▓ CAPÍTULO VINTE E SEIS ▓
— Segunda - feira, meu bem, achei que nunca mais fosse te ver — penso alto ao abrir os olhos, me despedindo do feriado prolongado mais perfeito que vivi. As saídas de Dom para resolver suas questões acabaram sendo um pouco inconvenientes, mas ele soube redimir a sua ausência a cada retorno.
Eu me espreguiço, afofando Branca em meus pés. Essa chácara parece a evolução do almoxarifado. Sou tão feliz quanto naqueles dias, antes de Coalhada destruir tudo, só que agora em um lugar que parece um sonho, onde é possível fugir realmente do mundo e ser feliz.
Dom ainda dorme ao meu lado. Ele não tem hora para acordar, já que não tem para dormir. No dia anterior, chegou de madrugada e apagou, esse feriado foi puxado para o dono do morro. Ele teve que se dividir entre os nossos passeios, assim como os seus negócios. Tentei aliviar o lado dele, mas fez questão de me tratar como uma rainha.
A luz do sol invade o quarto pelas janelas atrás de mim. A cabeça de Dom repousa sobre o travesseiro, colorindo a fronha branca com os seus fios ruivos. Ele parece tão inofensivo dormindo, com suas sardas pintando o seu rosto e os cabelos bagunçados.
Branca engatinha até o espaço entre nós, acordando Dom com o seu movimento. Ele passa o braço por cima dela, entrelaçando os dedos nos meus, fechando os olhos em seguida. Assim que o vejo volta a dormir, levanto-me disposta a enfrentar a vida. Essa semana promete muitos acontecimentos.
Em uma hora estou pronta para ir trabalhar. Pego a minha valise guardada ao lado da mala e, pela primeira vez, depois do desastroso encontro com Otávio no swing, eu penso nele. Talvez esteja na hora de comprar uma bolsa executiva nova, não quero ter nada que me traga a lembrança da sua existência.
Saindo do closet, eu me aproximo da cama, invejando a sorte que Branca tem por poder ficar mais algumas horas na cama com Dom. Afundo o colchão ao sentar ao seu lado para me despedir. Não queria despertá-lo, contudo, sei que ficará chateado se eu sair de fininho. Colo o meu rosto no dele e sussurro em seu ouvido:
— Dom..., estou indo para a Câmara.
— Queria te pedir para ficar, mas sei que será em vão — balbucia com a voz rouca. — Não pode pedir uma licença para lua de mel ou essas coisas?
— Nem somos casados. — Dou um risinho. Tento afastar o meu rosto e sou impedida. Dom me puxa para a cama. Caio por cima de Branca, que se afasta para abrir espaço.
— Podemos resolver isso agora — fala, ajeitando os meus cabelos. — Você disse que não queria que a gente se soltasse mais.
— Você é um maluco, sabia? — digo risonha.
— Não está levando o meu pedido a sério? — Dom roça o nariz no meu.
— Tem tanta coisa acontecendo...
— Sempre vai ter alguma coisa acontecendo, pelo menos comigo. — Dom encara o teto, soltando um suspiro pesado. — Vai falar em plenário hoje?
— Tenho outros planos.
— Otávio vai abafar tudo o que fizer, até achar que sua única saída é voltar com ele — observa. — Vi muito bem que o cara tem certeza que você vai arregar uma hora ou outra e me deixar.
— Isso foi para mexer com a sua cabeça — avalio. — Mesmo sabendo que ele vai querer derrubar tudo o que eu fizer, preciso tentar. E se não for Otávio, será outro. A política é um ninho de cobras, mas não se faz um omelete sem quebrar os ovos — tento tranquilizá-lo.
— E uma andorinha só não faz verão — retruca.
— Quem disse que estou só?
— Está contando com a jornalista?
— Por enquanto. Eu pretendo conseguir mais aliados — digo, sem a menor ideia de quem seja. — Não tem nenhum para me oferecer?
— Sabe que eu não consigo influenciar as pessoas sem ameaças ou propina. Se estiver interessada...
— Esquece. — Dou um beijo rápido em Dom. — Agora preciso ir. — Tento me levantar e ele me impede.
— Não pode ficar só mais um pouco? — Sobe em cima de mim e pressiona a sua ereção em minha intimidade.
— Doomm — protesto com um gemido incoerente. — Eu preciso ir, é sério.
— Não é fácil ser acordado por você toda cheirosa. — Beija o meu pescoço, atiçando ainda mais o meu corpo. — Mas, como sou um cara legal, vou esperar pacientemente a sua volta. Ou melhor, podemos nos encontrar na Marina do Ty, porque quero repetir o nosso passeio de barco.
— O passeio foi perfeito, apesar de quase não ter me deixado olhar o mar. Mal saímos da cama — digo entre sorrisos.
— Combinado, então?
— Sim — confirmo e ganho um beijo rápido.
— Vou te acompanhar até o seu carro — diz, saindo de cima de mim.
Dom me ajuda a levantar da cama e vamos até o meu carro abraçados, acompanhados por Branca. Depois de uma longa despedida, saio da chácara tão envolvida por ele, que esqueço de pensar melhor sobre todas as questões que vou enfrentar no meu expediente.
O dia está fresco, mesmo com um céu sem nuvens e um sol impiedoso. Gosto de dirigir com o ar-condicionado desligado para sentir o vento da manhã entrando no carro, soprando em minha nuca, bagunçando os meus cabelos. É como se estivesse brincando comigo.
Estaciono o carro no pátio ao lado da câmara e sigo para o meu gabinete, pisando em nuvens de tão feliz que estou. Andando nos corredores do prédio, vejo Torres, esse é o momento perfeito para abordá-lo, só preciso esquecer que ouvi quando disse a Otávio que cogitava me matar. Eu me aproximo, ele me olha interessado e aproveito a oportunidade.
— Oi! — cumprimento com a voz doce, e ele sorri de um jeito lascivo. Coloco na minha mente que preciso ser prática, pensar nos meus objetivos. — Já nos conhecemos?
— Na verdade não, mas sei quem a doutora é.
— Isso é injusto, já que não sei quem é. — Dou corda ao homem, que se fosse um animal, seria um peru. Os seus braços curtos, sua barriga curvada e a sua papada murcha abaixo do queixo, lembram a exótica ave.
— Eu sou um entusiasta do serviço público, ando por aqui, por ali, atendendo de forma privada os interesses do cidadão. Acompanho as informações do que acontece na Câmara de perto, por isso sei bem quem é a doutora. — Ele sorri de um jeito nojento. — O seu nome está em alta e chamando a atenção de muita gente — sua fala me lembra novamente a conversa que teve com Otávio, sei bem o que ele quis dizer na verdade.
— Sua também, espero. — Dou uma leve piscada dissimulada.
— Ah, bonequinha, nem tenha dúvidas disso. — Devolve a piscada, fazendo o meu estômago se revirar.
— Podíamos almoçar juntos, gostaria de te conhecer melhor — sugiro, completamente mal-intencionada. Mesmo sabendo que é um homem perigoso, tenho confiança que a minha morte ainda não foi decretada.
— Será um prazer imenso, principalmente se for em um local mais privado, se é que me entende. Andar na sua companhia, pode chamar uma atenção indesejada para mim. Até conversar com a doutora pelos corredores é algo que pode me colocar em cheque — fala, preocupado. — Entende?
— Entendo sim. Onde sugere? — Rezo para ser um local que me deixe em segurança.
— O hotel Imperial tem um ótimo serviço de quarto — sugere, galanteador.
Que bom. Ele não me levaria lá se quisesse me matar hoje.
— Parece perfeito! Ao meio dia?
— Ao meio dia. — Toma a minha mão e beija os nós dos meus dedos, deixando a pele úmida de saliva. Dou um sorriso forçado e quando ele se afasta, limpo a mão na roupa.
Como Lourdes falou, preciso conquistar o inimigo, esse homem não vai soltar informações sobre Otávio se não sentir que tem algo a ganhar com isso. Descer a esse ponto não me deixa confortável, porém, não posso esperar a situação esfriar para tomar atitudes.
Ao abrir a porta da antessala do gabinete, vejo que Potira ainda não chegou. As pessoas possuem um sério problema com a questão de cumprir os horários, desconfio que o grande motivador disso seja por trabalharem no setor público, já que o expediente na Câmara vai começar em dez minutos e o prédio está praticamente vazio.
— Otávio? — digo ao entrar no meu gabinete.
— Pontual como sempre. — Levanta do pequeno sofá onde está sentado, mexendo em seu celular e vem ao meu encontro. — Linda, como sempre. — Beija o meu rosto.
— O que faz aqui? Não bastou o papelão da última vez? — resmungo irritada, controlando o meu tom para não fazer um escândalo na Câmara. — Me seguindo embriagado? Tenha dó! — Eu me afasto, dou a volta na escrivaninha e ele senta em uma das cadeiras à minha frente.
— Nunca ouviu dizer que somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos? Se conquistou o meu amor, porque maltrata o meu coração? — diz, mostrando que voltou ao seu cinismo habitual, e abandonou a ofensiva. — Ele também quer evitar chamar a atenção. Tenho certeza.
— Você citando o Pequeno Príncipe seria uma novidade interessante, mas tenho certeza que não leu e só repete o que é dito.
— Isso não torna o que eu disse uma mentira — provoca, dissimulado.
— E sem dúvidas não se aplica ao que tivemos, pelo menos, não da forma que está colocando.
— Podemos tomar um café, passar um tempo juntos? Eu sinto tanto a sua falta.
— Não. — Entrelaço os meus dedos em meu colo.
— Achei que tinha alardeado aos quatro ventos que manteríamos a nossa amizade em nome do bem comum.
— Sua vontade não é o bem comum.
— Mas vamos conversar sobre o centro — apela, embora eu saiba que é mentira.
— Estamos no lugar certo para isso — pontuo, e ele se ajeita na cadeira. — Não tem nada para fazer da vida, Otávio?
— Fazer você voltar para casa é a minha prioridade. — Ele me encara e desvio o meu olhar. — Como tem passado os últimos dias? O tráfico parece ser um lugar agitado, soube que as facções estão prestes a entrar em guerra. O seu amante não comentou nada com você?
— Ele não é o meu amante — digo, preocupada com a informação de que as facções vão entrar em guerra.
— Então ele não te disse nada? — Otávio tamborila os dedos na madeira da escrivaninha. — Achei que não escondessem informações um do outro, foi a impressão que me deu com a questão do Valmir Mar ser fantoche dele. — Eu me abstenho de responder. — Sabe, Dalena, tudo isso vai passar... Essa sua teimosia vai acabar quando enxergar que a vida ao meu lado é tudo o que precisa, que esse marginal só está se aproveitando do seu corpo. Infelizmente, você vai sofrer um pouco até cair em si, só não esqueça que o meu amor vai resistir a todas as suas infantilidades.
— Juro que eu gostaria de entender o que se passa na sua cabeça. — Ele sorri cinicamente e continua, ignorando o meu comentário.
— Não espere que as coisas entre nós sejam como antes, cada vez que me testa, deixa a nossa relação machucada. Eu me vejo na obrigação de avisar que não leve isso ao limite, não queira descobrir do que eu sou capaz — ameaça, como se me fizesse uma declaração de amor. — De qualquer forma, lembre-se: meus braços estarão abertos para a hora que quiser voltar, o meu conselho é que não demore. — Seu tom é sereno e controlado
— Olha, você sabe como reconquistar alguém — provoco sem querer demonstrar o quanto Otávio está me assustando.
— Essa matéria do príncipe encantado eu já paguei, e veja só, você voou para os braços do lobo mau. Se eu soubesse da sua quedinha por vilões, tinha te mostrado antes do que sou capaz. — Otávio levanta e abotoa o terno.
— Não me siga mais e nem faça a minha mãe apelar em seu nome. Nada disso adianta, está perdendo o seu tempo — aviso, irritada.
— Quando eu te mandar o pau de Thundercat embalado para presente, vai saber que eu te dei muitas chances — ameaça, colocando as mãos nos bolsos.
— Será uma caixa e tanto, mas se pretende fazer isso, se prepare, porque sou capaz de trepar com a cidade inteira — digo na intenção de fazer Otávio pensar que Dom não tem tanta importância para não inflamar o seu ciúme, sem me deixar intimidar.
— Deu para perceber que está bem empenhada em virar uma vagabunda, sinto avisar que isso não vai durar. Aproveita enquanto pode, porque você vai comer na palma da minha mão — avisa, calmamente.
— O que vai fazer, me amarrar? — Ele sorri.
— Logo irá saber, não vou estragar a surpresa. Eu iria até aí te dar um beijo de despedida, só que antes vou quebrar os seus espinhos, Dalena Rosa, para não me espetar mais em você — fala e sai, me deixando com a testa franzida, sentindo o peso de tudo o que disse.
As ameaças de Otávio não foram no calor do momento, ele renovou tudo o que me prometeu nos últimos dias, dá para ver claramente que não são palavras vãs. Está óbvio que vai aprontar; não vai deixar barato o fato de não termos reatado e, ainda por cima, eu estar com Dom, o que provavelmente é o maior agravante.
Remexo a caneta executiva em minha mão enquanto penso. Não posso terminar o dia de mãos abanando, preciso me blindar contra Otávio. Dom ainda não confia em mim por medo da repercussão que isso pode causar em suas conexões, mas se eu descobrir sozinha, não terá ligação com ele, assim espero.
Acelero os movimentos da caneta em minha mão, batendo consecutivamente na superfície da mesa, depois a solto irritada e ela rola pra longe, indo parar do outro lado da sala. A visita de Otávio mexeu comigo de diversas formas, entretanto, deixou mais claro o fato de que preciso agir.
— Bom dia! — Potira entra na sala. — Desculpa o atraso, ainda estou me habituando com o trânsito para chegar até aqui.
— Tudo bem — digo, alisando a testa, com os pensamentos no senador.
— Confesso que não foi totalmente culpa do trânsito, mas vou me policiar — justifica desconcertada, atraindo a minha atenção.
— Não há domingo sem missa, nem segunda sem preguiça — brinco. — Como foi o feriado?
— Posso te dizer que a sua programação para o cinema virou um encontro às cegas, que deu super certo. Eu e a Henriqueta estamos juntas — anuncia empolgada.
— Ai, que bom. Fiquei super mal por ter me atrasado.
— Deu para entender o motivo do atraso. — Ela dá um risinho. — Que homem bonito! — Agora eu que dou um risinho e o som sai um pouco triste. — Tá tudo bem?
— Está sim, são só as questões do gabinete mesmo — desconverso. — Potira, por favor, em uma hora quero que ligue para a prefeitura. Você só precisa perguntar se o Valmir Mar está dando expediente. Combinado?
— Claro! Vou para a minha sala, adiantar as minhas tarefas do dia — avisa se virando para a porta, vendo que estou um pouco aérea.
— Potira — chamo.
— Oi?
— Estou muito feliz por você e pela Henriqueta. Formam um lindo casal.
— Obrigada. — Dá um sorriso iluminado e sai.
A hora passa se arrastando enquanto cuido dos meus afazeres até Potira voltar na sala e dizer que o prefeito está no seu gabinete. Imediatamente, pego a minha valise e o meu terno, caminho até a prefeitura como se estivesse em um estado de cegueira, tomada pelos meus pensamentos.
A minha presença na prefeitura é sempre evitada, o que fica claro quando não encontro ninguém para me autorizar entrar na sala do Valmir Mar. Tanto a chefe de gabinete, quanto a secretária não estão em seus postos. Suponho que seja uma forma de me fazer esperar para ser atendida. Para o azar delas, hoje não é o melhor dia para testar a minha paciência.
Bato na porta do gabinete e abro sem aguardar a autorização de quem está lá dentro. Ao ver que o prefeito está só, não me constranjo em entrar.
— Bom dia, sr. Prefeito!
— Eis que Helena de Tróia está na minha sala — diz o prefeito quando seus grandes olhos encontram a minha figura parada junto à porta. Ponho a mão no bolso, ao mesmo tempo que ele larga a caneta e apoia as costas no encosto da sua cadeira. — Vereadora Dalena, a que devo a honra?
Viro o rosto um pouco de lado mantendo o contato visual, com um pequeno sorriso desenhado em meu rosto. O prefeito não cede a minha simpatia, parecendo mais avesso a minha presença do que um vampiro quando encontra uma cruz. Vejo que está mais desconfortável do que o habitual.
Valmir Mar é um homem de trejeitos simples, ao contrário de Otávio que beira o pomposo e Dom que tem uma pose marrenta. O prefeito tem o arquétipo de um paizão daqueles personagens de novela da década de 90. Parece alguém acessível, porém, firme o suficiente para lidar com crianças, adolescentes birrentos e questões de pequenos consertos em uma casa.
Está sempre usando roupas sociais de loja de departamentos para reforçar essa imagem de homem do povo e cidadão de bem, quando por baixo dos panos recebeu dinheiro de Dom para a sua campanha. Esses políticos amam se disfarçar de homens sérios, mesmo que no fundo não passem de sujeitos sem escrúpulos.
— Temos um centro para construir — pontuo. Dou uma breve olhada pela sala de arquitetura antiga. Espalhadas pelos quatro cantos das paredes, admiro rapidamente os janelões fechados devido ao ar-condicionado. Em seguida, eu me sento em uma das cadeiras em frente a escrivaninha do prefeito. — Eu bem que percebi que o senhor não estava lembrado, e vim justamente te fazer essa cortesia.
— Eu. Sinceramente... não te acho alguém burra. Agora, esse seu atrevimento inocente sempre me leva a questionar quem é você por baixo disso. — Valmir não economiza no jeito ofensivo. Isso me faz pensar que talvez ele não ache que tenho a mesma importância para Dom, como tenho para Otávio, já que nunca ousou me tratar assim antes. Outra hipótese, é que o deixei mais irritado com a coisa do ofício. De repente, até pode ser as duas coisas.
— Nem é tão difícil descobrir... por baixo do meu atrevimento inocente tem só alguém cansada de pessoas me mandando dançar conforme a música.
— Você espera mesmo que isso aconteça, não é?
— A esperança é a última que morre, nunca ouviu dizer? — Ele comprime a boca e solta o ar pelas narinas. — Achei que teríamos uma conversa mais agradável, afinal, me mandou um ofício se comprometendo a acelerar a construção. Eu perdi algo? — provoco. Confesso que depois que o prefeito me chamou de burra, ficou difícil para mim trocar amenidades.
— Com certeza está perdendo, e não é na minha sala que vai encontrar — retruca, entrelaçando os dedos sobre a barriga volumosa.
— Engraçado dizer isso, porque eu realmente ficaria interessada em saber o que estou perdendo. Quem sabe se me falar sobre a sua parceria com Otávio eu acabe entendendo melhor as coisas e te dê uma folga — oferto, rezando que a ideia de se livrar de mim o anime.
— Olha se não é o tal atrevimento inocente que eu falei. Isso te move, garota... — Ele me avalia um instante. — Você certamente é uma mulher muito bonita, se não estivesse enchendo a minha paciência o tempo todo, talvez fosse eu no lugar deles.
— Não me leva a sério, não é?
— Levo tanto que vou te dar algo para refletir, já que tem uma fixação por ditados e frases de efeito. Thomas Hobbes disse que "Se dois homens desejam a mesma coisa, o que, ambos não podem desfrutar, eles se tornam inimigos." — Ele dá um sorriso malicioso, seu olhar até chega a brilhar.
— É..., excelente citação. Mas que eles dois são inimigos, eu já sei. Poderia ser mais específico? Tipo... Qual é o seu ponto em comum com o senador? Eu tenho certeza que não é o centro.
— Acha que vou te dar munição para usar contra mim? Você não é tão sagaz? Descobre sozinha.
— Vocês nem estão mais juntos. Otávio descobriu que não terá a sua ajuda para jogar a questão do centro na conta do tráfico. — Ele parece surpreso por eu ter conhecimento disso. — Viu..., não estou tão por fora como imagina, prefeito, só preciso de algumas peças para montar o meu quebra-cabeça. É uma questão de tempo para eu descobrir mais.
— Descobrir é sempre uma questão de tempo, vereadora Dalena. Vou ser cortês com a doutora, quem sabe não possa me retribuir um dia. Minhas questões com o senador não afetam a sua luta política, até porque estamos afastados. As questões da vida pessoal dele estão tirando o seu foco dos negócios, como a necessidade que tem de derrubar nosso amigo do morro de Tia Ondina — comenta sério.
— Derrubar?
— Exatamente. Graças a uma disputa por seu coração, vai cair uma bomba no meu colo, porque Otávio resolveu mexer uns pauzinhos e iniciar uma guerra entre as facções. Advinha o que ele quer com isso? — Agora eu quem fico surpresa com as informações. — Exatamente o que pensou, a intenção do sujeito é matar o seu rival.
— Está falando sério? — pergunto assustada.
— Se a doutora pudesse acalmar os ânimos do senador, seria de grande ajuda. Uma guerra entre as facções é um prejuízo imensurável para o município, sem contar que será o momento perfeito para o lado vingativo da polícia prestar contas com Thundercat. Vários agentes já ensaiam movimentos para acabar com o reinado dele. Essa é a hora perfeita para mostrar que está realmente preocupada com o bem maior. — Valmir me lança um sorriso irônico.
Fico catatônica por um instante, mastigando as informações que recebi. Otávio mencionou sobre a guerra entre as facções, sabendo que está por trás disso. Ele possui tanto poder assim e consegue mobilizar uma facção só para medir forças com Dom? Deve ter muito mais nessa história, porque não é possível que esse conflito vai se instalar somente para eu voltar com ele, como também, não vai acabar por esse motivo.
— Não é tão inocente para acreditar que uma guerra entre as facções acabaria só por eu reatar com Otávio — afirmo. — Tem um motivo por trás disso e você sabe qual é — pressiono o prefeito.
— Na verdade não, a coisa está se movendo sobre uma cortina de fumaça — admite, contrariado. — A turma do Morro Grande está comprando a ideia de ter o controle da Tia Ondina, mas o real motivo é a doutora. Otávio moveu as peças no tabuleiro, ninguém iria entrar nessa porque o chifre dele tá doendo — reflete. — Talvez ele não tenha mais poder de parar o trem, mesmo assim, tente curar o coração partido dele com seu belo sorriso.
— Otávio não está nem aí para o meu belo sorriso, ele só quer mostrar que tem poder — resmungo. — Só tem amor pelo homem que vê no espelho.
— Mas satisfaça o ego dele, ou esteja preparada para ver o senador tocar fogo em Belo Rio.
— Não posso ceder a algo assim — eu me nego a cumprir a sugestão de Valmir.
— Espero que a sua consciência saiba lidar com os danos e as mortes que estão por vir, porque você é a causa do que está se armando.
— A causa é o Otávio — afirmo, convicta.
— A causa também é sua quando se pode evitar de uma forma tão simples.
— Ficaria com alguém à força, ou é porque pimenta nos olhos dos outros é refresco?
— Se uma mulher rica e limpa quisesse me tratar como o amor da vida dela, garanto que não precisava nem ser bonita. — Se debruça sobre a mesa e me encara.
— Não estou convencida disso, um homem que tem o gostinho do poder nas mãos não se dobraria tão fácil. — Levanto da cadeira. — Imagino que ainda não tenha uma saída para a questão do centro, vou te dar uns dias para achar uma solução. Quando voltar aqui, espero que tenha um planejamento em mãos, pois os cidadãos de Belo Rio serão constantemente lembrados do nosso projeto. — Estendo a minha mão, mas ele não me cumprimenta. Faço um aceno com a cabeça e saio do gabinete.
Deixo o prédio da prefeitura com as pessoas ainda se esquivando de mim. A conversa com Valmir Mar me fez associar as saídas constantes de Dom com a iminente guerra que está para enfrentar, mais uma vez ele me deixou no escuro. Acabo me sentindo isolada por todos os lados. Henriqueta é minha única aliada, e tenho que usar o seu apoio com moderação para não colocá-la em risco.
Ando um pouco pelo bairro antes de voltar para a câmara, compro um chá mate em uma lanchonete que encontro pelo caminho, me sento em uma das mesas e tento esvaziar a minha mente. Dom tem razão, a minha vida muda muito rápido, eu mal consigo acompanhar. Sem contar que tudo é armado pelas minhas costas e me afeta diretamente.
Na televisão da lanchonete, uma apresentadora se dedica a entreter quando grande parte dos aparelhos estão apenas ligados por hábito, pois ninguém lhe dá ouvidos, apesar da audiência. Todo mundo está concentrado demais em suas tarefas ou no que o celular na palma da mão tem a oferecer.
Procuro acompanhar o que ela diz, mas é tudo tão sem sentido para uma manhã de segunda. Tanta animação e empenho em se mostrar uma amiga com quem se pode contar nas manhãs da semana, quando na verdade é só mais um arquétipo para conquistar algum telespectador solitário como eu.
Enquanto tomo o meu chá, acompanho atentamente o preparo de bacalhau com batatas dorê. Parece tão fácil que tenho vontade de tentar, mas meus dotes culinários são decepcionantes. Durante o tempo em que morei com Lourdes, só cozinhei umas três vezes, isso foi o suficiente para me proibirem de fazer as refeições. Em compensação, eu lavava mais louças.
Algumas vezes imagino que eu nasci na casa de Lourdes, como se ela fosse a minha mãe e as suas garotas as minhas irmãs. Pensar algo assim, nunca ocupa o espaço da realidade, as dores sempre possuem mais força do que as alegrias.
Meu celular toca na bolsa, a voz de Caetano Veloso cantarolando sozinho com todo o esplendor atrai olhares curiosos para mim. Dom me ofereceu o celular de volta com a promessa de que não iria me espionar, já que o outro estava sendo rastreado por Otávio.
Rejeito a chamada, não é o melhor momento para conversar com ele, posso terminar exigindo coisas incabíveis, como também sentir que tenho direito às minhas demandas. As questões com Otávio são um ponto complexo entre nós dois, quero tentar resolver sem o envolvimento de Dom, só que acabo chateada por ele me privar informações que tem ligação comigo.
"Para deixar o bacalhau macio, é bom cozinhar ele com água e leite antes de assar. Imagina que o bacalhau é alguém que você precisa conquistar, não dá para chegar nele do nada e meter o coitado no forno, antes temos que amaciar e assim a carne desse peixe super saboroso vai ficar pronta para ser cozida."
A apresentadora continua ensinando os segredos do bacalhau na televisão da lanchonete. É exatamente isso o que preciso fazer, não posso me encontrar com Torres sem que tenha algo que deixe ele pronto para me contar o que sabe. Esse homem é a minha única chance de descobrir os segredos de Otávio.
Com uma ideia em mente, ligo para a pousada de Suzanna e em dois minutos consigo o contato do celular dela, alegando que ocorreu um problema com uma de suas entregas. É incrível como as pessoas não checam se as informações que um estranho passa ao telefone são verdadeiras. Faço a chamada sabendo que ela parece tão avessa a mim quanto Valmir Mar, mas eu preciso quebrar barreiras para me movimentar.
— Bom dia, Suzanna! Aqui é a Dalena, estou precisando de um favor e de sigilo. Onde podemos nos encontrar?
— No meu apartamento.
— Estarei aí em meia hora.
É um movimento arriscado, só que eu não tenho muito a perder, na verdade, se eu não arriscar as minhas fichas, irei perder todas as minhas chances de reverter o jogo que Otávio está armando. Vou até a Câmara andando apressada pelas ruas, saio no meu carro e, como prometido, toco a campainha de Suzanna em meia hora.
Ela abre a porta usando um roupão preto de seda, deixando à mostra parte da lingerie que está usando. Talvez seja proposital para me intimidar de alguma forma, no entanto, já vi muitas mulheres nuas na minha vida para me afetar com sua exposição. De qualquer forma, não gosto de lembrar do envolvimento que teve com Dom e que a beleza dela sim, é ameaçadora.
— Fiquei bem surpresa com a sua ligação. — Delicadamente, cruza os braços sobre o peito. Como alguém consegue ser elegante e vigorosa ao mesmo tempo?
— Preciso de algo que não quero que Dom saiba, também não posso comprar de qualquer pessoa. Posso contar com a sua descrição?
— Ainda não sei o que quer comprar, mas confia mesmo em mim para isso? Porque acha que vou esconder algo dele por você? — pergunta com sarcasmo.
— Porque é do seu interesse que eu consiga interferir na guerra de facções que está por vir.
— Como pretende fazer isso, mudou de vereadora para santa e vai começar a operar milagres? — ironiza.
— Existem caminhos que eu quero tentar — esclareço irritada com a forma que ela está me tratando. — Vai ajudar ou não?
— Do que precisa?
— Alguma droga que deixe a pessoa suscetível a conversar comigo, que ela dê com a língua nos dentes mais facilmente. — Ela dá as costas e some no corredor sem ao menos me convidar para entrar. — Mal-educada — balbucio e reviro os olhos.
O apartamento é praticamente limpo de móveis, tudo extremamente branco com um quadro enorme dela nua de costas bem no meio da sala. Enrubesço pensando em Dom morando aqui, com a imagem do traseiro da sua ex decorando a parede.
— Aqui está — diz ao voltar e me entregar três comprimidos. Disfarço meu desconforto com o quadro, fingindo que ele não existe.
— É ilegal?
— É um hipnótico que vende nas farmácias com receita. Serve para pessoas com sérios problemas para dormir, digamos assim. Metade do pó da cápsula é suficiente para deixar alguém suscetível a responder às suas perguntas e mais obediente. Não demora a perguntar, pois vai deixar a sua vítima com um sono incontrolável.
— Vítima? — Ela faz um dar de ombros.
— Mais alguma coisa?
— O que sabe sobre Otávio?
— Que Dom odeia ele por sua causa — se limita a dizer, deixando claro que não vai falar mais que isso.
— Certo. Obrigada, Suzanna. Obrigada pela ajuda. — Dou as costas em direção ao elevador.
— Sabe, Dalena... — Eu me viro ao escutar ela falar. — O poder de Otávio vai além do que eu imaginava... O verdadeiro motivo do conflito entre as facções ainda está oculto, digamos assim. A partir do momento que os escalões do tráfico de Tia Ondina souberem que tudo isso é por você, o seu pescoço e o de Dom estarão em risco. Então, lindinha... Não. Faz. Merda.
— A minha vítima vai lembrar de alguma coisa? — Levanto a cartela reduzida de comprimidos.
— Flashes. Confunde a cabeça da pessoa, brinca de verdade ou desafio. Se puder, coloca um filme na tv, que vai ficar tudo mais confuso.
Aceno com a cabeça, demonstrando que entendi e vou embora.
Antes de sair do prédio, passo no meu apartamento. Ando pelos cômodos vendo que está razoavelmente limpo, apesar dos dias que passou fechado. Deito no sofá esperando a hora passar, não faz mais sentido eu ir até a Câmara naquele horário, mas deixei tudo resolvido antes de sair.
Tiro o comprimido do bolso e dou uma boa olhada, me perguntando se foi com essa substância que Pampa drogou Nina. Lembro bem que ela disse que não conseguia reagir e que lembrava de tudo em flashes. Passar por algo assim deve ser semelhante a viver um pesadelo, onde você não consegue falar ou sair do canto.
Sempre penso em Nina. Eu me pergunto se a morte de Pampa deixa ela respirar melhor, pois tenho a impressão de que se Sandoval estivesse morto, eu acharia o mundo um lugar melhor para se viver. Sinceramente, é como eu me sinto com relação a Coalhada, fico mais tranquila ao saber que ele não tem como me machucar outra vez. Entre esses pensamentos, guardo o comprimido no bolso, tomando coragem para drogar uma pessoa da mesma forma que eu repudio.
|NOTA DA AUTORA|
Eita, que agora a coisa vai se afunilar de vez!!
Eu tinha dito que haveriam revelações sobre Otávio, mas eu me confundi com o capítulo. Será no próximo. Uma boa notícia é que o CAPÍTULO VINTE E SETE será publicado domingo. Vamos andar mais rápido agora para a alegria de muitas que me pedem um capituluzinho a mais no pv.
Agora me digam quais são as suas apostas para o futuro da polêmica vereadora Dalena?
Até domingo então, não me deixem sozinha aqui!! Xeroooo ✿◕‿◕✿
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