Cabra Cabriola
"Bença, vó", Gabriel sorri ao encontrar sua avó sentada no sofá, assistindo ao Jornal Nacional.
"Deus te abençoe, fi", ela responde com ternura, estendendo a mão para o menino, que a agarra com carinho.
A casa da vó era seu lugar preferido, onde ele se sentia verdadeiramente em casa. Tudo ali era tão "umadinho", como ele costumava dizer quando pequeno, trocando "arrumadinho" por "umadinho", para diversão de todos. Mesmo hoje, a vó ainda brincava com isso, e Gabriel não podia deixar de fazer um biquinho, orgulhoso por já ter 7 anos. Sempre que podia, mostrava seus 7 dedos, dizendo: "Vó, já tenho assim de anos".
Gabrielly, sua irmãzinha, um ano mais nova e tão esperta quanto ele, chega logo depois.
"Vóóóóóó!", ela exclama animada, correndo para os braços da senhora.
Vó Laurinda, com seu jeito amoroso, a pega no colo e a coloca ao lado dela no sofá.
Gabriel, sempre atento aos detalhes, pega a grande almofada com estampa de selva que ficava num canto do tapete da sala e a arrasta até o centro do ambiente, com um esforço que mostra sua determinação, antes de se sentar sobre ela, ao lado da avó.
Gabrielly se inclina na direção da vó, apontando para o irmão e contando, travessa, que ele a chamou de tonta durante uma brincadeira.
"Ai, Bié!", a vó faz um biquinho triste, "Por que ocê fez isso?"
Gabriel olha para Gabrielly com uma expressão de incredulidade, pois já havia pedido desculpas a ela e suplicado para que não contasse para a vó. Ele começa a se explicar, gesticulando com as mãos.
"Estávamos jogando bola, vó", ele começa, "E a Tata chutou a bola no portão do vizinho. Ela me acusou injustamente."
A menina, vendo que a verdade estava sendo revelada, olha para a vó com um olhar suplicante e admite: "Foi sem querer, vó. A culpa foi do Biel por não defender."
Vó Laurinda faz um gesto de reprovação para Gabrielly, a quem chama com afeto de "Bielly", e explica suavemente que é feio mentir, pois a Cabra Cabriola, segundo as histórias que ela viveu, aparece para levar as crianças que não dizem a verdade.
Gabriel, com seus olhinhos curiosos, inclina a cabeça para o lado e pergunta para vó quem era essa Cabra Cabriola. A vó, vendo o interesse dos netos, se ajeita melhor no sofá, pronta para começar uma história.
"Ai, menino", ela começa, com um tom meio misterioso. "A Cabra Cabriola? Ela mora lá no sertão do nordeste, lá onde o sol queima tudo. Dizem que aparece quando as crianças não escutam os mais velhos."
Gabrielly, toda animada, pergunta: "Vó, onde fica esse nordeste?"
A vó sorri, achando graça da curiosidade dos pequenos. "Ah, minha filha, é lá bem longe daqui."
Gabriel, sentindo-se valente, se levanta na almofada com ar decidido. Aponta o dedo com seriedade, como só uma criança sabendo-se importante faz. "Eu não tenho medo de cabra nenhuma, vó!"
O coração da vó se enche de orgulho ao ver seu netinho crescer com tanta coragem. Ela olha para os dois com carinho e pede para que prestem muita atenção, pois está prestes a contar uma história.
Ela começa então a contar.
"Ah, meus fi, muito tempo atrás, quando eu era moça, meu pai me levou pro interió do Piauí, pra cortá cana e colhê argodão. Naquele tempo, a gente ia de charrete, e demorava um tempão pra chegá. Sempre fazia um calorão, e as casa eram de barro batido, com janela e porta de madeira rústica. Essa mesma madeira a gente usava pra fazê lenha e uns banquinhos simples, que era tudo o que tinha naqueles tempo."
Gabrielly, curiosa como sempre, interrompe a vó e pergunta que argodão era esse. Laurinda sorri, lembrando-se dos tempos antigos, e explica: "Era o argodão que a gente plantava e colhia, minha filha. Não é o mesmo que a vovó usa pra limpá unha não, isso é outra história!" Gabrielly arregala os olhos, surpresa, e pergunta se aquele argodão não vem direto do potinho rosa no quarto da vó. Laurinda ri, com um riso gostoso de quem viveu muito, e diz: "Ah, não, minha fia, o argodão que a gente colhia era bem diferente!"
Então, Laurinda continua:
"Nóis se hospedemo na casa da cumadi Tereza e do cumpadi Airton. Eu ajudava a cumadi a fazê vassoura enquanto Airton e meu pai colhia argodão. Sempre perto do meio dia, a cumadi deixava as marmita prontas na mesa, e eu levava pra plantação de argodão, pra mode entregá pro meu pai e pro Airton."
"Airton e Tereza tinha dois filhos, Margarida e Sandro, o menino tinha 11 e a menina 9. Os dois brigavam muito, e diziam um monte de palavrão feio. A cumadi Tereza sempre falava pros dois que o dia que a Cabra viesse pegar eles, ela não iria defender, e os dois sempre riam da mãe e zombavam. Um belo dia, eu tava passando na beira de um córrego, peguei um trajeto diferente pra chegar na plantação."
"Tava quase atravessando o córrego todo quando enrosquei a sandálha numa das pedras. Quando olhei pro pé, percebi que a água tava descendo de outra cor do córrego. Quando olhei lá pro fundo do mato, de onde a água vinha, vi um trem agachado comeno uma criança. Boa parte da criança já tava devorada, e o resto que sobrava tava coberto de sangue, e como tava longe, num consegui ver muitos detalhes, mas sabia que era uma criança."
"Comecei a rezar, dizeno que tava repreendido em nome de Jesus, e que aquilo não arcançava eu, porque Deus era maior. Tirei minhas sapatilhas e corri o mais rápido que consegui, deixei os carçados lá no córrego mesmo. Quando cheguei na plantação, comecei a gritá pelo pai, que veio correndo ligeiro ao meu encontro junto com Airton e mais uns homi que trabalhavam lá naquele momento. Contei tudo pra eles, assustada e chorano de soluçar. Meu pai falou que era pra eu voltar pelo caminho que eu conhecia e num era nunca mais pra eu vir por outro lugar. Airton perguntô se eu tinha orado, respondi que sim. Então Airton, pareceno mais carmo, disse que nada ia acontece comigo. Voltei pra casa, rezano o caminho todo e num olhano pra nenhum lado que num fosse pra frente, e o caminho todo sentino alguém observano eu."
Gabriel e Gabrielly ouviram atentos. Gabriel, com a voz tremida, interrompeu: "Mas, vó, por que a cabra apareceu pra senhora se quem brigava e xingava era os filhos da Tereza?"
Laurinda suspirou e continuou: "Ah, meu neto, foi um dia danado. Depois que todo mundo jantou e dormiu, fui acordada por um barulho alto e os berro da Tereza. Saí correndo pra sala e vi a mesma criatura escalando a parede, segurando a Margarida pelos cabelo. Foi a coisa mais horrorosa que já vi. O bicho gritava e tremia a casa, chacoalhando a Margarida como se fosse uma boneca de pano. Airton e meu pai tentava bater na coisa com facão, mas ela chutava eles toda vez que chegavam perto. Tereza berrava o nome de Deus enquanto segurava o Sandro atrás dela. A criatura pulou da parede e correu pra fora, arrastando a Margarida pelos cabelos, e se enfiou no mato, deixando um rastro de podridão e sangue. Airton e meu pai correram atrás, mas nunca mais Margarida foi vista."
Gabriel e Gabrielly ficaram em silêncio, absorvendo cada palavra. Laurinda olhou para os netos e disse: "Essa foi a última vez que vi a Cabra Cabriola, e nunca mais vortei naquele córgo."
A sala ficou em silêncio por um longo minuto. Os irmãos prendiam o ar, com medo até de respirar. Gabriel estava todo arrepiado, seus olhos percorrendo cada centímetro da sala da avó, à procura da cabra. Gabrielly não estava diferente, seus pequenos olhos parecendo que iriam saltar das órbitas.
Gabrielly então, mesmo estando com muito medo, se levantou do sofá, colocando o corpo de lado e escorregando para conseguir descer. Ela foi silenciosamente em direção ao irmão e se agachou ao seu lado, abraçando-o e pedindo desculpa. Gabriel, esperto e não querendo ser comido pela cabra, abraçou a irmã forte e pediu desculpas novamente por tê-la chamado de tonta, prometendo que nunca mais faria isso.
A avó observou a cena contente, orgulhosa por ver seus netos assim, unidos. Ela então se levantou e perguntou: "Quem vai querê come bolachinha com café com a vó?" Os dois irmãos se levantaram, agarradinhos e atentos, observando tudo enquanto se dirigiam para a cozinha.
A avó deu risada sozinha com a cena. Ela se levantou para apagar a luz da sala enquanto cantarolava baixinho, feliz da vida, vendo que a história tinha feito os netos refletirem e se aproximarem ainda mais.
"Cabra cabriola,
Corre montes e vales,
Come meninos a pares
Tamêm te comerá a ti
Se cá chegares
Cabra Cabriola,
Não tem dó nem piedade,
Anda só na escuridade,
Vigiando a criançada
E sumindo na noite cerrada.
Vó contava essa história
Pra que eu não saísse do trilho,
Cabra Cabriola assombra
Até o mais valente filho,
Se escutar teu choro,
Ela vem e faz o estribilho.
Nos casebres, nas veredas,
Onde o vento canta triste,
Lá se ouve o lamento,
De quem da cabra não desiste,
Quebrando o silêncio da noite,
No sertão, ela persiste.
Cabra Cabriola,
Monstra de olhar malvado,
Se te encontra desobediente,
Leva-te pra um canto isolado,
E no seu mundo sombrio,
Nunca mais serás achado."
Escrito por: Gabriel
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