
— O que mais eu preciso fazer? Já me arrependi. Já te pedi perdão. Já doei milhões para instituições. Já estou pagando pelas consequências… e ainda assim, esse peso não sai. Eu sinceramente… eu não sei mais o que fazer pra ter paz.
Passei a mão pelo rosto, exausto.
— O Senhor disse que eu podia lançar sobre Ti o meu fardo pesado e o Senhor me daria descanso… Mas eu lanço esse fardo todos os dias, e o descanso nunca vem. Por quê? Quando vai me perdoar para que eu possa viver sem essa culpa corroendo o meu coração? O Senhor sabe como foi difícil para mim subir ao palco depois de tudo. Eu me envergonho. Ministrar sobre Ti enquanto lembro de tudo o que fiz… Como posso falar de pureza se antes de subir ao altar, eu me sujava ainda mais?
Fechei os olhos por um instante. O silêncio da noite era quase ensurdecedor.
E então, sem que eu pudesse evitar, Hadassa veio à minha mente.
— Eu sei… e o Senhor sabe… que ela tem uma admiração por mim. — Um sorriso cansado surgiu em meus lábios. — Ela é péssima em esconder isso.
Suspirei, sentindo o impacto do que estava prestes a dizer.
— E eu sei o quanto ela vai se decepcionar comigo. É por isso que peço… que o Senhor tire qualquer sentimento do meu coração e do dela. Que nos torne frios um com o outro. Porque isso… isso vai ser melhor do que ver nos olhos dela o peso da minha decepção.
As palavras saíram como um pedido sincero, mas no fundo, algo dentro de mim se contorcia. Eu realmente queria isso?
Ou já era tarde demais?
As palavras mal tinham saído da minha boca quando ouvi um leve ruído atrás de mim. Meu corpo ficou tenso, e, ao me virar, lá estava Hadassa.
Ela caminhava devagar, os braços cruzados por causa do frio, os olhos brilhando sob a luz fraca da lua. Algo na maneira como ela me olhava fazia meu coração bater mais forte — como se ela tivesse escutado mais do que deveria.
— Achei que estivesse conversando sozinho — disse, com um sorriso leve, mas que havia algo a mais, algo que me desestabilizava.
Tentei me recompor, mantendo a voz firme.
— Estava orando.
Ela assentiu, desviando o olhar para o céu.
— As estrelas estão lindas hoje. Já parou pra pensar em como Deus as chama pelo nome? Milhões, bilhões delas… e Ele conhece cada uma.
Fiquei em silêncio, observando-a. Eu queria desviar o olhar, mas não consegui. Hadassa tinha esse efeito sobre mim — como se conseguisse enxergar além do que eu deixava transparecer.
— Ele também conhece o nosso íntimo, o mais profundo do nosso ser. Nossos pensamentos, medos, anseios… — disse ela, ainda olhando para as estrelas enquanto se sentava ao meu lado.
Apoiei o braço sobre o violão e continuei observando-a.
— Uma coisa sempre me perguntei… — minha voz saiu mais baixa, ponderando cada palavra que iria dizer. — Deus conhece cada detalhe sobre nós, mas, às vezes, nos deixa confusos em vez de clarear tudo aqui dentro.
Ela virou a cabeça e encontrou meus olhos. Um segundo foi o suficiente para que aquela maldita sensação estranha tomasse conta de mim.
— Você ministra o tempo todo no palco e nunca encontrou essa resposta, Noah? — perguntou, sorrindo de um jeito sutil, mas que fez alguma estrutura dentro de mim balançar.
Meu nome em sua boca soou diferente. Como se carregasse peso, significado… como se ela soubesse exatamente o que estava fazendo comigo.
— Se você olhar a Bíblia, Deus primeiro manda a tempestade para depois a calmaria — continuou, inclinando-se um pouco na minha direção.
Meu corpo reagiu antes da minha mente. Me recostei no banco, minha atenção completamente voltada para ela.
— Vou te dar um exemplo — seus olhos brilharam, e, por um instante, esqueci como se respirava.
— Qual exemplo? — minha voz saiu mais baixa do que eu pretendia.
— Abraão. Deus mandou que ele deixasse sua terra e sua parentela para ir a uma terra desconhecida. Sabe por quê?
Ergui as sobrancelhas, esperando a resposta.
— Porque Deus quer que a gente confie nEle, não no que vemos. Ele nos conduz mesmo no desconhecido. Mesmo quando não temos respostas, Ele nos guia e nos protege até chegarmos ao propósito que Ele tem para nós.
Sua voz era firme, mas ao mesmo tempo tinha uma doçura que me atingiu de um jeito estranho. Era como se Hadassa tivesse ouvido minha conversa com Deus. Como se estivesse me dando uma resposta sem nem perceber.
Engoli em seco, voltando o olhar para o céu.
— Sabe… tem momentos em que tudo o que a gente quer é apagar o passado e começar do zero. Sem lembranças, sem histórias… simplesmente recomeçar — falei, sem conseguir olhar em seus olhos.
O vento frio soprou ao nosso redor, e Hadassa suspirou.
— Mas aí a vida não teria graça — murmurou. — E também não haveria testemunhos para contar. Se você olhar a Bíblia, todas as grandes promessas vieram acompanhadas de passados cheios de erros e falhas. Olha Paulo… Ele se considerava o pior dos pecadores, mas Deus o transformou em um dos maiores exemplos de fé e redenção.
Minhas mãos apertaram o violão sem que eu percebesse. As palavras dela pesavam dentro de mim, ressoavam de uma maneira que eu não queria admitir.
Hadassa se recostou no banco ao meu lado e cruzou os braços, encarando o céu, alheia à tempestade que havia acabado de causar dentro de mim.
— Eu queria saber… Se não existisse esse contrato, se eu não fosse sua assistente, apenas uma mulher qualquer que cruzasse seu caminho em uma rua qualquer… Você sequer olharia para mim?
Minha testa se franziu imediatamente, e meus olhos encontraram os dela, tentando entender de onde aquilo vinha.
— Como assim? — perguntei, mas ela desviou o olhar.
— Você disse tudo aquilo essa madrugada… e hoje fingiu que nada aconteceu. Talvez não tenha sentido nada do que falou. Talvez só veja isso como um jogo, um desafio por causa do contrato.
Meu peito se contraiu.
— Como pode dizer isso? Acha que olho pra você como se fosse um jogo?
— Às vezes, sim, Noah. E por mais que eu goste de desafios e me sinta motivada a vencê-los, acho que é melhor deixar tudo isso pra lá. Sem desafios, sem apostas, sem jogos. Apenas… uma relação completamente profissional.
Dessa vez, ela sustentou meu olhar, e algo dentro de mim se revirou.
Fiquei sem palavras. Hadassa estava sendo sincera demais, direta demais, e eu não sabia como reagir.
Talvez essa fosse a resposta da minha oração. Pedi a Deus que tirasse qualquer sentimento que estivesse crescendo entre nós, e aqui estava ela, deixando tudo claro. Eu deveria aceitar. Simplesmente aceitar.
Respirei fundo.
— Tudo bem. Se é assim que quer… Esquece os desafios.
— Vamos fazer tudo certo dessa vez. Apenas uma assistente e um cantor. Um contrato.
As palavras saíram da boca dela com firmeza, mas algo em sua expressão dizia o contrário.
Eu deveria encerrar essa conversa ali. Apenas concordar e seguir em frente.
Mas não consegui.
— Mas só pra constar — minha voz saiu mais grave, e vi seus olhos se arregalarem levemente —, pra mim isso nunca foi um jogo, Hadassa. Nunca foi uma brincadeira. Eu só tento seguir as regras… mas você me faz querer quebrá-las.
Vi o rubor subir por seu rosto. Hadassa pigarreou e desviou o olhar, desconcertada. Um sorriso de canto surgiu em meus lábios. Era injusto o efeito que tínhamos um sobre o outro.
Mas então, sua expressão mudou.
— Então me diz… Se não é um jogo, por que mudou comigo hoje? Por que esse afastamento, essa frieza?
Soltei um longo suspiro, passando a mão pelos cabelos.
— Você não recebeu o meu presente?
— Recebi, Noah, e amei… Mas quem me entregou foi Douglas. Você não veio até mim, não disse nada. Você me confunde. Diz coisas que me deixam sem chão, e depois se esquiva. Só porque é um astro internacional, acha que pode bagunçar o coração de qualquer pessoa assim?
— Hadassa…
— Eu só queria entender. — Sua voz saiu mais baixa, mas continha algo que me atingiu fundo. — O que te assusta tanto?
Ela não desviou o olhar dessa vez. E eu soube… que estava encurralado.
O que me assustava?
O jeito como meu coração batia quando ela estava por perto. O fato de que, apesar de tudo, eu queria me aproximar, não me afastar. Que eu queria ser frio, mas falhava miseravelmente.
O silêncio entre nós era pesado, denso e sufocante. Mas eu não conseguia quebrá-lo. Não conseguia dizer o que precisava ser dito.
Então, em vez de responder, fiz o que sabia fazer de melhor: voltei a dedilhar o violão, como se aquilo fosse suficiente para dizer tudo o que minha boca não conseguia pronunciar.
Hadassa observou por um instante, um sorrisinho leve, quase triste, dançando no canto de seus lábios. Então, suspirou, recostando-se no banco ao meu lado, os olhos presos nas estrelas.
— Vai ser mais difícil do que eu pensei… — murmurou.
Eu sabia o que falar. Sabia exatamente o que deveria fazer.
Mas não fiz.
— Boa noite, Noah — ela disse, levantando-se.
E então, ela se foi.
Meus dedos apertaram as cordas do violão, e um segundo depois dei um leve soco na madeira, frustrado comigo mesmo. Por que a deixei escapar tão fácil assim? Eu deveria ter dito algo. Qualquer coisa. Ter impedido que ela saísse desse jeito, com essa barreira entre nós.
Me levantei num impulso, o peito pesado, e fui até a sala, meus passos apressados. Tudo em mim gritava para pará-la, para segurá-la ali, para acabar com essa distância absurda que eu mesmo havia criado.
Mas apenas a observei descer as escadas para o andar de baixo, e, mais uma vez…
Não disse nada.
Apenas a deixei ir.
⏳
Ainda era cedo quando entramos direto na clínica que Lorenzo indicou. Ele queria que outro especialista analisasse os exames para ter uma confirmação antes de seguir com o diagnóstico.
A sala era diferente, mas o cenário ainda assim me parecia familiar. O brilho frio dos equipamentos, o cheiro forte de desinfetante, a cadeira onde eu me sentaria, tenso, esperando o inevitável. Eu já sabia exatamente o que viria a seguir: a câmera descendo pelo meu nariz, o incômodo, a ardência, a vontade de tossir. Mas, dessa vez, não era o exame que me assustava.
Minha voz vinha falhando fazia semanas. As notas que antes saíam com firmeza agora pareciam fugir do meu alcance. O agudo não respondia, o grave soava estranho. E a dor... a maldita dor, me lembrando o tempo todo que algo estava errado.
O médico ajeitou o monitor e apontou pra tela. Eu vi ali minhas pregas vocais ampliadas, tremendo a cada som que eu emitia. Mas também vi o que não deveria estar lá.
— São nódulos vocais em estágio inicial — ele disse, me encarando. — Isso explica sua dificuldade pra cantar.
Meu peito pesou na hora.
— Eu… vou perder minha voz? — Minha pergunta saiu mais fraca do que eu queria.
Ele suspirou, se recostando na cadeira.
— Não, se começarmos o tratamento agora. Mas você vai precisar de repouso vocal absoluto por um tempo. Fonoaudiologia, nada de esforço, nada de cantar.
Meu coração acelerou. Nada de cantar. Como se me dissessem pra parar de respirar. Hadassa estava ali, quieta, me observando. Eu tentava processar as palavras do médico, mas tudo girava na minha cabeça.
— Se eu fizer tudo certo… minha voz volta?
Ele hesitou um segundo antes de responder.
— Se seguir o tratamento à risca, sim. Mas não vai ser fácil.
Engoli seco. Podia ser pior. Eu sabia que podia ser pior. Mas, naquele momento, tudo que eu enxergava era o silêncio à minha frente. O vazio de não poder cantar.
O caminho de volta foi em silêncio absoluto. Eu sabia que o melhor era evitar conversar por causa da voz, mas Hadassa não precisava. Ainda assim, ela ficou calada, e depois de ontem à noite, eu entendia o motivo.
Quando chegamos na cobertura, senti um incômodo imediato no peito. Além de Marta e Lara, quem estava ali para receber Hadassa? Lorenzo. Com aquele sorriso insuportável no rosto.
— Posso passar o tempo que for sem te ver, mas seu sorriso fica gravado em minha mente — ele soltou, olhando para ela.
E, claro, ela sorriu. Aquele sorriso que me consumia.
Cerrei os punhos e fui direto para a cozinha, ignorando os dois.
— Como está, querido? — Marta perguntou, mas minha atenção já estava na sala, onde Hadassa e Lorenzo conversavam.
Lara, sempre animada, falava sem parar com ele. Revirei os olhos.
— Não se preocupe, ela não olha para ele como olha pra você — disse Marta, tirando minha atenção da sala.
Franzi o cenho, voltando meu olhar para ela.
— Quem disse que eu estou pensando nisso? — retruquei. Ela apenas sorriu.
— Te conheço desde pequeno — respondeu, como se aquilo explicasse tudo.
Bufei, peguei uma xícara de café e fui para a sala. Mal toquei na borda da xícara quando Hadassa se levantou e veio até mim.
— Quem disse que você pode tomar café? — ela reclamou, tirando a xícara da minha mão.
Franzi o cenho, pego de surpresa.
— O médico disse: nada de cafeína — completou, firme.
— Eita, Noah, vai ter que sobreviver sem café, cara — Lorenzo zombou.
— Sem café? Tá doida, Hadassa? Eu funciono com cafeína correndo nas veias! — tentei pegar a xícara de volta, mas ela se afastou.
— Procure outro jeito de sobreviver, mas esqueça o café — decretou.
Suspirei, já sentindo que essa recuperação ia ser um desafio.
— Ela está certa, Noah. Se quer melhorar, precisa evitar algumas coisas — Lorenzo opinou, como se eu tivesse pedido.
Me joguei no sofá, largado.
— Beleza. Quero tratamento, mas também quero continuar vivo — resmunguei.
Lara riu e sentou ao meu lado.
— O café é sua vida, irmão? — provocou.
Olhei para ela e a arreliei, ela riu.
— Você não entenderia.
Enquanto Lara falava animada sobre seus planos mágicos na medicina, minha atenção estava completamente em outra coisa. Mais precisamente, nos dois à minha frente.
As risadas irritantes do hotel ainda estavam lá, só que agora Lorenzo parecia ainda mais à vontade. Dando em cima dela na maior cara de pau, sem o menor esforço para disfarçar. A proximidade entre os dois me incomodava tanto que minha vontade era expulsá-lo da minha casa.
Mas o que realmente fez meu sangue ferver foi o que veio a seguir.
— Nunca fui a esse restaurante — Hadassa comentou, lançando um olhar discreto para mim.
— Posso te levar pra jantar lá, o que acha? Amanhã? — Lorenzo sugeriu, sem nem piscar.
Meu olhar foi direto para Hadassa. Ela olhou rápido para mim antes de sorrir para ele.
Diz não, Hadassa. Diz não.
— Pode ser — respondeu ela.
Fechei os olhos por um segundo e soltei um suspiro pesado antes de me levantar.
— Te busco amanhã à noite então — Lorenzo confirmou.
Hadassa assentiu, tranquila.
— Bom, que tal ver esses exames logo e acabar com isso de uma vez? — falei, sem esconder a irritação.
— Tudo bem, podemos ir ao seu escritório — Lorenzo respondeu, se levantando. Mas ele não parou por aí. — Hadassa, depois do jantar podemos dar uma volta na praia, o que acha?
Travei.
O quão longe esse cara pretende ir?
— Uma boa ideia — Hadassa respondeu, sem hesitar.
Isso foi demais. Ela estava me provocando, eu tinha certeza.
Foi então que Lara se aproximou de mim e sussurrou como se estivesse revelando um segredo:
— Você tá perdendo pra ele, irmãozinho.
E antes que eu pudesse responder, ela saiu correndo pela cobertura, rindo.
Respirei fundo, tentando manter a calma. Mas Lorenzo que me aguarde.
O silêncio no meu escritório nunca pareceu tão sufocante. Eu estava acostumado ao som de ensaios, melodias preenchendo o espaço, mas agora tudo estava mudo. E eu também deveria estar. Era isso que Lorenzo ia me dizer.
Ele estava sentado à minha frente, analisando meus exames com a calma habitual, mas eu conhecia aquele olhar. Ele já sabia o diagnóstico, só estava escolhendo as palavras certas. Hadassa estava ao lado dele, segurando o tablet, mas seus olhos voltavam para mim de tempos em tempos. Ela estava preocupada, e eu sentia isso.
— A boa notícia é que descobrimos cedo — Lorenzo finalmente quebrou o silêncio. — Se seguirmos o tratamento direitinho, evitamos que os nódulos cresçam e comprometam mais sua voz.
Assenti, tentando absorver aquilo.
— O que eu preciso fazer? — perguntei, mesmo sabendo que não ia gostar da resposta.
Lorenzo folheou alguns papéis, como se precisasse confirmar algo, mas eu sabia que ele estava só me dando tempo para digerir o que vinha a seguir.
— Primeiro, repouso vocal absoluto por um mês. Sem cantar, sem forçar a voz. Falar o mínimo possível.
Meu estômago afundou. Já esperava essa resposta, mas ouvir em voz alta tornou tudo mais real.
— Depois, iniciamos terapia com fonoaudiólogo. Exercícios para fortalecer suas pregas vocais e reeducar a forma como você usa sua voz. Podemos precisar de medicações anti-inflamatórias.
Passei a mão pelo rosto, tentando não demonstrar o desespero crescendo dentro de mim.
— E se… — minha voz falhou. Engoli seco e tentei de novo. — Se não funcionar?
Lorenzo segurou meu olhar, sério.
— Se não seguir o tratamento direito, pode precisar de cirurgia. E isso… pode afetar sua voz permanentemente.
Um arrepio subiu pela minha espinha. Era como se eu estivesse vendo minha carreira, minha vida, escorrer pelos dedos. Eu não podia perder minha voz.
O silêncio se arrastou até Hadassa quebrá-lo de uma forma que me pegou de surpresa.
— Eu não vou deixar isso acontecer.
Levantei os olhos para ela, confuso.
— Vou garantir que você siga tudo direitinho — disse ela, cruzando os braços, a expressão determinada.
Soltei uma risada seca.
— Boa sorte, Noah é difícil — Lorenzo murmurou.
Eu balancei a cabeça.
— E o próximo show? Vai ter que ser cancelado? — perguntei, sentindo um nó no estômago.
— Se quiser fazer outros shows no futuro, sim, terá que cancelar. Mas se quiser que esse seja o último, pode subir ao palco e cantar livremente.
Respirei fundo, meu olhar fulminante sobre ele.
Hadassa tomou a frente:
— Vamos manter a equipe informada. Estela e Ricardo vão gerenciar todo esse afastamento.
Permaneci calado.
— Passarei todo o cronograma e medicamentos para Hadassa, e espero que você siga tudo direito, Noah — Lorenzo acrescentou, levantando-se e pegando a pasta sobre a mesa.
— Valeu, cara — respondi, acompanhando seus movimentos.
Mas, antes de sair, ele parou e virou para Hadassa.
— Dassa, foi mal, te chamei pra sair, mas esqueci do seu namorado. Não devia…
Franzi o cenho, sentindo uma irritação instantânea.
— Não estou namorando, Lorenzo, não se preocupe — ela respondeu antes que eu pudesse abrir a boca.
Arqueei as sobrancelhas.
Qual era a necessidade de Lorenzo saber disso?
Ele sorriu, satisfeito. E, como se já não fosse o suficiente, inclinou-se e depositou um beijo na testa dela.
Meu maxilar travou, a raiva queimando sob minha pele.
— Até amanhã, então — ele disse, saindo com a mesma calma irritante de sempre.
Fiquei parado ali, tentando processar tudo. Mas uma coisa eu já sabia: Lorenzo estava passando dos limites. E eu não ia ficar de braços cruzados.
Me levantei, incapaz de ignorar a tensão queimando dentro de mim. Antes de sair, Hadassa se virou para mim, seu olhar firme.
— Não se preocupe, farei o meu trabalho de cuidar para que faça os tratamentos corretamente — disse, seca.
Um gelo percorreu meu estômago.
— Hadassa… Vai sair mesmo com Lorenzo? — perguntei, minha voz havia algo que nem eu queria admitir.
Ela caminhou até a porta, mas parou por um instante.
— Eu não tenho nenhum contrato com ele, Noah — respondeu, antes de sair sem olhar para trás.
Fiquei ali, parado, sentindo o peso esmagador daquelas palavras.
Me joguei de volta na cadeira e soltei um longo suspiro, sentindo o gosto amargo da derrota.
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