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▓ CAPÍTULO VINTE E OITO ▓




Um vulto parecido com Sandoval passa no corredor. Como ele entrou aqui? Ouço sua respiração ofegante sobre mim, seus dedos me tocam por baixo do lençol, seguro o tecido com força, eu não consigo gritar, finjo que estou dormindo. Por que eu não mando ele parar? Por que fico paralisada de medo? Ele some no corredor.

Coalhada surge e começa a rir de um jeito assustador, agarrando as minhas coxas. Movo as minhas pernas para me libertar, mas ele não me solta. Sinto o cabo frio de madrepérola do canivete na minha mão, estoco a lâmina em seu peito, vejo sua figura evaporar no ar. Estou sangrando, alguém me machucou, qual deles foi? Não sei... Os dois.

Otávio surge no canto do quarto, sorrindo cinicamente com as mão estendidas e vejo pequenas lágrimas escorrerem dos seus dedos. Ele sai em direção a sala, de onde vem um choro de criança, ouço ela me chamar perto dos brinquedos. Levanto da cama, antes de passar pelo espelho no corredor, paro em frente e me olho. Embora nada seja visível, como sempre, eu sei que meu corpo está marcado por eles. A minha alma tem uma ferida em cada lugar que me tocaram. O choro da criança continua, preciso ir, ela me espera, eu quero abraçá-la.

Começo a descer as escadas devagar, meu corpo está tão pesado... De repente, não sinto mais o chão, estou flutuando como se boiasse sobre as águas cálidas de uma linda praia. O sol me aquece, envolvendo a minha pele com o seu calor, estou protegida.

Orange in blue...

A cama está tão apertada, mas é bom. Eu me aperto mais, não quero acordar, só que tem algo pinicando o meu pescoço, coço e meus dedos esbarram em uma barba, acaricio-a feliz por sentir outra vez sua textura. Um sorriso se abre em meu lábios, meus olhos despertam devagar, quando então me dou conta. Giro o corpo rápido em cima do colchão e Dom me segura com firmeza, como se eu estivesse prestes a cair. Suas pálpebras se abrem assustadas, suas íris azuis fitam as minhas.

Ah, esse azul...

— Por que você está na minha cama? — pergunto apertando os olhos com a claridade que entra pela janela. Não estou sonolenta, minha consciência se mostra ativa.

Dom passa as mãos por seus cabelos acobreados, depois coça o rosto onde tem uma linda colônia de sardas pintando a sua pele. Parecendo ainda despertar, ele procura vagaroso as palavras para responder a minha pergunta. Meu corpo está encolhido bem junto ao seu e não me atrevo a mover um músculo.

— Não é o que está pensando. Quer dizer... O que está pensando? — sua voz soa grave e acolhedora.

— Não estou pensando, Dom, estou perguntando — esclareço, tentando mostrar firmeza, mas a quem eu consigo enganar? Minha voz soa tão carinhosa quanto a dele.

— Eu só fiz o que faço quando você fica estranha dormindo — explica, ajeitando a cabeça sobre o travesseiro, me engolindo com o seu olhar felino.

O azul mais azul.

Não posso me render, o que Dom fez foi injustificável. Ele deveria ter dito. Deveria dizer, mas ele não diz. Eu tenho nojo de mim por ter ficado com Otávio esses anos, mesmo sabendo que o crime é dele, mas a culpa parece minha. Estou com muita raiva de tudo.

— Como assim eu fiquei estranha? — Minha voz soa baixa, e ele toma a liberdade de me apertar mais contra o seu corpo, inclusive, colocando a sua perna em cima da minha. Recuo o rosto um pouco mais para trás, apesar de saber que estou rendida. Isso é demais para mim.

— Eu estava acordado, porque foi impossível pregar o olho naquele sofá. Então, te vi descendo as escadas dormindo e te trouxe para a cama. Pretendia ficar só até sentir que estava tudo bem, mas acabei adormecendo — explica, arrumando uma parte do meu cabelo junto da minha orelha.

— Não me lembro disso... — Forço um semblante carrancudo

— Você nunca lembra, mas se não acredita, posso te mostrar na filmagem. — Sei que é uma provocação, e que provavelmente vou me ver tentando descer as escadas. — Essa casa é um perigo para você com essas escadas, e se caísse?

— Na sua casa também tem escadas — retruco.

— Mas eu estou lá... — Bufo um riso sarcástico em resposta. Tento levantar da cama e Dom segura firme o meu corpo. — Não vai — pede com a voz rouca, massacrando os meus ouvidos com a incrível sensação que é escutar a sua voz tão perto.

Eu vou resistir!

— Você é muito perigoso em cima de uma cama. — Tento sair novamente, mas ele me mantém presa. É tão inútil medir forças com Dom, é como se fosse uma mosca tentando empurrar uma pedra.

— Por que está com raiva de mim, Dalena? — Ele me aperta mais, e meu olhar me entrega ao sentir a ereção dele contra a minha pélvis. — Eu não vou facilitar para você.

— Para com essa palhaçada, Dom! — Minha voz sai num misto de fraqueza e irritação. Que merda! Pigarreio para recompor as minhas cordas vocais e o safado acha graça do meu desconcerto.

— Peça direitinho, você está muito agressiva comigo — brinca.

— Não acredito que está fazendo isso... — Ele me ignora e aproxima o rosto do meu, deixando tão junto que quase que os nossos narizes se tocam.

Fecho os olhos por um instante, buscando força interior ou esperando que ele me beije de uma vez e acabe com essa tortura. Para a minha decepção, corrigindo, para o meu alívio, Dom não vem. Abro os olhos devagar e me deparo com ele tomado por um sorriso convencido.

— Por favor. Me solta — peço pausadamente.

— Há muito tempo que não estou te segurando — avisa.

Olho para baixo e vejo que nada me impede de levantar, meu rosto arde de vergonha e isso é o que me dá forças para sentar na cama num sobressalto. Solto um riso curto e raivoso, levanto parecendo que é difícil ficar sobre as minhas pernas, mas consigo caminhar até a porta sem tropeçar.

Antes de sair do quarto, olho para a cama e vejo Dom deitado, com as pernas cruzadas. Sua cabeça está apoiada nas mãos, que estão juntas na altura da nuca, fazendo seus braços formarem uma espécie de "V" na horizontal. Ele faz questão de mostrar o quanto está à vontade entre meus lençóis.

Safado!

— Essa cama é perfeita, só falta você voltar — provoca.

— Eu jurava que você estava chateado o suficiente para não querer olhar na minha cara tão cedo. — Dom fica sério, eu toquei na ferida, mas em segundos, ele se desmancha.

— Eu gosto quando você fica atrevida.

Sacudo a cabeça em negativa e saio apressada para me preparar para ir ao povoado de Areia Vermelha. Faço a minha higiene matinal rapidamente, em seguida, visto uma roupa menos formal. Opto por tênis, calça jeans e uma camiseta básica, com a gola mais aberta, numa cor nude.

Um cheiro de café invade as minhas narinas, me pergunto onde ele conseguiu, pois não comprei comida, na verdade, estou sem comer desde o almoço de ontem, imagino. Tem tanta coisa acontecendo que não estou lembrando de comer. Coincidentemente ou não, minha vista dá uma leve escurecida. Eu me seguro na soleira devido a tontura que sinto, quando me recomponho, desço e encontro Dom na micro cozinha.

— Não tinha nada aqui, então comprei — avisa, colocando a frigideira com ovos mexidos em cima do balcão.

— Você ou um dos seus homens? — desconfio.

— Eles não sabem onde mora, achei melhor não abusar da sorte com você. Deu para notar que a presença de Antônio Carlos já te deixou bem irritada.

— Não é perigoso ficar aqui sem proteção? — pergunto, preocupada por se expor dessa forma.

— Eu sou o perigo, Dalena.

— Mas, e se...

— Qualquer coisa, basta que eu mande a localização e eles vão se materializar aqui, estão pelo perímetro. Eles são paramilitares, então não se preocupe.

— Obrigada pelo café — agradeço, evitando olhar para Dom e me sento em uma das banquetas.

— Eu juro que não sei porquê está com raiva de mim. — diz ao notar a minha irritação, embora a verdade por trás da minha cara feia e enjoada seja a fome que estou sentindo.

— Estou pronta para dizer, desde que me diga o que sabe sobre Otávio. — Vou no embalo da minha farsa.

— Eu não acho seguro você saber — fala, irredutível.

— É só falar, Dom... — Ele sorri como se eu tivesse falado o maior dos absurdos.

— É só me deixar cuidar de tudo e para de se arriscar.

— Resposta errada — digo, decepcionada com a sua incapacidade de não confiar em mim e continuar me deixando no escuro em relação a Otávio. Isso me magoa profundamente, apesar de não ser nenhuma surpresa ele não ser aberto comigo. É o que ele faz desde que nos conhecemos.

Dom nunca me contou a verdade sobre nada. Não disse a verdadeira razão de estar no tráfico, não disse que o seu plano de ficar no crime era algo passageiro, não contou que foi obrigado a permanecer por causa do meu plano. Ele me deixa no escuro o tempo todo, como se eu fosse incapaz de manter os seus segredos ou de ajudá-lo de alguma forma e até mesmo de somente ouvi-lo. Até agora, só contou o que qualquer um sabe, embora a minha vida inteira seja do seu conhecimento. Nem sequer foi capaz de contar que eu dormia ao lado de um cara que traficava garotinhas.

Minha garganta fica entalada, estou praticamente perdendo a fome.

— O que estava fazendo no hotel? — Ergo uma sobrancelha, pronta para provocá-lo.

— Você tem os seus segredos, eu tenho os meus. — Mordo a fatia de pão que recheei com ovos. Dom não gosta do que ouve e se ocupa de comer também.

— Come devagar — pede ao ver que como o pão em praticamente três mordidas. — Isso faz mal.

— Estou com pressa — digo, abrindo o aplicativo de motorista particular.

— Onde vai? Eu posso te levar — oferece.

— De jeito nenhum — recuso. — Tem cinco minutos para tomar o seu café, esse é o tempo previsto para o carro que vem me buscar chegar.

Dom dá um riso falso, se ocupando de terminar a sua refeição. Por cinco minutos ficamos nos encarando, enquanto ele mastiga a comida e eu termino de tomar o café quente na xícara de plástico. É interessante ficar ao lado dele em silêncio quando tenho tanto a dizer. O meu coração e o meu corpo ainda não entenderam o quão ressentida estou, sei que é muito difícil alinhar os meu sentimentos com a realidade quando se trata dele.

Vejo que também não parece conseguir sentir raiva de mim o suficiente para renegar o próprio coração. É como se a cada situação que nos afastasse, mais entendemos que a intensidade do nosso amor é maior do que imaginávamos e não será possível ficar longe um do outro tão facilmente.

O carro que solicitei buzina na frente da casa, salto da banqueta para pegar apressada os três enormes sacos com brinquedos. Dom se apressa também e me ajuda, não me atrevo a reclamar, geralmente os motoristas ignoram que tenho apenas dois braços mirrados.

— A noite eu trago a janta — diz sem deixar abertura para que eu possa contestar, pois segura minha nuca e sela a minha boca com a sua num beijo rápido. Fico sem ação, assistindo ele sair na direção da pracinha, onde vejo que deixou o seu carro.

Antes de entrar na sua Range Rover, Dom olha uma última vez para mim e coloca no rosto os óculos escuros que sempre usa. Ao dar uma rápida olhada para o começo da rua, noto que o carro da polícia não está mais lá. Avalio melhor ao meu redor em busca de alguém que esteja pronto para me seguir, não vejo ninguém. Mesmo assim, vou despistar no trajeto para garantir que não serei seguida.

— Vamos moça, não tenho o dia todo! — O motorista chama a minha atenção, impaciente. Obedeço para não correr o risco dele me deixar, ultimamente só estou pegando os carrascos.

Em alguns minutos ele me deixa no centro, em frente a uma megastore que vai de uma rua a outra e tem duas entradas. Já dentro da loja, fico por trás dos cabides, observando se vejo na rua alguém suspeito surgir me seguindo. Não demora muito e Antônio Carlos atravessa as portas automáticas com um capacete nas mãos.

Enquanto o marinheiro segue loja adentro buscando me encontrar, saio pela mesma porta e entro com as sacolas no primeiro táxi que encontro, passando o endereço que Henriqueta me mandou. O taxista segue em frente, me deixando aliviada por ter despistado o amigo de Dom.

Em pouco tempo, paramos no endereço da jornalista.

— Eu te ajudo com as sacolas, moça. — O taxista se prontifica.

— Muito obrigada. — Fico feliz com a gentileza do senhor, notando Henriqueta aparecer no portão.

— Nossa, você não economizou nas doações, hein. Será um baita disfarce. — Ela pega os dois sacos das mãos do taxista, que se despede e vai embora

— Sempre fico super animada com doações e me empolgo em gastar mais do que gasto comigo. Sou um pouco mão de vaca, mesmo quando o dinheiro não é meu — confesso.

— Tá falando do dinheiro do senador, é? — Faço uma cara de culpada, enquanto nos dirigimos para a garagem. — Eu não teria pena. Do jeito que aquele ali deve roubar, seria uma espécie de repatriação — brinca. — O que houve com o seu carro?

— Não quero ter nada que me lembre dele — admito.

— Justo — diz me avaliando. — Está tudo bem? Seu rosto está um pouco caidinho, não deve ser fácil descobrir que o cara que conviveu por tantos anos faz uma barbaridade dessas, por mais que nada ainda esteja provado. — Olho para ela receosa em desabafar.

— É complicado.

— Olha, o dia de hoje é completamente extraoficial. Pode não parecer, mas eu sei guardar segredo. Se estiver precisando de um ouvido, alugo o meu de graça até chegarmos em Areia Vermelha.

— Vou aceitar essa oferta — digo entre risos.

Inicio a viagem um pouco mais animada por ter a companhia de Henriqueta. É fácil conversar com ela. Desabafar um pouco sobre Dom e Otávio acaba me deixando mais leve. Escolhi a jornalista para ser a minha aliada nessa história, espero que não me decepcione. Sinto que ela tem uma energia que bate com a minha, minha desconfiança é somente pelo motivo de nunca termos certeza de nada.

Ao final da conversa, Henriqueta parece seriamente preocupada comigo. Ela segura minha mão e aperta carinhosamente. Percebo que sou alguém extremamente carente de contato físico, porque fico emocionada. Acabo disfarçando, olhando a paisagem pelo vidro da janela do carro, envergonhada.

Apesar de ter morado um tempo em uma casa repleta de mulheres, não existia afeto, provavelmente, isso se refletiu no meu comportamento social. Fora das eleições, não me lembro de ter interagido de uma forma tão próxima com alguém. Antes de sair de casa, o único contato que eu me lembro é o de Sandoval, ele sempre arrumava uma forma de me tocar, de se mostrar um padrasto carinhoso. Minha mãe, ao contrário dele, estava sempre a uns dez passos de mim, como se eu tivesse uma doença contagiosa. O único com quem tive uma troca real foi Dom, tanto na adolescência, como agora.

— Eu nem sei se aguentaria passar por metade do que passou — diz Henriqueta, me tirando dos meus pensamentos.

— E é porque você não sabe metade da metade...

— Caramba! Tem coisas piores do que esse furacão em que está metida? — pergunta espantada.

— Eu nem posso abrir a boca para dizer que o meu passado é o pior de todos, porque existem histórias mais pesadas do que vivi. — Lembro em silêncio de Nina.

— Não é fácil ser mulher.

— Bom, eu não gosto de generalizar, mas acredito que grande parte das mulheres tem uma história de sobrevivência para contar. Pelos menos foi o que testemunhei com muitas das que conheci. Abuso, violência, abandono... Isso porque somos a porta de entrada para o mundo. Não deveríamos ter o tratamento de um ser sagrado?

— Sabe que concordo com você em número, gênero e grau, não é? — Rimos um pouco.

Passamos a conversar sobre políticas públicas para as mulheres e parece que finalmente eu tinha alguém com quem dividir as minhas ideias e os meus anseios. Saindo da BR 101, percorremos uma estrada de barro entre cercas de arames farpados, deixando poeira por onde passamos.

A vegetação estava verde, pois ainda é inverno, apesar da pouca chuva que cai nas áreas mais afastadas do litoral. Eu me mantenho alerta, conferindo o retrovisor para ver se encontro algum veículo suspeito nos seguindo, o que não aconteceu para o meu alívio.

Já no povoado, o vermelho rústico que toma conta do chão de barro mostra que o lugar não é desenvolvido, mesmo assim, muitas das pessoas que avisto pelas ruas possuem paz estampada no rosto. A maioria parece o tipo de pessoa que fica feliz com o pouco que tem. Talvez saibam que, na verdade, a simplicidade é a melhor forma de se viver.

Casas pequenas, cercas de pau, o barulho somente dos animais, ar puro, longe de comida envenenada vendida em sacos chamativos... Eu consigo me imaginar vivendo assim. Alguns chamam de uma vida sofrida, eu chamo de uma vida abençoada.

— Chegamos! — Henriqueta para bem na hora do intervalo, em frente a uma humilde escola de paredes coloridas, mas encardidas por causa do barro.

Muitas crianças olhavam ansiosas para o portão, a jornalista avisou a escola da nossa visita. Eu e Henriqueta dividimos as sacolas e entramos na instituição. Quase não conseguimos tirar os pés do lugar, devido aos alunos pularem animados à nossa volta.

Uma fila foi organizada, e se eu estava sentindo falta de abraços não pude mais me queixar, pois ganhei um a cada brinquedo que entreguei. Todas as crianças estavam arrumadas como se nos aguardassem para uma festa e de fato é uma festa, pois nos receberam com música, bolo, refrigerante e salgadinhos.

As crianças correm de um lado para o outro, mas sem largar os brinquedos. Eu e Henriqueta nos separamos, cada uma tomou uma direção oposta para conversar com alguém. Escolho abordar uma das professoras que se mantém atenta às crianças, mas uma garota chama a minha atenção. Ela tem prováveis quatorze anos, é a única adolescente ao redor. Desde que cheguei, está sentada no canto do pátio.

A mocinha olha de uma forma oca para a festa dos menores, como se nada ali fosse capaz de lhe tirar um sorriso, como se em nenhum lugar do mundo conseguisse colher alegria. Mesmo me aproximando cautelosa, sua expressão demonstra incômodo com a minha presença indo em sua direção. Vendo que vou abordá-la, a garota rapidamente puxa os punhos da camisa longa para baixo, e ajeita os cabelos.

— Esse é um bom lugar para passar um tempo, acho que é o lugar mais ventilado da escola. O clima é tão seco nesse povoado. — Eu me sento com dificuldade no batente baixo. Desde que vesti a minha calça antes de sair, senti que está mais apertada, o que é estranho, já que não tô me alimentando bem. — Como se chama? — pergunto, quando finalmente me acomodo ao seu lado.

— Luzia — sua voz soa triste.

A garota possui uma tez avelã e o corpo formado de uma moça, embora os olhos escuros sejam infantis. Me pergunto se eu era assim, um porte amadurecido, com um rosto infantil. Imediatamente, lembro de Coalhada duvidando que eu era uma criança. Por que será que algumas pessoas só olham o nosso tamanho do pescoço para baixo, ignorando a idade mental?

— É um nome muito bonito... Luzia. — Dou um sorriso e ela se alegra um pouquinho. — Eu me chamo Dalena.

— É um nome estranho — diz desconfiada, olhando para mim de viés.

— É mesmo — concordo sorridente —, mas já encontrei uma pessoa que achou bonito. — Lembro de Dom. — Você deve receber muitos elogios com um nome desses e seus lindos olhos. Já tem muitos pretendentes?

— Não quero saber disso — diz, puxando mais para baixo as mangas da camisa..

— Na sua idade não está errada. Quando eu tinha os meus treze anos, me apaixonei. Até hoje, amo a mesma pessoa — confesso, emocionada. — Eu não escolhi, só aconteceu. Antes, vivíamos longe um do outro e doía não poder ficar com ele. Agora que estamos juntos, a presença dele está me magoando. — Comprimo os lábios com uma cara de tristeza e ela parece sentir pena de mim.

— Ele te machuca?

— Só aqui. — Coloco a mão sobre o coração. — Mesmo que o seu olhar consiga ser minha paz. Sabe como é isso? — Ela nega, puxando novamente as mangas. — Espero que não saiba tão cedo, então. — Dou um longo suspiro. — Como é morar aqui? — Ela faz um dar de ombros. — Imagino que tenha muito lugar para correr.

— Eu não gosto de correr, prefiro tomar banho no rio quando vou lavar a roupa com minha tia. Ela morava fora e voltou para cuidar de mim — fala com uma voz meiga, mas triste.

— Você gosta de morar com sua tia? Ela é legal?

— A única pessoa que é legal comigo... — baixa a cabeça e esfrega no chão a chinela japonesa que está calçada, provocando um chiado.

— Eu também tenho problemas para encontrar alguém que seja legal comigo. — Ela me olha quase feliz por não ser a única no mundo e triste por saber que passo o mesmo que ela.

— Eu não achei que pessoas bonitas passavam por isso — diz sem jeito.

— Como não, se você é uma garota linda? — tento animá-la.

— Sou nada. — Sorri sem jeito.

— Vem, vamos tirar uma foto juntas para você ver que é tão bonita quanto eu.

Eu pego o meu aparelho do bolso da calça e faço uma selfie nossa, eternizando o nosso encontro. Na foto, ela sorri apenas com os olhos, mas de um jeito leve, eu lhe mostro a tela do celular, e no instante em que vê a sua imagem, abre um sorriso contente.

— Agora acredita em mim, não é? — brinco.

— Mas você parece uma princesa.

— Nós parecemos princesas, você e eu. — Lembro de Dom ao falar. — Princesa Luzia e princesa Dalena.

— Você é tão legal...

— Eu também te achei muito legal, princesa Luzia. — Esbarro o meu ombro no dela e sorrimos uma para a outra. — O que quer ser quando virar de vez uma adulta?

A menina fica séria e arrasta a chinela no chão mais uma vez, fazendo ela chiar. Quando para, puxa as mangas da camisa para baixo, escondendo novamente os punhos, com um olhar perdido. Percebo que sem querer, acabei tocando num ponto sensível para ela

— Não precisa falar se não quiser Luzia — conforto a garota para que não se sinta pressionada.

— O que eu quero não existe — revela, desconsolada.

— E o que seria? — Pigarreio.

— Eu quero ser uma adulta sem passado, como se as coisas que já vivi nunca tivessem acontecido...

— O que quer tanto esquecer? — pergunto, com medo da sua resposta machucá-la.

— São tantas coisas... — Ela faz um dar de ombros. — Queria esquecer que a minha mãe me batia tanto que fui levada embora pelo conselho tutelar, e que me deram para uma mulher chamada Josy. — Ouço o nome de Josy, como se tivesse levado um choque. — Essa mulher me deixou na casa de um monstro. Eu... — Luiza dá um longo suspiro e volta a falar com a voz mais pesada. — Era tão ruim que eu achava melhor morar com minha mãe, ou quem sabe morrer logo, porque eu não ia mais sofrer, ninguém podia mais me machucar.

— Luiza, já passei por coisas parecidas e sei o quanto isso fere a alma. Eu sinto muito que precise conviver com essas lembranças. Se eu pudesse, te tornaria a adulta que você quer ser — afirmo, emocionada.

— Você já passou por isso? — Sua voz soa confusa.

— Muitas de nós, pode acreditar. — Seguro a mão dela. — O que acha se eu te der o número do meu telefone para que a gente possa sempre conversar sobre o que quiser, e assim, nunca mais vai ficar sem uma amiga. Que tal?

— Sério que quer ser a minha amiga? — pergunta com os olhos brilhando.

— Já somos... Eu quero te ver no futuro e quero te ouvir dizer que você é a adulta que sempre quis ser. O seu sonho ganhou uma torcedora — falo baixinho, mas com empolgação, e ela sorri encabulada.

— Nem acredito que quer ser minha amiga. Obrigada.

— Deixa para agradecer quando estivermos bem velhinhas, tá bom? — Ela concorda. — Eu fiquei com uma dúvida, mas tudo bem se não quiser falar — asseguro, cautelosa. — Por que essa tal Josy te levou, ela te adotou?

— Não. A assistente social disse que eu ficaria com ela enquanto encontrava uma família para mim. Aqui não tem um lugar para menor com problema, sabe? — conta, olhando para os lados. — Tem que ir para onde tem vaga.

— A assistente social só te entregou a ela?

— Sim. Disse que eu precisava ajudar Josy no que me pedisse, porque ela ia me dar abrigo enquanto a minha documentação era resolvida, mas eu não fiquei na casa dela — explica baixinho para ninguém ouvir. — Ela me entregou a um casal.

— Um casal?

— Sim, eles eram ricos. Cada um tinha o seu quarto — responde, desconfiada.

— E você, tinha o seu? — Ela nega. — Onde dormia? — Seus olhos ficam marejados.

— No chão do quarto do homem. Ele não gostava que eu ficasse na mesma cama depois. — Meu coração fica tão pesado que parece ter uma tonelada imaginando o que seria esse "depois".

— Existe algum papel que diga que passou esses dias lá?

— Papel?... Não. Só minha tia precisou assinar quando me tirou do conselho tutelar. Na hora que ela soube que eu não estava mais morando com a minha mãe, voltou da cidade que vivia lá no sul e me pegou para criar. Disseram que se guardasse segredo, dariam um trabalho bom para que pudesse cuidar de mim. Por isso virou merendeira daqui — conta.

— Você estuda aqui? — Ela nega.

— Eu perdi o ano, mas minha tia sempre me traz para a escola, porque tem medo de me deixar sozinha em casa — explica.

— Ela não tem filhos? — Luiza balança a cabeça. — Me fala como é essa Josy?

— Ela é da sua cor, tem cabelos longos e cacheados. É muito bonita. Fiquei muito feliz quando quando veio me buscar, pensei que iria morar num lugar bem bacana por causa das coisas que me disse. Achei Josy muito legal, mas eu me enganei.

Eu também achei que ela fosse alguém legal.

— Do jeito que falou, essa mulher parece com uma pessoa que é conhecida de uma colega minha. Será que são a mesma Josy? — Os olhos dela ficam apreensivos. — Gostaria de ver se é, porque assim eu tomaria cuidado e ficaria longe. Já pensou se acabo sendo amiga dela por engano? — Ela concorda sem pestanejar.

No meu smartphone, acesso o aplicativo de amizade na minha rede social, busco por Josy e a foto dela aparece. O rosto de Luzia fica pálido, ela aperta a minha mão e sinto os seus dedos gelados na minha palma.

— Fica longe dela — diz as palavras com veemência, e assinto.

— Certo. — Guardo o celular desnorteada. — Eu sei que não é correto pedir, mas não fala nada para a sua tia do que conversamos, ela pode ficar preocupada e tirar conclusões precipitadas. — Luzia concorda sem estranhar o meu pedido, é uma garota tão inocente quanto uma criança. — Não aceita um pedido assim de outras pessoas, porque pode ser alguém mal-intencionado, tá bom? Sempre converse com sua tia, só isso que ela não precisa saber. — Eu oriento para que não repita esse comportamento.

— Pode deixar — garante.

Henriqueta começa a se aproximar de nós, Luzia se apressa em esconder os pulsos ao puxar as mangas da blusa, mas rapidamente eu vi as cicatrizes horizontais, marcando a sua pele. Imediatamente, essas cicatrizes se fundem em em meus olhos marcando a mim mesma, ficando claro que jamais irei esquecê-las.

Ela tentou se matar.

— Quem é essa moça bonita? — a jornalista pergunta.

— A minha amiga, Luzia. Luzia, ela é a Henriqueta — apresento as duas, que sorriem uma para a outra.

— Estou com inveja, Luzia, conheço a Dalena há mais tempo que você e ainda não fui chamada de amiga — Henriqueta diz ao se abaixar na nossa frente. A garota sorri satisfeita. — Depois quero saber o seu segredo. — Rimos umas para as outras.

— Vamos? — chamo a jornalista.

— Claro.

— Coloca o seu número aqui, Luzia. — Entrego o meu aparelho para ela e rapidamente recebo de volta com o seu contato salvo. — Eu te mando mensagens.

— Não tenho internet sempre — avisa, enquanto nos levantamos.

— Vou dar um jeito de resolver isso — digo, e trocamos um abraço de despedida.

Os alunos fazem uma festa com nossa partida, todos balançando os brinquedos na mão em frente a escola, dando alegria ao prédio triste, que mais lembra uma construção feita para presidiários. Vou embora do povoado, com uma sensação alegremente amarga. Deixar as crianças tão felizes e arrancar um sorriso de Luzia foi muito bom, mas saber o que a garota passou, me deixa abalada.

Enquanto reflito, concluo que não existe como punir judicialmente Otávio junto dos seus comparsas, isso me deixa entalada. Como eu já previa desde que Torres me contou, será praticamente impossível responsabilizar um grupo tão poderoso pelos seus atos monstruosos. Infelizmente, é a realidade.

— Pelo seu silêncio já sei que descobriu alguma coisa — Henriqueta observa.

— Sim. Descobri que não existem provas e não vamos encontrar nenhum documento que comprove.

— Como assim? Testemunha também é prova — contrapõe em objeção.

— Quer mesmo levar essas pessoas a um tribunal sem nada que comprove o que alegam? — pergunto séria. Jamais serei capaz de expor Luzia e sua tia a algo assim, sabendo que não dará em nada. Apesar das circunstâncias, não serei impedida de tomar minhas próprias providências, mas prefiro deixar Henriqueta fora dos planos que tenho para o senador. Eu só precisava de uma confirmação, apesar de lamentar não conseguir expor o grupo completo.

— Elas serão massacradas... — conclui.

— O que descobriu?

— Perguntei sobre a questão da adoção a uma professora que conversou comigo. Ela me contou que bastava uma mãe querer me dar seu filho, porque o conselho tutelar de lá vive fechado. Quando eles vêm buscar uma criança por denúncia e essas coisas, o menor é realocado para outros lugares na mesma hora. Ninguém fica no prédio da instituição. Lá é só uma casa velha, com um birô e uma cadeira, nada mais — conta. — E você, o que descobriu?

— Que uma mulher leva as crianças para Belo Rio e deixa na casa de abusadores.

— Ela é uma dessas crianças?

— Não, só ouviu falar — minto para não expor Luzia. Quero evitar que ela seja usada de forma midiática sem levar a lugar nenhum.

— Estamos num beco sem saída. — Suspira, desenganada.

— Na verdade, não. — Ela me olha espantada. — Não pode expor Otávio nessa questão, mas pode expor a situação precária desses conselhos nos povoados e onde houver holofotes, inibirá essa atrocidade. Não será mais um terreno fácil.

— Verdade, bem pensado. Posso até questionar sobre os arquivos e ir em busca dessas crianças. É um começo. — Volta a ficar animada. — Não me conformo em deixar o senador impune.

— Ele não vai ficar, não enquanto eu respirar. — Otávio está na minha mira.

— Não tem como você conseguir informações sobre ele com relação ao tráfico e essas coisas. O senador está muito blindado, o lugar mais vulnerável eram os conselhos — analisa pensativa.

— Eu vou encontrar um elo fraco e quebrar ele — aviso.

— Olha, Dalena, sou uma jornalista iniciante, mas já deu para entender que mergulhar fundo na hora de expor coisas tão graves é muito arriscado. — Ela ainda não entendeu quais são as minhas intenções. — Por isso, a redação do Diário de Belo Rio só expõe o que basicamente já seja de conhecimento público. Ninguém quer pôr a própria vida em jogo, sabemos que isso não vai mudar em nada. No máximo, você consegue derrubar uma peça no carretel de dominós — diz, preocupada.

— Tem razão... é só que fico muito indignada com tudo isso — concordo para deixá-la mais tranquila, mas com certeza Josy e Otávio vão pagar.

— Você tem um bom coração, não é fácil colocar a cabeça no travesseiro a noite sabendo dessas coisas — avalia, inconformada. — Sabe que se o seu projeto estivesse funcionando, poderia ser um meio de inibir isso, não é? — Eu confirmo num aceno. — Se as maternidades de Belo Rio já atendem mães do estado inteiro, não seria diferente nesse caso. Atenderia a crianças, adolescentes e mulheres vulneráveis de todo canto — analisa. — Eu vou ressaltar isso na matéria sobre os conselhos.

— Obrigada, você é a melhor jornalista! — Agradeço carinhosamente. — Quando a sua matéria sair, com certeza irei mostrar exaustivamente em plenário.

— Quanto mais publicidade, melhor. Eu só não garanto enfrentar o perigo de frente, mas posso cutucar a opinião pública. Inclusive, seria bom levar isso para outras colunas de opinião, onde existe mais liberdade para falar.

— Seria magnífico, Henriqueta! — digo um pouco mais animada sobre a ideia de espalhar a matéria.

— Vê, formamos uma dupla e tanto.

— Com certeza — concordo sorridente.

Na viagem de volta, trocamos muitas ideias, inclusive sobre a reportagem com relação aos conselhos tutelares. Henriqueta iria fazer a diferença e estava feliz em conseguir dar um significado maior a sua profissão, ajudando a pressionar o poder público e ampliar a voz dos vulneráveis.

Inconvenientemente, passo o resto do dia na casa da jornalista, para continuar sumida por mais algumas horas. Não tenho o hábito de ser uma visita incômoda e ela não deu sinais de que eu estava aborrecendo-a, mas tenho a consciência de que é desagradável. No entanto, ter Dom me rastreando me fez passar por esse constrangimento.

Ainda não tenho certeza de como enfrentar essa situação com ele. Os meus sentimentos dificultam uma ação real da minha parte. O fato é: se não sou capaz de me entender com Dom por não ter me alertado sobre Otávio dizendo tudo o que sabe, já que insiste em fazer segredo. Quanto tempo mais ficarei nesse conflito entre o meu amor e a minha mágoa é a resposta que não tenho.



|NOTA DA AUTORA|

Josy mostrando outra vez as garrinhas... Ela e Otávio, que dupla!

A cada capítulo, a história se afunila mais. Como Dalena vai terminar a sua jornada? Acompanhe nos próximos capítulos. Haja reviravoltas!! 

Quinta, posto mais uma parte. Até lá! Obrigada por acompanhar essa obra. Abraços!!  ✿◕‿◕✿


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