▓ CAPÍTULO VINTE E QUATRO ▓
Dom se despede, dando alguns passos em direção ao seu carro. Observo com o coração apertado enquanto ele se afasta, pronto para encarar as suas lutas. A imagem da Range Rover diminuindo ao longe deixa um peso no meu peito, uma sensação de vazio e incerteza. Fico ali, parada, sem saber ao certo como me acostumar com essa partida constante.
Caminho em direção ao bar, o portão está destrancado, como sempre. Depois que entro, sigo para a cozinha, onde encontro Lourdes sentada à mesa. Ela segura um cigarro entre os dedos, diante de uma xícara de café vazia e o seu caderno de movimentações financeiras. Ao notar a minha presença, sorri. Em seu olhar, percebo que já sabe sobre mim e Dom.
Eu me sento à mesa, em uma cadeira à sua frente. Minha velha amiga dá uma tragada em seu cigarro, formando uma ponta cilíndrica de cinzas por onde passa o círculo de brasa. Sua boca segura a fumaça um instante e, em seguida, sopra em um jato fino no ar.
— Estão todas se arrumando? — pergunto com relação às garotas que trabalham no seu bar.
— Estão. Acredito que hoje terá um bom movimento. — Fecha o caderno quando termina uma anotação, prendendo o cigarro entre os lábios. — Agora me conta, qual é a diferença entre os dois? — pergunta se referindo a Dom e Otávio. O canto da minha boca se arqueia num risinho empolgado, amo conversar essas coisas com Lourdes, ela sempre sabe tanto.
— Otávio quer me possuir e Dom quer me sentir... ele trilha caminhos do meu corpo que eu desconhecia. Claro que é um vilão quando assume sua posição no tráfico, precisa ser, mas um príncipe encantado quando não tem ninguém olhando. — Lourdes abre um sorriso satisfeito. — Já o senador, é uma fogueira que estou tentando pular sem me queimar mais do que já me queimei.
— Thundercat me surpreendeu positivamente, espero que continue assim. — Dá outra tragada no cigarro sustentando um sorrisinho nos lábios. — Os caras da facção que aparecem por aqui, dificilmente surpreendem.
— Eu imagino... — digo com insatisfação. — Fiquei sabendo que Dom te procurou por minha causa há um tempo, mas você não me disse nada na época.
— Não quis colocar uma garota estudiosa e que não se envolvia em problemas nas mãos de um traficante, mesmo morando aqui. A maioria das pessoas no morro são analfabetas ou mal sabem ler, você é uma raridade... até me ajudou a soletrar.
— Por que agora não é contra nós dois juntos?
— Sua vida seria muito sem graça sem viver um amor e dá pra ver que vocês têm uma história. — Apaga o cigarro no cinzeiro de vidro em formato de flor, ao lado da xícara. — Onde se conheceram?
— Aqui no morro. — Faço um dar de ombros.
— Você nunca me contou que se conheciam.
— Desconfiei que não ia gostar se soubesse e apesar de fazer segredo, eu sempre respeitei o meu acordo com o senador. Nunca tivemos nada, até agora.
— Só uma paixão mal resolvida. — Ela sorri, maliciosa.
— É — concordo, sorridente. — Nunca teve medo que eu me apaixonasse por Otávio?
— Claro. Ele é o pior tipo de homem, porque não conquista, ilude. E o problema de muitas mulheres é que não sabem diferenciar paixão de deslumbramento — diz de uma forma professoral.
— Olha, acho que passei por isso — reconheço em tom de brincadeira.
— Ah. Sempre foi um risco você se deslumbrar, mesmo quando o senador não escondia quem era.
— Ele sempre escondeu. A falta de caráter dele não se limita à forma de se envolver com as mulheres. Otávio esconde coisas que não estive interessada em saber, mas agora preciso — digo com o olhar distante. Eu esperava que a conversa seria mais sobre minha intimidade com Dom, contudo, preciso aproveitar a oportunidade para outras questões. — O que sabe dele?
— Só como consegue eleitores. Por quê?
— Quero saber mais do senador e de suas conexões. No pouco tempo que voltei a ter contato com Dom, eu sei quem está mais próximo a ele — reflito me lembrando de Roman, Antônio Carlos, Tiquinho e a Aeromoça. — Com Otávio, é totalmente diferente. Ele tem a vida política, que é a que eu conheço como qualquer eleitor, mas tem a outra que não mostra a ninguém. Só presenciei uma conversa por pura sorte do acaso. Fora isso... — Vasculho a memória um pouco. — Nada.
— Nenhuma suspeita?
— Só que o motorista faz mais do que a segurança dele e dirigir. Eles sempre se comunicam com o olhar ou cochichos. — Tento lembrar de algo mais, enquanto Lourdes me assiste pensar. — Por que ficou com medo das ameaças que ele me fez e pediu para Dom ficar de olho em mim?
— Otávio é um homem muito poderoso, às vezes parece que você não tem ideia disso por ser tão próxima dele. Eu não fui capaz de duvidar quando ele te disse que não vai ficar barato.
Apoio os cotovelos sobre a mesa, juntos as mãos em frente ao queixo e fico pensando. O sentimento de medo em relação a Otávio vai e vem. Nossas ideias não se alinham, nossos sentimentos também não, mas um embate além do campo político é algo que não consigo prever.
Se me quisesse morta, não precisava de muito, deixaria as ameaças do tal Torres serem cumpridas. O que Otávio quer é me dobrar, me fazer desistir do centro e ser a propaganda política dele. Se não conseguir nenhum desses dois, será mesmo capaz de me ferir?
— Você tem razão como em tudo que fala. Tem coisas em Otávio que eu não consigo enxergar, e não é a única a me alertar — reconheço voltando a me encostar na cadeira. — Por isso preciso saber mais dele.
— Otávio sempre andou por aqui para manter o contato entre as eleições, mas as visitas dele nunca são apenas pelos votos — Lourdes revela, com uma expressão desconfiada.
— Como assim?
— Ele sempre quer saber sobre o que os clientes conversam com as garotas relacionado a ArCrim, mas dá um jeito de camuflar para não ficar tão óbvio que acompanha a movimentação do que acontece por aqui nas bocas.
— Que estranho... — fico surpresa.
— Tia Ondina é um centro de poder, acontece muito acordo por aqui. Toda vez eu me pergunto qual é o real motivo da curiosidade dele. — Seus olhos ficam estreitos.
— Essa é uma boa pergunta. Otávio deve usar isso de alguma forma, ele é muito esperto — comento, com um semblante contemplativo.
— Ninguém chega a ser eleito senador sem ser esperto — ela complementa.
— Como se conheceram?
— Na primeira eleição para deputado, ele veio aqui e me disse que seríamos parceiros por muitos anos. Otávio já tinha conseguido se eleger como vereador outras vezes, recebeu os votos dos jovens. Suas candidaturas faziam muito sucesso nas escolas e universidades.
— Não sabia disso. — Meu cenho fica franzido, achando essa uma informação relevante, notando que a minha falta de interesse em Otávio foi algo extremamente estupido.
— Quando nos conhecemos, ele contou que conseguia o voto feminino mais fácil. Um político solteiro atrai a atenção das mulheres. Com os homens é diferente, passa a imagem de um playboy aventureiro. Na época, parecia bem desesperado para crescer entre o eleitorado masculino. — Lourdes remexe nos cabelos loiros, amassando os fios para dar volume.
— Sabe como ele fez isso? — O meu tom é genuinamente curioso.
— Eu só sei de algumas coisas. — Faz uma pausa para acender um novo cigarro, traga e retoma a conversa. — Junto dos Conselhos Comunitários dos bairros, ele promovia por baixo dos panos partidas de futebol, doava camisetas para os jogadores, chuteiras, comparecia aos jogos... Até a coisa toda virar um reduto dele.
— Caramba. — Fico impressionada.
— Da mesma forma, ele fez aqui e em outros bares da cidade que oferecem os programas com as garotas da casa. — Bate a cinza do cigarro no cinzeiro.
— Como foi o acordo entre vocês?
— Bem específico. — Lourdes sorri misteriosa. — Otávio não trazia o dinheiro para a compra de votos de forma declarada. Ele bancava shows para o fluxo de clientes aumentar, abastecia o meu estoque de bebidas para que eu vendesse mais barato e me orientava em como eu deveria dizer às garotas para abordar os homens. Isso aqui em época de eleição vira uma loucura, você sabe.
— Sei, mas nunca percebi que funcionava assim. Quer dizer, eu sei que ele bancava essas coisas, porque morando aqui, era impossível não notar. — Seguro o meu queixo com o indicador e o polegar. — Mas o que ele te pedia para dizer às garotas? — pergunto intrigada
— Que pedissem aos clientes para votar nele somente dentro do quarto, antes de tirar a roupa. Não se podia falar de política no salão, assim evitava discussões sobre o melhor candidato, o que não aconteceria quando estivessem a sós. A sugestão era feita antes do programa e o cliente guardava na memória como uma boa lembrança.
— Uau... — vocalizo embasbacada.
— Ele era muito específico com relação a isso. Dizia que se as garotas deixassem para o final, a sugestão de votar nele passaria despercebido, porque o homem só quer virar e dormir depois do sexo, quando não está apressado para ir embora.
— Ah, é mesmo. Lembro de ouvir algumas garotas dizerem algo como: "Pode votar no meu candidato? Ele vai conseguir uma cirurgia para a minha mãe" — Lourdes confirma minha lembrança. — Foi assim que escalou na política...
— Sim. Otávio fidelizava os eleitores por baixo do pano sem eles saberem e em lugares que não levantam suspeitas, colocou o próprio nome na boca do povo.
— Ele já dormiu com algumas das suas garotas?
— Logo no início, mas não se satisfez em ter só uma.
— Eu bem que sei... isso deve ser doença.
— O problema nem foi ele ficar com elas, mas iludir todas com promessas de ajudar com dinheiro. Otávio deve sentir prazer nisso, porque nem precisava. Qualquer uma abriria as pernas de graça na esperança de fazer ele se apaixonar. Sabe como é. — Lourdes sorriu.
— Com quantas ele ficou?
— Três. Olhe, foi uma confusão enorme. Cada uma que estivesse mais deslumbrada e achava que a outra estava atrapalhando. Elas se engalfinhavam o tempo todo. — Lourdes sacode a cabeça, como se não conseguisse acreditar no quanto foram inocentes.
— O que você fez?
— Obedeci, ora. Ele me mandou tirar todas daqui. Era época de eleição e começou a interferir no esquema de conquista de eleitores. É assim que Otávio chama. — O cigarro solta continuamente um fio de fumaça no ar. — Marlon, o motorista dele, também já ficou com uma das garotas. Não deu problema, mas não conversou sobre nada do patrão, só contou que era do BOPE antes de trabalhar para o senador.
— Não sabia que ele era do BOPE.
— Nunca conversaram? — Agora é Lourdes que fica intrigada.
— Não. Os funcionários de Otávio são bem instruídos a não conversarem, parecem zumbis. Estão sempre de cara fechada e em silêncio. Ele também me deixava bem afastada dos assessores.
— O que pretende fazer agora? Vai desistir do centro? — Ela dá uma última tragada no cigarro e apaga no cinzeiro.
— De forma alguma, mas estou num ponto que preciso agir por outros caminhos. Acontece que me sinto num beco sem saída.
— Talvez devesse ir em quem tem o real poder de construir o centro — sugere.
— O prefeito? — questiono, e Lourdes assente.
— Você não precisa mais obedecer Otávio e manter distância do Valmir, pode ir diretamente até ele para tentar chegar a algum lugar. Quem sabe até descobre algo sobre o senador que te ajude.
Acabo ponderando que ir até Valmir é arriscado, porque ele está ligado a Dom e não quero atropelar essa questão, mas Lourdes está certa. O prefeito é a peça chave para a construção do centro, uma conversa entre nós dois pode ser exatamente o que está faltando para as coisas caminharem.
— O Valmir é bem avesso a mim, digamos que a minha fiscalização constante em cima das contas da prefeitura deixou nossa relação azeda. Mas realmente, Otávio deixou de ser meu aliado, preciso tratar dessa questão pessoalmente.
— Tenha cuidado, você já fez movimentos bem agressivos com o discurso e as declarações à mídia — alerta.
— Mas se eu recuar, serei engolida.
— Eu sei, só que são pessoas com muito poder, não tem como medir suas forças com eles — aconselha. — Se quer saber mais de Otávio, porque não tenta o motorista — sugere.
— Se o cara foi do BOPE, não vai falar tão fácil. Sem contar que pode vazar para o senador a minha investigação.
— Por que precisa tanto investigar Otávio?
— Dom está me escondendo algo muito cabeludo dele. Eu sinto que preciso urgentemente saber o que é.
— Por que te esconderia algo de Otávio? — Lourdes estreita os olhos e franze o cenho.
— Suspeito ser pelo mesmo motivo que usou para me esconder outra coisa, não quer me comprometer. A questão dele me proteger tanto também é porque não confia em mim, enquanto reclama que não confio nele. Conclusão: não estamos jogando aberto um com o outro — digo, insatisfeita.
— Como assim? — Lourdes destampa a garrafa térmica e despeja o café na xícara a sua frente.
O vapor do café libera o seu aroma na cozinha, apesar de não gostar da bebida, o seu perfume é algo muito agradável ao meu olfato. Lourdes se abstém de me oferecer, pois os anos em que morei em sua casa, a deixou por dentro dos meus hábitos alimentares.
— Por exemplo... — retomo a conversa, pensando bem no que posso dizer. — Dom não me diz o que está escondendo, mas me beijou sabendo que eu estava sendo seguida por Otávio — revelo após organizar a resposta na minha mente. — Isso foi um recado para o senador, e a essa altura, ele deve imaginar que a minha aproximação com o dono do morro influenciou na descoberta do caso dele com Íris.
— Otávio não te questionou esse beijo?
— Colocou panos quentes, dizendo que entendia, porque eu nunca tinha me envolvido com ninguém além dele. Mas, sem dúvidas, agora quer prejudicar a posição de Dom no tráfico.
— Thundercat sabe disso?
— Sim.
— Então os dois estão em uma guerra pessoal por sua causa. Thundercat deve estar mesmo evitando te comprometer com Otávio — pondera. As engrenagens da minha cabeça rodam como se fizessem uma força enorme para desenrolar esse problema.
— Outro dia o senador foi ao apartamento me encontrar, Dom se escondeu para evitar um embate. Ele até já sabia que Otávio está tramando colocar na conta dele o motivo do centro não ser construído, mesmo assim se controlou.
— O dono do morro não é burro. Queira ou não, é um senador contra um traficante.
— Sim, o fato de Otávio ser um senador com certeza freia Dom.
— E talvez, o fato de Dom estar saindo com você freia Otávio, e por isso ele coloca panos quentes. Acha que existe um conflito entre os dois que vai além de você?
— É possível, são muitas hipóteses. Não dá para saber, só especular, por isso preciso saber em que estou envolvida, e para ontem.
Sinto minha testa tensionar com tantas questões a serem desvendadas. Dom não está disposto a me contar, sua única preocupação é me manter afastada para evitar que eu sofra um ataque. Valmir pode ter avisado que estou irritando pessoas acima dele e por isso corro risco, mas ainda assim, os alertas que me fez são específicos sobre o senador.
Ai, que merda! São muitas questões para pensar.
— Talvez o Valmir também possa te ajudar com isso, ou quem sabe o tal homem que você ouviu Otávio conversar. — Lourdes tenta me ajudar a enxergar uma saída.
— É, vou começar com esses dois. Já esbarrei com o tal Torres pelos corredores da câmara, mas não sei o que faz tanto por lá, nem como levar ele ao meu gabinete e fazer com que abra o bico.
— É claro que ele não vai abrir o bico assim, Dalena. Se perguntar diretamente, não vai dizer ou contar qualquer mentira. Precisa criar um ambiente onde se torne íntima dele e comecem a conversar naturalmente, se é que me entende.
— É, eu entendo. Bem pensado — concordo. — O cara não vai dar com a língua nos dentes tão fácil, precisa de um bom incentivo.
— Não está com medo de onde essa história pode dar?
— A essa altura eu não tenho mais escolhas. Quer dizer, no início, achei que tudo estava sobre controle, Otávio me garantia isso. Depois do discurso, tudo ficou extremamente difícil, ainda mais com a entrada de Dom na história. — Apoio os cotovelos na mesa e entrelaço os meus dedos sobre a minha boca.
— Talvez seja a hora de desistir, antes que fique perigoso demais. Você pode dar um tempo, quando estiver com mais experiência na política, é só retomar.
— Eu sinto que estou quase lá. A coisa toda gerou o respaldo da população e já existe a lei aprovada. Se eu não me agarrar a isso com todas as forças, no futuro será uma promessa não cumprida. Corro o risco das pessoas não me apoiarem mais.
— É, você pode ficar desacreditada, sem contar que pode acontecer de nem ser reeleita. Mas se arriscar tanto, Dalena eu não sei.
— Eu já entrei nessa briga e estou ganhando no momento, não dá para sair justamente agora.
As garotas começam a descer uma a uma, perfumadas e arrumadas para atender no salão do bar mais tarde. A conversa muda para as expectativas da noite e fofocas da semana. Meu envolvimento com Dom também é mencionado. É engraçado falar abertamente que estamos juntos depois de tanto tempo fingindo que nem sequer nos conhecíamos.
Perguntas como: onde nos conhecemos ou o porquê de Dom ter ciúmes do massagista e o que eu fui fazer na pousada da Aeromoça, me fazem responder em uma avalanche de mentiras. Nada no nosso relacionamento tem uma resposta que possa ser dita abertamente.
As horas vão passando e acabo entrando a noite na cozinha de Lourdes. Decidimos beber algumas cervejas, mas logo virou uma festa regada a confissões constrangedoras na hora do sexo, acompanhadas de música sertaneja. Uma combinação bombástica para mulheres sem freio na língua.
— Certo, é a minha vez. — Raissa tamborila as longas e pontudas unhas no copo de cerveja com um sorriso perigoso nos lábios. Ela possui quadris e seios fartos, a cor de seus cabelos lembra um vermelho cereja. — Já fiz um fio terra mal sucedido. Rompeu alguma coisa no fiofó do cara e ele saiu do motel com uma toalha entre as pernas. Não me perguntem no que deu, porque nunca mais nos vimos. Eu só sei que saiu uma quantidade razoável de sangue. Ficamos bem assustados na hora.
Uma algazarra se formou em volta da mesa, rimos alto dessa revelação, fazendo o som ecoar pela cozinha. Outras histórias são contadas em meio a brindes com explosões de gargalhadas. Todas, ocasionalmente, dão um gole e outro na cerveja, enquanto nós damos apoio moral nessa brincadeira constrangedora.
— E a bonita não tá pensando que vai escapar só porque é vereadora, não é? Tem que vestir a camisa — incitou a polêmica, Suely.
Ela é a mais velha do lugar. Foi uma das que se casou, mas voltou para o bar de Lourdes. O marido a espancava, quando não a humilhava de diversas formas por terem se conhecido em um dos seus programas. Seu sorriso é largo como o da Julia Roberts e o cabelo bem volumoso com cachos definidos.
— Estou no segundo homem agora, não tenho nada a altura de vocês — digo dando um gole na cerveja.
— Não importa, queremos ouvir qualquer coisa — Suely insiste.
O silêncio na cozinha começa a me pressionar, meu rosto fica ruborizado com todas me olhando, esperando que eu contasse algo das minhas experiências sexuais. Deixo a cerveja sobre a mesa e respiro fundo, antes de começar.
— Vocês me fizeram lembrar de algo que eu até quero esquecer, porque fiquei muito... nossa... Sabe quando está dando o seu melhor, até acha que está arrasando e alguém puxa o tapete? Foi bem assim — comento, tendo a total atenção de todas. — Na minha primeira vez com Dom... — inicio, provocando um "uuuuuuuu" uníssono das garotas. — Quando eu comecei a gemer, ele me perguntou se eu tinha engolido um gato, acreditam? — As risadas tomaram conta da mesa, mas não tanto quanto as outras confissões. Fiquei aliviada por imaginar que seria uma espécie de apoio moral.
— Silêncio... deixem ela falar — Suely coloca ordem entre risinhos e Lourdes acende um cigarro.
— A minha cara foi no chão, isso acabou comigo. Senti muita vergonha, só que ele soube explicar o que estava esperando de mim. No fim das contas, a coisa terminou fluindo muito bem entre a gente, mas faltou pouco para eu me esconder num buraco. — Finalizo a minha história esperando que passem para outra, porque o silêncio delas agora está me deixando tão constrangida quanto no dia.
— Precisamos saber se ele tem razão ou se foi só um cuzão mesmo — diz Raissa. — Mostra pra gente como você gemeu — pede, sendo incentivadas por todas.
— Não, não! Esqueçam! — rejeito completamente a ideia. — E, sinceramente, eu imitava o jeito que as senhoritas gemem. Josy me disse que devia ser como vocês fazem. Eu caí feito uma patinha nessa conversa, tá bom? Passei anos gemendo como uma gata louca no telhado.
— Nossa, que sem graça. Você precisa mostrar — insiste Suely.
— De jeito nenhum. Não vou pagar esse mico — digo com minha voz abafada pelos gritos delas.
— Mostra, mostra, mostra! — pedem em coro.
— Tá bem, tá bem — aceito para acabar com o barulho à minha volta, já que não desistem.
Empertigo o meu corpo na cadeira, dou um gole na cerveja e me concentro. Não acredito que vou fazer isso. Dou o primeiro gemido que soa bem mais alto do que a música na caixa de som, repito mais duas vezes, fazendo todas explodirem uma risada ao mesmo tempo que olham na direção da entrada da cozinha, atrás de mim.
— Eu confesso que fiquei preocupado na hora, mas agora, parece que estou recebendo um convite irresistível de uma gata louca no telhado. — A voz de Dom surge em minhas costas, e fico completamente em choque.
— Vocês estão mortas, eu prometo! — ameaço por me jogarem numa armadilha, embora não seja levada a sério.
Não acredito que caí nessa!
— Hora de trabalhar! Vamos! — Lourdes bate palmas, colocando todas para fora da cozinha.
As garotas largam as cervejas sobre a mesa fazendo corpo mole para sair da cozinha. Uma a uma passa por mim em direção ao bar, com um risinho ridículo estampado no rosto, que desaparece logo que se despedem de Dom com a voz melosa, aumentando a minha vontade de matar todas.
— Dona Lourdes, tudo bem? — Dom cumprimenta com simpatia quando ficamos somente nós três.
— Tudo, meu querido. Sente um pouco. — Lourdes pede, apontando a cadeira ao meu lado.
— Não, não... Já deu por hoje. Outro dia aparecemos. Na verdade, quando eu esquecer completamente dessa história. — Os dois sorriem enquanto me levanto.
— Espero que não demore — Lourdes diz.
— Tchau, dona Lourdes — Dom se despede.
— Tchau — ela responde. Dou um rápido aceno e saio puxando Dom para ir embora.
Ele tenta me abraçar no corredor para desamarrar a minha cara emburrada, antes de alcançarmos a sala, e me esquivo. Estou bem chateada no momento. Ao passarmos pelo bar, algumas garotas gemem ao me verem, aumentando a raiva misturada com vergonha que estou sentindo, mesmo que as ignore.
O carro de Dom está logo à frente do bar, vou na direção da porta do passageiro quando vejo a minha mãe do outro lado da rua, olhando para mim. O meu chão some, o ar parece ficar denso, dificultando os meus passos seguirem adiante. Como se uma força oculta me impedisse, como se eu estivesse na presença de um fantasma.
Dom abre a porta para mim e me beija no momento em que passo por ele para sentar no banco do passageiro. Ao trancar o carro com cuidado, não percebe que o meu atual estado mudou da raiva infantil para o pavor de ver a minha mãe do outro lado da rua. Pela primeira vez em anos, estou na presença dela a poucos metros de mim.
Hoje eu vejo o quanto ela era jovem quando fui embora, apesar de que aparentava ser uma senhora, mas não tinha uma idade tão avançada. Agora, qualquer um diria que tem muito mais do que seus quarenta e poucos anos. Os cabelos estão bem grisalhos em um corte rente ao maxilar. É muito diferente da figura que me lembro, mas o corpo ainda é alongado como o meu.
Tento lidar com as emoções de raiva e dor que surgem. Todos esses anos ela nunca me procurou. Eu segui em frente com a minha vida, conservando uma mágoa profunda, que sem dúvidas ainda se mantém viva dentro de mim feito uma ferida aberta.
Abro a porta do carro e desço quando Dom está prestes a entrar. Uma pequena esperança de ouvi-la dizer algo que justifique o seu comportamento me encoraja a me aproximar. Se existe alguém a quem sou capaz de dar uma chance para reconstruir uma relação, esse alguém é a minha mãe.
Vendo que vou até o outro lado da rua, Dom me segue, ao notar o que está acontecendo. Cautelosa, eu paro à sua frente. Ela usa um vestido simples, mas, visivelmente arrumado para um passeio ou coisa do tipo.
— Muito bonito... — A expressão repreensiva no rosto dela me confunde. — Deixou um homem sério para ficar a toa num cabaré, andando com gente que não presta. — Sua fala é revestida de autoridade. — Achei que você tinha encontrado um rumo na sua vida. Fez faculdade, virou vereadora, mas não bastou amolecer o juízo com essa história de centro, resolveu virar mulher de traficante. — Essas são as palavras que ouço da minha mãe depois de tantos anos, depois de ter fugido de casa para não ser estuprada pelo marido dela.
Meu olhar pesa quando uma lágrima escorre do meu rosto. Ouvir isso depois de tanto tempo, reforça as coisas que me disse há tantos anos. O braço de Dom se entende em minhas costas, ele me segura e me puxa sutilmente, como se me convidasse discretamente a deixar minha mãe falando sozinha.
— Quando você foi embora eu fiquei tão aliviada... — Ela faz questão de entonar na sua fala o peso que eu era. — Eu não precisava mais me ocupar de cuidar de outra pessoa. Depois de praticamente quatorze anos, eu podia cuidar de mim. Sem me preocupar em te sustentar ou em arrumar um homem que quisesse uma mãe solteira — as palavras me são atiradas feito pedras. — A sua presença na minha vida era insuportável — cospe cada letra como se finalmente pudesse respirar com seu desabafo cruel, sem se preocupar em esmagar cada pedacinho do meu ser.
— Dalena, você não precisa ouvir isso. Vamos sair daqui. — Dom fala em meu ouvido, tentando me levar embora, enquanto estou paralisada.
— Ah, mas ela precisa... — Minha mãe insiste. — Ela tem que saber que o homem que está ignorando e maltratando, é um homem de verdade. Desde quando você entrou no cabaré dessa outra aí, o doutor Otávio me procurou.
— O quê? — pergunto com a voz falhando, atordoada com a informação.
— Mesmo sem necessidade, mesmo sem obrigação nenhuma, ele conversou comigo. Garantiu que eu não me preocupasse com mais nada, que ia te bancar. Pagou a Sandoval o dinheiro que você roubou do pobre coitado e, inclusive, me ajudou durante todos esses anos — conta satisfeita, enquanto sinto o mundo desabando.
— Não é possível... — digo num murmúrio, sabendo que é extremamente possível.
Otávio foi ainda mais longe do que eu poderia imaginar.
— Hoje, ele até me procurou com o convite de casamento nas mãos. O papel é tão chique... branco e dourado — elogia, impressionada. — Disse que ia fazer questão de me convidar, mas você abandonou tudo e não vai ter mais casamento. Seu juízo está virado por causa desse aí.
— O meu juízo nunca esteve melhor — rebato, e ela ri.
— Doutor Otávio bem que me avisou. Ele contou que quanto mais tenta conversar com você, mais sofre nas suas mãos. É o que está ganhando por querer te respeitar e ser o pai de um filho seu. O jeito que me falou do sonho de criar uma criança ao seu lado, até me deu vontade de ser avó. Coitado.
— Coitado? — pergunto incrédula.
— Quando ele teve a decência de me procurar para saber se eu concordava que fosse seu homem, bem que avisei que estava colocando comida na boca de uma cobra, que você é uma sujeitinha perigosa — diz satisfeita de ter alertado Otávio sobre mim. — Claro que não ia dar em outra, não é? — usa um tom zombeteiro. — Eu tenho vergonha de ser a sua mãe. Não bastou levar nome de ladrona e rapariga, quer o título de mulher de bandido. Sem falar na palhaçada desse tal centro. Está querendo enganar a quem? — enojada, ralha as palavras.
— Lave a sua boca para falar de mim — digo com os lábios endurecidos e o dedo em riste, indo mais para perto dela. — Todas as vezes em que me lembro de ser sua filha, sinto vontade de não ter nascido. Lave a sua boca também para falar do centro, eu luto para construir ele por causa de pessoas da sua qualidade e da de Sandoval. Acha ruim que eu vim parar aqui, mas me jogou na rua. Se na época existisse um lugar desse aqui no morro, eu teria recebido o devido apoio da justiça.
— Justiça!! — ela repete como se contasse uma piada. — Você estava louca e queria nos deixar passando fome e sem um teto!! Essa é a sua justiça, Dalena Rosa!! — eleva o seu tom a cada frase dita. — Sandoval secou as canelas procurando por você, com medo de ser preso e eu ficar desamparada.
— Ele não liga para você!!! Só estava se protegendo!! — minha voz se desequilibra, enquanto fico trêmula, tomada por uma raiva desesperadora. — Ele deveria morrer na cadeia!!! — esbravejo e ao fazer uma pausa, vejo que ninguém que mora ao redor se arrisca em bisbilhotar. Com certeza, a presença de Dom mantém todos em suas casas. — E você... você deveria responder pelo seu crime também... — finalizo mais controlada
— Mas é uma infeliz mesmo... Ainda acha pouco tudo o que aprontou e queria meter uma cadeia em mim e no homem que deu de comer a ela. Não digo mesmo que é uma cobra — zomba. — Cuidado que esse aí não parece Sandoval ou Otávio, talvez agora você tenha encontrado um que tenha braço para te colocar na linha se precisar — fala cheia de maldade.
— Pelo amor de Deus, você é minha mãe. — Bato no peito desesperada, apesar de evitar gritar.
— Não pensou nisso na hora de inventar conversa!
— Eu. Não. Inventei! — exclamo desesperada.
— O senador disse que você era virgem!! Quer enganar a quem? Você mesmo contou a ele, e com os anos... confirmou pessoalmente quando se deitou com você. É mentira dele?
— Obrigada por me dar mais um motivo para te odiar. — Toda a minha expressão corporal se transforma num completo vazio, como se nada em mim funcionasse, como se minha própria mãe tivesse me deixado sem vida. — Nunca mais apareça na minha frente, continue morta para mim, porque foi assim que te guardei nos últimos anos na minha lembrança.
— Eu queria dizer o mesmo, mas você estava bem viva, me enchendo de vergonha, e pra completar, virou mulher de bandido.
— Quem é você para falar de bandido? Está casada com um lixo, um monstro! Se fosse capaz de enxergar um palmo à frente do nariz, saberia que está diante da melhor pessoa que poderia conhecer — digo, encarando-a de perto, para que nunca esqueça como é olhar em meus olhos e ver que não cultivou nada dentro de mim.
Dom se coloca na minha frente.
— Já chega, agora vamos — pede, segurando o meu rosto para que olhe para ele.
Atendo Dom e me afasto da minha mãe. Ele me ajuda a entrar no carro, depois senta ao meu lado, no banco do motorista, assim que contorna a Range Rover. Ela permanece parada, me olhando assustadoramente do outro lado da rua.
Dom arranca o carro. Eu me encolho, preenchida pelos sentimentos mais horríveis. Era como se eu tivesse acabado de contar a ela sobre Sandoval há nove anos e novamente sou desacreditada, ficando mil vezes pior do que naquele momento.
|NOTA DA AUTORA|
Quem esperava por essa? Otávio foi a razão de Sandoval e Marilena processando caladinhos durante todos esses anos, enquanto se beneficiavam do acordo que o senador fez com Dalena.
Uma mãe dessas...
Me contem o que acharam do capitulo de hoje!! A história está se afunilando, logo mais chegará ao fim, e só digo uma coisa... é melhor eu ficar calada.
Xero!! Até mais!! ✿◕‿◕✿
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