Capítulo Quatro
Todos nós olhamos para Kalil. Ainda escorre um pouco de sangue dos seus ferimentos, mas ele parece razoavelmente bem. Kalil é forte, dificilmente se abate. Já sobreviveu à picada de uma cobra e muitas outras coisas potencialmente mortais. Não fiquei nem um pouco surpresa quando ele disse ter conseguido se livrar do cobrador com a faca.
— Uma picape. — Kalil diz simplesmente, dando de ombros.
Eu e Annalena o encaramos sem entender.
— Ah, elas não entenderam. — Gregore revira os olhos.
— Uma picada? — Annalena encara o namorado, esperando que ele se explique.
— Que diabo é uma picape? — inquiro.
Antes que Kalil possa explicar, Stelian surge na entrada do casebre com o rosto pingando de suor.
— Eles estão vindo. Vão chegar em questão de minutos. — o pavor se apodera das feições cansadas de Stelian, que parece não ter sido ferido, mas nitidamente até esgotado. Ele não se demora aqui, rapidamente bate em retirada, indo avisar na certa os outros da surpresa indesejada.
— Quem? Quem está vindo? — Annalena pergunta, alarmada.
— Os cobradores. — Greg diz, pasmo. — Merda, pensei que teríamos até de manhã! Não temos tempo para planejamentos, Kalil. Você está pronto?
Kalil se limita a acenar com a cabeça, e em questão de segundos ele começa a correr, puxando Annalena e eu. Gregore o acompanha lado a lado. Perdida que estou, demoro cerca de um minuto para entender o que está acontecendo. Os cobradores voltaram antes do previsto e vão chegar a qualquer momento. A visita noturna só tem um objetivo: terminar o que começaram à tarde.
A fumaça baixou um pouco, então consigo ver o que está ao redor com mais facilidade. A noite é tenebrosamente escura, sem estrelas. O calor sufocante dos múltiplos incêndios impede que o frio chegue até nós, mas, se não fosse por isso, seria uma noite congelante.
O silêncio que tomou Kolom quando a confusão cessou agora parece um passado distante. Mesmo os poucos sobreviventes agora se agitam, cientes da aproximação do inimigo. Os feridos soltam gemidos de desolação, inaptos para defenderem as próprias vidas. Meu coração se aperta de pavor e compaixão. O que será feito deles? Será mesmo que a frieza e a monstruosidade desses desgraçados que nos esmagam são tamanhas ao ponto de matar a sangue frio pessoas prostradas no leito, indefesas e maltratadas?
Tudo isso se passa pela minha cabeça enquanto sou arrastada por Kalil para além dos casebres, rumo ao rio contaminado. Ouço um som cortante de rodas e disparos despontar em algum lugar próximo. São eles. Reconheço esse som a quilômetros de distância. Já o ouvi tantas vezes que chega a ser uma cantiga ressonante no fundo da minha memória. Eles estão vindo pelas colinas, ao norte de Kolom. Seus veículos monstruosos riscam a grama morta e descem ao vale, prontos para destruir qualquer centelha de vida que encontrarem pela frente.
— Precisamos voltar e ajudar os outros! — tento transpor minha voz além dos ruídos em volta. — Eles estão desamparados!
Kalil não para de correr, continua me puxando consigo. O riacho se estende a cinquenta metros, exalando um odor podre de materiais tóxicos e cadáveres. O vômito sobe à boca e por pouco não despejo todo o conteúdo do meu estômago nas costas de Kalil.
— Kalil! Pare! — puxo meu braço com força, forçando-o a parar. Gregore e Annalena olham para mim com perplexidade. — Não podemos deixar os outros para trás, temos que ficar e ajudá-los! — minha respiração sai descompassada, em sopros.
— Ficou louca? Vamos morrer! — ele berra. Ele olha por sobre os meus ombros e algo que ele vê parece assustá-lo. Olho para trás e vejo um dos veículos enormes avançar pela rua principal do vilarejo, onde todos os feridos e sobreviventes se agruparam após a chacina. O som de disparos é ensurdecedor. Cada um vem seguido de um grito esganiçado, uma vida sendo tirada. — Anda logo! — ele volta a me puxar. Greg e Anna já alcançaram a margem do riacho e parecem estar pensando no que fazer.
— Não! Como vocês podem simplesmente abandonar os outros? Eles são nossa família! — lágrimas descem em cascata pelo meu rosto. Só consigo pensar nos rostos que vi tantas vezes nesse lugar, nas pessoas inocentes que não faziam nada além de trabalhar incansavelmente, apenas para ter o que comer e vestir. Todas aquelas pessoas, reféns de um grupo sórdido de homens que se autodeclaravam donos de tudo o que era nosso, tomando posse de cada pequena coisa que conquistávamos.
Nossa terra. Nossa colheita. Nossos casebres.
Tudo reduzido a nada.
O som dos disparos se agiganta logo atrás de mim, e eu sei que não demorará muito até que a mira de uma daquelas armas se dirija a mim. Não sinto vontade de lutar pela minha vida, uma vez que tudo o que eu mais amo agora não passa de uma lembrança. Nada mais justo do que me juntar a eles e enfrentar o destino que nos foi reservado.
Mas Kalil parece alheio a tudo o que eu digo.
— Maldição, Alethea! — ele grunhe. Annalena grita por ele logo adiante. — Você não me dá escolha.
E, com essas palavras, ele se abaixa, pega um pedaço de viga retorcido que jazia no chão e o acerta na minha cabeça, sem nenhuma cerimônia ou piedade, e eu desfaleço, minha consciência cedendo à escuridão.
***
A primeira coisa que percebo é um sacolejar ritmado fazendo minha cabeça bater repetidas vezes numa superfície dura. Sinto uma dor latejante subir desde a minha nuca até o topo da minha cabeça. A cada sacolejo uma pontada nova me faz estremecer.
Tenho uma vaga noção de estar deitada, e aos poucos começo a sentir minhas mãos e meus pés. Com um gemido, levo uma mão à minha cabeça.
— É melhor não tocar. — ouço a voz adocicada de Annalena dizer em algum lugar próximo. — É um calo gigantesco.
Forço meus olhos a abrirem. O que vejo é uma escuridão difusa, cheia de sombras se avolumando a intervalos irregulares. O céu enegrecido se estende até onde minha visão alcança. Devagar e desajeitadamente, ergo meu tronco para conseguir me situar. Minha cabeça mais parece um bloco de chumbo, incapaz de responder aos meus comandos.
Só então reparo onde estou. Annalena e eu estamos sobre uma superfície enferrujada firme. Alguns sacos de pano se encontram num canto, rolando de um lado para o outro enquanto a besta trambeca pelo caminho. As laterais são do mesmo material resistente, impedindo que nós duas caiemos pela trilha estreita e irregular por onde passamos. Árvores esparsas cercam o caminho, conferindo sombras fantasmagóricas ao cenário.
Estamos em movimento, então logo constato que a caçamba em que nos encontramos é um veículo. Olho para trás, despertando dores agudas no meu crânio, mas resisto ao impulso de me deitar novamente. Vejo, através de um vidro, a silhueta de Kalil e a de Greg dentro de uma espécie de cabine, onde ambos estão sentados. Kalil conduz o veículo, sentado à esquerda, enquanto Gregore aponta para o mapa e faz observações.
Olho em volta e não vejo nada além das árvores ocasionais e da noite escura. Essa vegetação não se parece muito com a que eu estava acostumada a ver em Kolom, então deduzo que nos afastamos bastante de lá. Longe da fumaça causada pelo incêndio, o vento frio estapeia meu rosto e me causa calafrios.
— Onde estamos? — pergunto para Annalena. Ela está encostada numa saliência na lateral da caçamba, onde imagino que fique uma das rodas. — Céus, você está fedendo.
O cheiro forte emana das roupas dela, que estão cobertas por uma substância oleosa e mais alguma coisa que não consigo identificar.
— É cheiro de coisa tóxica e defunto. — ela contorce o rosto numa expressão de nojo. — Tivemos que atravessar o rio a pé.
— Então por que não estou fedendo também? — examino rapidamente meu estado. Apesar da lama, da sujeira nas barras da minha calça, das marcas de sangue (provavelmente da minha mãe) e do cheiro de queimado, estou razoavelmente cheirosa. Perto do odor que Annalena exala, até os ratos que eu costumava caçar, mesmo depois de mortos e esmagados na minha bolsa, cheiram bem.
— Porque Kalil te carregou nos braços, desacordada. — ela bufa, olhando-me com irritação. — Tudo porque você deu um chilique no meio do tiroteio.
Meu coração se agita com a menção do tiroteio. O que será que foi feito daquelas pobres pessoas? Será que alguém sobreviveu? Não, impossível. Não havia ninguém para vir em seu socorro. Morreram num estado de completo abandono nas mãos daqueles monstros desalmados. Lágrimas ameaçam saltar dos meus olhos, mas as contenho. Se eu começar a chorar de novo, não vou mais conseguir parar.
E quanto ao papai? Se existia a mais remota chance de ele ainda estar vivo, quem sabe soterrado nos escombros, agora já era praticamente inconcebível. Kolom já era. Mas continuo me apegando à esperança infrutífera de que, talvez, ele tenha escapado quando tudo começou, ao meio-dia. Quem sabe ele não se arriscou pela floresta?
Só posso torcer para que ele tenha conseguido fugir. Ele sempre foi valente, tenho fé nele.
— Pensei que ele fosse me matar. — massageio o enorme galo na minha cabeça. A dor me faz estremecer.
— Não seria uma má ideia. — ela diz sem cerimônia. — Já que você quase o matou quando começou a fazer escândalo. Mais um minuto ali e vocês dois estariam mortos.
— Eu não consegui abandonar os outros. Não sou tão fria assim. — digo rispidamente.
— Quando é uma questão de vida ou morte, você não pode usar o coração para tomar decisões. Você tem que usar a cabeça.
— Vou me lembrar disso da próxima vez em que assassinarem todas as pessoas que eu conheço.
Ela revira os olhos verdes, impaciente.
— Não vou discutir heroísmo com você. Francamente. O importante é que conseguimos escapar. Tivemos que atravessar o rio nos esquivando dos corpos. Foi um horror. Então Kalil nos guiou pela margem oposta do rio por um quilômetro mais ou menos. Felizmente nenhum cobrador nos viu. Foi quando encontramos a picape.
— Então isso é uma picape. — aponto para a coisa grande e barulhenta em que estamos. A ferrugem desbotou completamente a cor do veículo, que num passado distante deve ter sido vermelho. O motor ruge como se estivesse sendo açoitado. — Como Kalil arranjou essa coisa?
— Ele disse que pertencia a um cobrador, mas que não funcionava mais, então foi deixada para trás. Seu pai a encontrou abandonada e tentou consertar. Isso levou anos.
— Nunca suspeitei. — digo, pensativa. Não me lembro de ver meu pai consertando um carro. Ele nem sequer mencionou que tinha encontrado um.
Agora vejo que eu estive sempre à parte das coisas que aconteciam à minha volta. Não me surpreende que o ataque tenha acontecido enquanto eu zanzava pela floresta sem me preocupar com as horas. Não poderia ser diferente comigo.
— Quando Kalil fez dezoito anos, seu pai deu a ele de presente. Estava praticamente consertada. Kalil só precisou de mais alguns meses para reunir os materiais necessários para ressuscitar essa belezinha. É claro que ele não podia sair por aí dirigindo uma picape. Ninguém tem carros em Kolom. Isso chamaria a atenção dos cobradores. Eles poderiam acusar Kalil e o seu pai de roubo ou coisa assim. Aqueles loucos são capazes de tudo.
— Então ele manteve segredo esse tempo todo. — constato. — Mas para que diabos ele iria querer uma picape? Quero dizer, se não podia utilizá-la em Kolom...
— Nunca se sabe quando você vai precisar de uma picape. — ela deu de ombros. — É bom estar prevenido.
De certa forma, ela estava certa. Mesmo que a princípio o veículo fosse inútil para o modo de vida que levávamos, era bom ter. E, conhecendo Kalil como eu conheço, sei que ele provavelmente tinha planos para o futuro. Ele sempre se queixou da vida miserável que levávamos, sempre quis saber o que havia além das colinas e da floresta. Mesmo não tendo conhecimento do mapa, ele sempre acreditou que havia algo além.
Não preciso perguntar a ele ou a Annalena para saber que ele tinha planos de ir embora algum dia. Ele já tinha o meio. Só precisava reunir a coragem e as pessoas que gostaria de levar consigo. Eu estaria entre essas pessoas? Mamãe e papai estariam? Ou ele se limitaria a levar Annalena, o amor de sua vida?
Enquanto minha mente viaja pelos acontecimentos recentes e por outros que poderiam ter acontecido caso não fôssemos massacrados por mãos de ferro, a noite fria vai dando lugar gradualmente à aurora, o céu tingindo-se de um azul turquesa até ser tomado por um alaranjado imponente.
Com a luz do sol, sou capaz de observar com mais atenção o caminho a nossa volta. A picape serpenteia por uma estrada de terra por entre árvores de médio porte. Pássaros grandes sobrevoam a paisagem, provavelmente buscando comida fresca no solo. Espero que eles tenham intolerância à carne humana.
À medida que o carro avança, vamos deixando para trás as colinas que tanto nos esconderam do mundo. Daqui elas mais se assemelham a meros morros no horizonte. Pequenas e insignificantes, assim como a vida que nós tínhamos lá. À frente há apenas uma planície infinita, pontilhada por árvores e um solo também alaranjado, misturando-se com o amanhecer. O verde parece se desbotar aos poucos, assemelhando-se à vegetação de Kolom, que era marcada pela areia vermelha e pelas árvores esquálidas, retorcidas e com aspecto de queimadas.
Apesar da empolgação que fervilha dentro de mim diante da evidente partida, da perspectiva de que há mais muito além do meu conhecimento, sinto um aperto ininterrupto no peito. E quanto a tudo que deixamos para trás? E quanto às pessoas que nunca mais verei? É justo que tenhamos uma oportunidade de viver enquanto nossas famílias sequer tiveram a chance de lutar pela própria sobrevivência?
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