Capítulo 15 | Entre Dois Olhares
Hadassa Luz
O carro deslizava pelas ruas úmidas de Orlando, o som da chuva preenchendo o silêncio denso entre nós. A madrugada parecia um véu que cobria a cidade, as luzes refletidas nas poças criavam um espetáculo melancólico que combinava perfeitamente com o clima dentro do veículo. Noah estava ao meu lado, quieto, com o olhar perdido na janela. Cada movimento seu parecia ecoar em mim, como se sua presença ocupasse todo o espaço. Eu olhava para minha janela, tentando manter o foco em algo que não fosse ele. Mas era inútil. Ainda sentia a quentura da sua mão, e, toda vez que olhava de relance, era difícil acreditar que sim, Noah Tremblay estava ali comigo. Não era um sonho.
Trocas de olhares aconteciam no reflexo do vidro, rápidas, mas profundas. Sempre desviávamos, como se aquilo fosse perigoso demais. Ele parecia perdido em pensamentos, mas eu sabia que havia algo pulsando ali, algo que nenhum de nós conseguia ignorar. Tentei me concentrar na despedida silenciosa daquela cidade que tanto me marcou, mas a tensão no ar era sufocante.
Pigarreei, quebrando o silêncio. Noah virou o rosto para mim, sua expressão inabalável, mas seus olhos me atravessaram, despertando algo dentro de mim.
— Noah, o que foi aquilo? — arrisquei, tentando parecer firme, mas minha voz traiu minha confusão. Ele franziu o cenho, a atenção completamente voltada para mim. — Você me expôs de novo. E agora o alvoroço vai ser ainda pior.
Ele hesitou, como se escolhesse as palavras.
— Eu não sei, foi impulso. — Seus olhos estavam fixos nos meus, e naquele momento eu soube que ele mentia. Havia algo mais ali, algo premeditado, porque Noah sempre sabia o que fazia.
— Você deu razão pra eles acharem que temos alguma coisa, sabia? — arqueei uma sobrancelha, tentando manter o controle.
— Eu sei. — Sua voz era baixa, mas firme.
— Como você cria um contrato e quebra suas próprias cláusulas? Como espera que eu mantenha a profissionalidade assim? — O tom saiu mais forte do que eu pretendia, mas ele não pareceu incomodado. Apenas suspirou.
— Você tem razão, me desculpe. Eu não gostei do que Ângela fez, e não quero que as pessoas pensem isso de você — a firmeza em sua voz ressoava no pequeno espaço do carro. Era grave, inconfundível, como se ele estivesse tentando me proteger de algo que eu mesma não enxergava.
— Pensar o quê? Que sou sua assistente? Porque é isso que eu sou, Noah! — Minha voz saiu trêmula, carregada de confusão e exasperação. Eu queria manter o controle, mas era impossível quando ele me olhava daquele jeito.
Noah desviou o olhar para a janela por um instante, mas logo seus olhos voltaram para os meus. Só que desta vez, havia algo diferente. O olhar dele era intenso, como se ele pudesse enxergar mais do que eu estava disposta a mostrar. Me senti exposta, vulnerável. O carro parecia menor, o ar mais pesado, e a pequena distância entre nós se tornou uma linha tênue que eu sabia que não podia cruzar.
Eu tentei me mexer, mudar o foco, mas o jeito como ele me olhava era esmagador. Meu coração disparou. Ele não precisava dizer nada. O silêncio falava mais alto do que qualquer palavra poderia.
Então ele suspirou, e aquele som parecia conter todas as palavras que ele segurava. Quando finalmente falou, sua voz veio baixa, rouca, mas com uma certeza que fez meu corpo inteiro estremecer:
— Pensar que jamais ficaria com você, Hadassa.
Minha respiração falhou. Meu cérebro tentou assimilar, mas a realidade parecia escapar por entre meus dedos. Não consegui evitar a risada que escapou, nervosa, mais por incredulidade do que por qualquer outra coisa.
— Você, Noah Tremblay, ficar comigo? — Minha voz mal saiu. — Nem se não existisse contrato. Olha só quem você é, e olha só quem eu sou. Para de brincar, Noah.
Mas ele não estava brincando. Sua postura mudou, ele se inclinou na minha direção, e a proximidade era tão intensa que fez meu estômago dar um nó. O cheiro dele, o calor que emanava, a força daquele olhar. Tudo me desestabilizava.
— Hadassa, você pode escolher — ele murmurou, sua voz tão próxima que parecia tocar minha pele. — Acreditar no que eu estou dizendo ou continuar se escondendo atrás desse contrato. É com você.
Eu queria contestar, mas as palavras travaram na minha garganta. Ele não desviava o olhar, e aquilo me consumia por dentro. Meu coração batia tão alto que parecia reverberar no carro inteiro.
— Tá falando sério? — perguntei, a voz quase um sussurro, cheia de incerteza.
— Acha que estou brincando? — Ele arqueou uma sobrancelha, mas não sorriu. Estava completamente sério, e isso me assustava mais do que qualquer provocação.
Eu precisava dizer algo, qualquer coisa, mas nada fazia sentido.
— Eu sou apenas sua assistente, Noah. Não faz sentido. Não pode fazer sentido. Você...
Minhas palavras se perderam no ar quando nossos olhares se encontraram de novo. O dele era tão intenso que parecia puxar o chão debaixo dos meus pés. Tentei recuperar a compostura, mas sabia que era inútil.
— Perdão, nem sei o que dizer — murmurei, desviando o olhar por um segundo, mas era impossível fugir do seu olhar. — Isso é inacreditável. Noah Tremblay... dizendo algo assim? Não pode ser real.
E então ele sorriu. Aquele sorriso lento, provocador, com uma confiança que parecia desmoronar cada barreira que eu havia construído. Ele não precisava dizer mais nada. Aquele sorriso falava por si só.
— Não é questão de ser real, Hadassa — ele disse, sua voz um sussurro rouco que fez minha pele arrepiar. — É questão de ser inevitável.
Naquele momento, tudo pareceu parar. A chuva lá fora, o carro em movimento, o mundo inteiro.
— Acha que sou inalcançável, Hadassa? — A voz de Noah soou baixa, mas com uma confiança desconcertante. O sorriso de canto só reforçava o magnetismo dele.
Engoli em seco. Olhar diretamente para ele seria um erro.
— Você é o Noah — murmurei, fixando os olhos na estrada à frente. — Não te vejo como um ídolo, porque só Deus merece adoração. Mas você é famoso, Noah. Distante.
— Então estou certo… — Ele soltou um riso abafado.
Franzi o cenho.
— Certo sobre o quê?
Ele inclinou a cabeça, os olhos faiscando de diversão.
— Você é minha fã.
Meu estômago deu um salto, mas me recusei a dar o braço a torcer.
— Dizer a verdade não significa que sou sua fã, Noah.
— Sei… — Ele sorriu, como se já tivesse vencido a discussão.
Revirei os olhos e decidi mudar de assunto.
— Agora me diz… por que aquele contrato esquisito? Como se tivesse medo de se envolver ou como se sua assistente fosse se apaixonar por você? — Cruzei os braços, arqueando a sobrancelha. Ele não desviou o olhar, apenas me observou em silêncio. — Ah não… — Uma realização brilhou dentro de mim, e um sorriso vitorioso surgiu em meu rosto. — Você já se envolveu com uma assistente antes, não foi?
Ele soltou um suspiro pesado e passou a mão pela barba bem alinhada, desviando o olhar pela primeira vez.
— Isso é confidencial. Cláusula do contrato — murmurou.
— Ah, entendi. Mas segurar minha mão não era uma cláusula? — Inclinei-me levemente para ele, sentindo o calor aumentar entre nós. — Cláusula dois, senhor Tremblay. Você quebrou uma regra. E agora quer se esconder atrás de outra?
Noah me encarou por um longo momento antes de um sorriso lento surgir em seus lábios.
— Você gosta de provocar, não é?
— Só estou apontando os fatos.
Ele se inclinou um pouco mais, a proximidade elétrica me deixando tensa.
— Certo. Quer jogar esse jogo? Vamos jogar.
Um arrepio percorreu minha espinha.
— O contrato diz que não pode haver toque físico, exceto em circunstâncias profissionais e inevitáveis, previamente justificadas — enfatizou cada palavra, o olhar cravado em mim.
Cruzei os braços, desafiadora.
— E segurar minha mão foi profissional desde quando?
Noah passou a língua pelos lábios, desviando o olhar para a janela como se procurasse uma resposta plausível.
— Foi profissional porque…
Ele hesitou. Ri baixo, saboreando minha vitória.
— Consegui te deixar sem resposta, Noah?
Ele riu, aquele riso rouco e gostoso que fez meu coração errar uma batida.
— Tá bom, você venceu. Me perdoe, passei do limite. Vamos recomeçar.
Levantei um dedo.
— Ah, teve outra cláusula quebrada.
Ele arqueou a sobrancelha. .
— Outra?
— Cláusula quatro. É proibido compartilhar nosso vínculo profissional com terceiros. E agora todo mundo já sabe que sou sua assistente. Meu celular está travado de gente perguntando: "Hadassa, o que você está fazendo ao lado do Noah Tremblay? Vocês estão juntos?".
Ele riu, divertido com minha imitação exagerada.
— Tecnicamente, estamos juntos… aqui, no carro. Não seria mentira.
Revirei os olhos, tentando manter a seriedade, mas acabei rindo junto.
O jogo estava cada vez mais perigoso. E cada vez mais difícil de ignorar.
— Vamos fazer o seguinte, Luz — Noah disse, sua voz com um tom misterioso que me fez prestar ainda mais atenção. — A partir de agora, nenhuma cláusula mais será quebrada. Fechado?
Ele estendeu a mão para selar o acordo.
Olhei para aquela mão estendida e então para ele, desconfiada.
— Sem toque físico, Noah.
Ele sorriu de lado.
— Pode ser daqui a dez minutos. Até lá, podemos dar uma trégua, pode ser?
O atrevimento em seus olhos me desafiava, e eu, contra toda a lógica, aceitei o jogo. Fiz cara de pensativa antes de finalmente apertar sua mão.
Ficamos ali, por segundos longos demais, de mãos dadas, sem desviar o olhar um do outro. A intensidade daquele momento me fez perder qualquer noção de tempo e espaço. Havia algo ali, algo forte e perigoso, mas nenhum de nós recuou.
Até que Noah pigarreou e, relutantes, soltamos as mãos.
— Quero propor mais uma cláusula, Noah — falei, tentando recuperar o controle da situação.
Ele ergueu as sobrancelhas, divertido.
— Estou ouvindo.
— Não me chamar de Luz.
Noah soltou uma gargalhada gostosa, daquelas que aquecem o peito sem permissão.
— Lógico que não. O contrato já foi reconhecido em cartório, Luz. Sem alterações.
Revirei os olhos, derrotada.
— Tudo bem, aceito minha perda.
Ele sorriu, satisfeito, e se acomodou melhor no banco do carro. O silêncio que se seguiu era confortável… até que ele o quebrou.
— Luz… já que temos dez minutos sem contrato, podemos fazer uma coisa.
Meu coração pulou um batimento. Um calor repentino subiu pelo meu corpo, me deixando tonta.
Engoli em seco.
— O quê?
Ele se virou para mim. E então eu me virei para ele.
Foi lento, quase imperceptível, mas a proximidade entre nós se intensificou. Noah ergueu a mão e, com delicadeza, afastou uma mecha do meu cabelo, colocando-a atrás da minha orelha. Meu coração martelou contra o peito, minhas mãos suaram. Seu toque era leve, mas me incendiou.
O ar entre nós se tornou denso, transparecendo algo que eu não deveria sentir.
— Hadassa… — Seu sussurro fez minha respiração falhar. A ponta de seu dedo deslizou suavemente pelo meu rosto, como se estivesse desenhando cada linha da minha pele. Seu olhar baixou para minha boca e voltou para meus olhos.
E então, com aquela voz baixa e grave que me desarmava, ele sussurrou:
— Se você não tivesse namorado, eu te beijaria agora.
O mundo parou. O tempo parou. Minha respiração se perdeu.
Meu coração queria explodir, meu estômago girava em um turbilhão de calafrios. Eu podia sentir cada batida errada, cada centímetro de pele em alerta.
Não havia contrato. Não havia cláusulas. Apenas Noah Tremblay, perto o suficiente para destruir minha razão.
Mas no Brasil havia alguém. E isso era o bastante para me puxar de volta à realidade.
Respirei fundo, tentando ignorar a força do momento, e sussurrei:
— Dez minutos, Noah… dez minutos.
Ele fechou os olhos por um instante, como se estivesse se contendo. Então, afastou-se.
E eu finalmente consegui respirar de novo.
Respirei fundo, me recompondo, enquanto seguíamos em silêncio rumo ao aeroporto. Mas logo precisei quebrar esse silêncio por um motivo urgente.
— Noah — chamei, fazendo-o me encarar. — Podemos parar em alguma farmácia?
Ele arqueou a sobrancelha.
— Não quer tentar mais uma vez?
Neguei com a cabeça.
— Hoje não. Só quero descansar.
Noah apenas assentiu, sem questionar.
— Sérgio, pare em alguma farmácia, por favor — ordenou ao motorista.
A parada foi rápida. Noah permaneceu no carro enquanto eu descia acompanhada de um segurança. Ainda era estranho entrar em um lugar com um homem alto e sério ao meu lado, como se eu fosse uma celebridade que precisava de proteção. Mas considerando o quanto meu nome já circulava nas mídias, talvez fosse necessário.
A farmácia estava tranquila, mas minha tentativa de compra foi frustrada. Minha receita, escrita em português e válida apenas no Brasil, não foi aceita. Meu coração acelerou. Eu precisava do remédio. Comecei a entrar em desespero.
Voltei para o carro e, contrariada, precisei recorrer a Noah.
— O que houve? — Ele me olhou de soslaio enquanto eu me ajustava no banco. — Não conseguiu comprar?
— Precisam de uma receita válida aqui — murmurei, tentando conter minha frustração.
Noah franziu o cenho, pensativo. Então, pegou o celular.
— Lorenzo é médico licenciado aqui. Posso pedir uma receita a ele se quiser.
Meu corpo enrijeceu.
— Não quero que ele saiba — disparei.
Noah soltou um sorriso de canto, como se aquilo o divertisse, mas logo disfarçou, mantendo a seriedade.
— Posso dar um jeito.
E antes que eu pudesse contestar, ele já estava discando.
O telefone chamou poucas vezes antes de Lorenzo atender.
— Fala, Noah — sua voz ecoou pelo viva-voz.
— Preciso de uma receita pra um remédio — disse Noah, direto ao ponto.
Ele explicou o nome do medicamento, e Lorenzo não demorou a questionar:
— Cara, por que quer remédio pra dormir? Tá bem?
Noah hesitou por um segundo, mas logo respondeu com firmeza:
— Quero ter comigo caso as insônias voltem. Preciso comprar logo.
A explicação foi convincente o suficiente.
— Beleza, vou te enviar no e-mail.
— Tem que ser válida aqui nos EUA.
— Sem problema.
A ligação foi encerrada, e em poucos segundos, Noah já tinha a receita em mãos. Ele checou o e-mail, satisfeito, e então virou o celular ligeiramente na minha direção, como se dissesse problema resolvido.
Eu o encarei, surpresa. Um sorriso começou a surgir em meus lábios antes que eu pudesse evitar.
— Disponha — brincou ele, lançando-me uma piscadela provocativa.
Revirei os olhos, cortando o momento antes que ele ganhasse vantagem, e saí do carro sem olhar para trás.
Dessa vez, consegui comprar o remédio sem problemas. Voltamos ao carro e seguimos para o aeroporto, rumo ao jatinho particular de Noah.
Mas ao chegarmos lá, fomos recebidos por algo inesperado.
Ou melhor, por alguém inesperado.
Lorenzo.
Ele sorriu ao me ver, um sorriso caloroso que me aqueceu por dentro.
Mas ao meu lado, Noah ficou visivelmente tenso.
E naquele instante, percebi que a viagem se tornaria bem mais complicada do que eu esperava.
⏳
Quando nos aproximamos do avião, Lorenzo se juntou a nós, trazendo consigo aquele sorriso galante que parecia nunca abandonar seu rosto. Noah, ao meu lado, estava sério, sua postura sempre imponente, enquanto eu tentava me equilibrar entre os dois, sentindo a tensão no ar.
— E aí, Hadassa, como foi assistir ao show do Noah pela primeira vez? — Lorenzo perguntou, num tom leve e divertido.
Sorri, sentindo as borboletas no estômago só de lembrar.
— Incrível! — exclamei, quase como uma fã empolgada, mas logo pigarreei e tentei me recompor. Noah, ao meu lado, sorriu de canto, mordiscando os lábios antes de desviar o olhar. — O mover de Deus foi... indescritível. Senti a presença d’Ele de uma forma tão poderosa enquanto o Noah louvava e ministrava. Era como se o céu tivesse descido sobre aquele lugar. A multidão foi completamente impactada. Noah foi usado de uma forma que nunca vi antes — eu disse, sem me conter, enquanto ambos mantinham os olhos fixos em mim.
— Não adianta falar tanto, Hadassa. Lorenzo não acredita nessas coisas — Noah provocou, lançando um olhar desafiador para ele.
Lorenzo arqueou uma sobrancelha, mas manteve o sorriso descontraído.
— Você assistiu ao show e não sentiu nada? — perguntei, fitando-o com curiosidade.
— Senti fome, Hadassa. Tanta, que quase fui direto pra uma pizzaria depois — respondeu, zombando, arrancando um suspiro de exasperação de Noah.
— Eu avisei que ele não acredita em nada do que você disse — Noah falou, enfiando as mãos nos bolsos do sobretudo e me lançando uma piscadela, claramente se divertindo.
Lorenzo se aproximou um pouco mais.
— Que tal fazermos um acordo? — sugeriu, erguendo um dedo, como se estivesse prestes a fazer uma proposta irrecusável. — Me apresente esse Deus de quem você fala tanto, Hadassa, e quem sabe eu considere acreditar.
Eu e Noah trocamos olhares surpresos, e Noah riu com incredulidade.
— Você quer que ela te evangelize agora? — Noah perguntou, o tom divertido, mas com um fundo de desafio.
— Quero que alguém que entende do assunto me mostre quem é esse suposto Criador do universo — Lorenzo respondeu, com um sorriso sarcástico que me deixou dividida entre a irritação e o fascínio.
— Não é suposto, Lorenzo. Ele é o Criador de todas as coisas — afirmei, olhando diretamente em seus olhos azuis, determinada a não recuar.
Noah riu baixo, coçando a ponta do nariz, claramente aproveitando a tensão crescente.
— Acho que vocês dois não vão se dar tão bem assim — ele comentou, provocador.
— E por que não? Por causa de uma crença? — Lorenzo rebateu, com uma calma desconcertante. — Eu respeito a dela, e ela respeita a minha. É simples assim.
— Qual é a sua crença, Lorenzo? A ciência? — Noah perguntou, estreitando os olhos. — Porque, convenhamos, nem sempre dá pra confiar totalmente na ciência. Você é a prova disso.
Minha curiosidade foi instantânea.
— Do que ele está falando, Lorenzo? — perguntei, olhando para ele, tentando entender o que estava por trás daquela afirmação.
Lorenzo desviou o olhar, claramente desconfortável, enquanto Noah insistia.
— Conta pra ela. Ela merece saber — Noah disse, sem esconder a determinação.
— Não tem por que falar disso agora. É coisa do passado — Lorenzo respondeu, relutante.
— Não vai me deixar curiosa, vai? — cruzei os braços, analisando-o com atenção. Notei seu olhar distante, como se ele estivesse mergulhando em uma memória dolorosa.
Lorenzo suspirou e olhou para o jatinho à nossa frente.
— Podemos conversar dentro da cabine? Está frio aqui fora, e não quero incomodar ninguém com essa história.
Eu e Noah trocamos olhares novamente. A ideia de entrar naquele avião fazia meu estômago revirar.
— Acho melhor deixarmos isso pra quando chegarmos ao Brasil. Dentro da cabine eu prefiro dormir — Noah sugeriu, claramente tentando me poupar.
— Você pode dormir. Eu e Hadassa ficamos conversando. Afinal, você já conhece a história — Lorenzo insistiu, o olhar cravado em mim, como se tentasse me ler.
Minha garganta secou. A última coisa que queria era revelar meu trauma com aviões.
— Na verdade, acho que vou querer dormir também — improvisei, desviando o olhar. — Noah, você pode me dar um daqueles seus remédios? Sabe, ando tendo dificuldade pra dormir ultimamente, e acho que um remédio pode ajudar.
Lorenzo me lançou um olhar desconfiado.
— Você sabe que esse remédio é forte, não sabe? — ele comentou, com um tom que soava quase como uma preocupação velada.
Senti meu rosto corar, tentando não deixar transparecer que minha desculpa era apenas uma forma de escapar de ficar acordada no avião.
A subida pelos degraus do jatinho foi lenta, cada passo um esforço contra o aperto que crescia no meu peito. Lorenzo seguia à frente, confiante, enquanto Noah estava logo atrás de mim. Eu, no meio, apertava minha bolsa contra o peito como se aquilo pudesse me proteger. Quando entramos, a cabine, embora espaçosa, pareceu encolher ao meu redor.
Meu coração começou a disparar. Olhei ao redor, à procura de um copo de água, mas minha visão estava turva pelo nervosismo. Noah, atento aos meus movimentos, foi até uma mesinha, encheu um copo de água e voltou, entregando-o com uma firmeza que me fez encará-lo.
— Hadassa — ele disse, a voz baixa e suave, enquanto seus olhos encontravam os meus. — Não tenha medo de me pedir ajuda, se precisar.
Engoli em seco, assentindo, enquanto procurava na bolsa o remédio que sabia que me ajudaria a acalmar. Lorenzo se aproximou, observando cada detalhe do meu comportamento. Ele franziu o cenho, e antes que eu pudesse reagir, colocou o dorso da mão em minha testa.
— Hadassa, está suando. Você está bem? — perguntou, sua preocupação evidente.
Senti o olhar de Noah, que agora passava a mão pela testa, enquanto mantinha a outra na cintura, claramente incomodado com a proximidade de Lorenzo.
— Tá bom... eu preciso falar — soltei, procurando uma poltrona para me sentar. Meu coração estava em ritmo acelerado, como se quisesse sair do peito. Lorenzo sentou-se à minha frente, a postura calma, enquanto Noah escolheu uma poltrona afastada, mas estrategicamente posicionada para que ele pudesse me observar.
— Pode falar, Hadassa. Estou aqui para te ajudar — Lorenzo disse, a voz com uma calma reconfortante.
Olhei para os dois, hesitante, antes de finalmente abrir minha boca e despejar tudo. Contei sobre o trauma, o pânico, o medo que me dominava sempre que entrava em um avião. Lorenzo me escutou com paciência, sem interromper, enquanto eu tentava controlar as lágrimas que ameaçavam escorrer.
Quando terminei, Lorenzo inclinou-se levemente para a frente.
— Hadassa, que tal tentar algo diferente desta vez? — ele sugeriu, apontando para o remédio na minha mão. — E se, só por hoje, você não tomasse isso e tentasse uma abordagem mais natural comigo? Consegue respirar fundo?
O pedido me pegou desprevenida. Olhei para o comprimido na minha mão, como se fosse meu único porto seguro, e depois para ele. Lorenzo estendia a mão, paciente, o olhar firme, mas gentil. Noah, do outro lado, cruzou os braços e soltou um suspiro discreto, que não passou despercebido por mim.
— Eu... não sei — admiti, minha voz trêmula. — E se eu entrar em pânico?
— Não vai. Eu prometo que estarei aqui com você, ok? — Lorenzo disse, com uma convicção tão serena que quase me convenceu na hora. Depois de um momento de hesitação, entreguei o remédio em sua mão.
Noah balançou a cabeça, sua expressão uma mistura de incredulidade e desconforto. Ele parecia prestes a dizer algo, mas permaneceu calado, embora seus olhos transmitissem um misto de frustração e preocupação.
— Tá bom... o que você sugere? — perguntei, respirando fundo para não perder o controle.
— Vamos tentar a respiração diafragmática — ele explicou, mudando o tom para algo mais instrutivo, quase hipnotizante. — Coloque a mão aqui, no abdômen. — Ele demonstrou o movimento em si mesmo, aproximando-se o suficiente para que eu pudesse ver. Senti minhas bochechas queimarem, mas segui o gesto.
— Assim? — perguntei, tentando imitar, embora minha respiração ainda estivesse rápida e irregular.
— Exatamente. Mas devagar, ok? Inspira pelo nariz, conta até quatro, segura, e solta pela boca, contando até seis. Vou fazer com você. — Lorenzo começou a guiar minha respiração, o tom de sua voz calmo e envolvente, quase como se o mundo tivesse desacelerado.
Enquanto eu me concentrava, sentia o olhar de Noah pesando sobre mim, como um fogo que me queimava de leve. Ele descruzou os braços e ajustou a postura na poltrona, a tensão evidente no seu corpo. Cada suspiro meu parecia um teste para ele, mas, mesmo assim, ele permaneceu em silêncio, observando cada detalhe, sem desviar o olhar.
— Está indo bem, Hadassa. Mais uma vez. — Ele me incentivou, seus olhos azuis fixos nos meus. — Viu só? Você está no controle.
Respirei fundo e sorri timidamente, sentindo meu peito aliviar aos poucos. Antes que eu pudesse expressar meu alívio, Noah se inclinou na poltrona ao lado, o maxilar visivelmente tenso.
— É ótimo, Lorenzo, mas ela ainda está em um avião. E a turbulência não vai esperar ela fazer yoga. — A firmeza na voz dele era inegável, mas havia um tom preocupado que fez meu coração acelerar de novo, por um motivo diferente.
Lorenzo soltou uma risada curta e respondeu com a calma de sempre:
— Relaxa, Noah. Vamos chegar lá. Ela está indo bem.
O olhar de Noah era um contraste direto com a tranquilidade de Lorenzo. Ele se inclinou para frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e me encarou.
— Hadassa, você tem que fazer o que te deixa confortável. Se o remédio for o que você precisa, tudo bem. Você não precisa provar nada para ninguém.
Os dois trocaram olhares por um instante, como se houvesse algo não dito entre eles. Meu coração bateu rápido de novo, dessa vez era por aquele jogo silencioso de forças, onde, de alguma forma, eu estava no meio.
— Mas você também pode vencer isso, Hadassa. — A voz de Lorenzo era suave, quase hipnotizante, enquanto ele se inclinava um pouco mais para mim. — Quem decide aqui é você.
O som das turbinas subiu de volume, e minha respiração começou a acelerar de novo. Apertei os braços da poltrona com força, minhas mãos suando frio. Lorenzo manteve sua postura calma, enquanto Noah me observava com intensidade, como se tentasse prever meu próximo movimento.
— Hadassa, olha para mim — Lorenzo pediu, sua voz ainda tranquila. — Só respira, lembra? Como eu te ensinei.
Balancei a cabeça, tentando focar, mas o som e o peso do ambiente pareciam me sufocar.
— Lorenzo, isso não está funcionando... — minha voz saiu em um sussurro quase inaudível.
— Hadassa, escuta — Lorenzo inclinou o corpo para frente, sua voz baixa e firme tentando me ancorar. — Você está segura. Não precisa lutar contra isso. Aceita o que está sentindo, mas lembra que vai passar. Eu estou aqui.
As lágrimas começaram a subir, mas antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, Noah se levantou abruptamente. Ele atravessou o pequeno corredor do jatinho e se ajoelhou ao meu lado, como se quisesse bloquear o resto do mundo.
— Hadassa, olha para mim. — Sua voz grave carregava um tom de urgência e empatia. — Só olha para mim. Foca nos meus olhos.
Hesitei, mas meus olhos encontraram os dele. Ao contrário de Lorenzo, cuja presença transmitia calma, Noah tinha uma intensidade que mexia com os meus sentidos. Era como se ele sentisse cada parte da minha dor e estivesse determinado a tirá-la de mim. Eu respirei fundo, como Lorenzo havia dito, mas era Noah quem me mantinha ali, confiante.
— Vai ficar tudo bem — ele continuou, a mão pairando perto da minha, sem tocar, mas perto o suficiente para que eu sentisse o calor dela. — Estou aqui. Você não está sozinha.
Lorenzo observava em silêncio. A tensão entre os dois era quase tão forte quanto o meu medo inicial. Ainda assim, a turbulência interna que me esmagava começou a ceder. Aos poucos, minha respiração foi se normalizando. Quando soltei um suspiro longo, senti como se uma tonelada tivesse saído dos meus ombros.
— Posso te dizer uma coisa? — Noah perguntou, sua voz agora mais suave.
Eu assenti, ainda tentando me estabilizar.
— Você consegue dominar o seu psicológico. É só saber como jogar contra ele.
Franzi o cenho, confusa.
— Como assim?
— Sua mente quer que você ceda ao medo, mas você pode reprogramá-la. Leia um livro, assista a algo, ouça uma música... finja que não está em um avião. Não precisa de remédio, Hadassa. Você só precisa vencer. — Ele fez uma pausa, e sua voz ficou ainda mais firme. — Seja forte...
— E corajosa — completei, interrompendo-o. Minha voz saiu mais firme dessa vez, como se eu quisesse provar a mim mesma que era possível.
Ele sorriu, satisfeito.
— Isso mesmo. E sabe de uma coisa? Toda vez que estiver dentro de um avião, lembre-se: Daniel estava na cova dos leões e não foi tocado por nenhum deles. Sadraque, Mesaque e Abednego estavam no meio do fogo e não se queimaram. Você está em um avião e não vai cair. Porque o mesmo Deus que esteve com eles também está com você. Está bem?
Aquelas palavras me atingiram profundamente, como se acendessem uma luz em meio à escuridão. Um sorriso tímido apareceu no meu rosto enquanto eu absorvia o que ele dizia.
— Amém — murmurei, sentindo a paz se infiltrar em mim aos poucos.
Noah me devolveu o sorriso, e, por um instante, o mundo pareceu girar mais devagar.
— Quer me acompanhar em um filme, Hadassa? — Lorenzo perguntou, interrompendo o momento. Ele segurava um iPad grande nas mãos, um sorriso descontraído no rosto. — Uma comédia é perfeita para distrair a mente.
Olhei para ele, tentando avaliar o convite, mas meus olhos involuntariamente voltaram para Noah.
— E você, Noah? — perguntei, esperando uma resposta que de alguma forma pudesse ancorar aquela conexão que parecia ter se formado.
— Podem assistir. — Ele deu um pequeno sorriso, mas seu tom era mais distante agora. — O show de ontem foi cansativo. Vou descansar um pouco.
Ele se levantou e caminhou até uma cabine reservada, desaparecendo pela porta. Lorenzo olhou para ele por um breve momento antes de virar sua atenção totalmente para mim, seus olhos com uma mistura de interesse e algo que eu não consegui decifrar.
Aceitei o convite de Lorenzo e tentei focar no filme. Ele fazia comentários leves e engraçados, tentando me envolver, mas minha mente vagava. Voltava para Noah, para o avião, e para tudo o que me esperava quando eu chegasse ao Brasil. Antes que percebesse, o peso do cansaço me venceu, e adormeci, embalada pelo som das turbinas e pelo alívio de ter enfrentado mais um medo.
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