▓ CAPÍTULO TREZE ▓
Perto das vinte e três horas, eu estaciono o carro no fim da rua da Ponta dos Golfinhos e desligo o motor. Em questão de segundos, uma moto preta digna de um filme de ação se aproxima e para ao lado da minha porta. Observo o nome "Kawasaki Ninja" estampado na lateral do tanque enquanto Dom ergue a viseira fumê do seu capacete preto, revelando seus olhos azuis em meio às sombras da noite.
Abro a porta do motorista e desço. Dom me entrega um capacete igual ao seu, coloco a minha cabeça dentro, sentindo-o pesar em meu pescoço. Um frio gela a minha barriga quando subo na moto e encaixo Dom entre as minhas pernas. Com certeza, eu já tinha perdido as rédeas da minha vida muito antes de chegar até ali, mas porra, ele deve ter um plano para me enlouquecer esfregando na minha cara o quanto é gostoso.
Quando abraço a sua cintura, Dom entrelaça os dedos nos meus por um breve instante antes de dar a partida na ignição. Isso faz com que eu tenha mais certeza que ele quer me viciar na sua presença. A eletricidade que percorre o meu corpo com o seu toque é inexplicável e intensa. Sinto vontade de me aconchegar em suas costas, enquanto o dono do morro me leva para onde quiser, mas decido resistir.
Saímos de Ponta dos Golfinhos indo em direção à avenida que fica na orla da praia de Princesa de Aiocá. A moto possante, atraia olhares por onde passávamos no trânsito. A adrenalina que sobe pelo meu corpo é reconfortante, enquanto meus braços envolvem sua cintura firmemente, e sei o quão simbólico é isso, pois meu coração se manteve agarrado a Dom por todos esses anos da mesma forma.
Ele mantém suas mãos firmes no guidão da moto e meus cabelos longos, que descem por baixo do capacete, dançam ao vento enquanto acelera. No retrovisor, vejo uma imagem cômica de mim mesma testando o meu autocontrole para não me aninhar nele como uma gatinha apaixonada.
Balanço a cabeça e me concentro no caminho, tentando ignorar as sensações que me invadem a cada curva que Dom faz. São uma mistura de necessidade e empolgação que me deixam querendo amassar o seu corpo contra o meu, e ao mesmo tempo, explorar com calma cada pedaço dele.
No fim das contas, tento manter minha postura imperturbável, fingindo ser tão neutra quanto uma esfinge, aquela figura enigmática que não se abala com nada. Repito para mim mesma que sou forte o suficiente para lidar com essa situação tão desafiadora.
Quando paramos no sinal vermelho, Dom abre a viseira do capacete e seus olhos sorriem para mim. Seus dedos se entrelaçam novamente nos meus, fazendo minhas pernas se fecharem mais envolta das suas. Então, percebo que não estou conseguindo enganá-lo. Em seguida, nos guia sem pressa até o píer da praia vizinha, onde fomos até o final.
Naquele horário, não há ninguém por perto, o que aumenta a sensação de entrar em um mundo paralelo quando estou com ele. A experiência de ser só nós dois novamente me faz transbordar de felicidade. Olho para a paisagem ao nosso redor e suspiro, tentando encontrar alguma distração para me manter ocupada. Afinal, sou uma mulher adulta, e não vou me deixar levar por uma voltinha de moto.
— Achei que iríamos a um racha — digo ao tirar o capacete, depois de descer do bagageiro.
— Vamos, mas prefiro abusar da minha sorte de ter a sua companhia hoje — diz enquanto pega gentilmente o capacete das minhas mãos e o apoia junto com o seu sobre a moto. — Vem, vamos olhar o mar. — Estende a sua mão e eu seguro.
O vento estava frio e soprando com uma força razoável, me deixando agradecida por ter saído com uma jaqueta de couro por cima da blusa de tule, que escolhi para usar com uma calça jeans e um coturno preto. Dom também usava uma jaqueta de couro, calça e uma camiseta.
— Você sempre vem aqui? — pergunto ao notar que ele tem intimidade com o lugar.
— Sim, gosto de mergulhar e pescar com arpão — conta, levando minha mente a imaginá-lo embaixo dessas águas com roupa de mergulhador. — O polvo do risoto que te servi no farol foi pescado por mim.
— Sério? — pergunto surpresa.
— Sério... — Dom se aproxima sorridente e meu fôlego some.
Caramba, como isso é difícil! Como é difícil ficar perto dele e não pular nos seus braços. Eu quis me enganar que seria somente um passeio de moto, mas me coloquei em um teste de fogo. Eu nunca pensei que seria um simples encontro, só não imaginava que pudesse mexer ainda mais comigo.
O corpo quente de Dom colando no meu, o vento batendo em meu rosto e trazendo o cheiro do mar misturado com seu perfume, acariciando as minhas narinas, tudo fazendo meu estômago se encher de borboletas. Eu sinto que estou prestes a explodir em emoção. Será que ele percebe a minha respiração acelerada? Será que ele sente o meu coração batendo fora de si?
Os olhos de Dom, parecem duas estrelas brilhando em seu rosto, igual as que oscilam sua luz acima das nossas cabeças no céu noturno. Ele embrenha sua mão em meus cabelos, como se seus dedos fossem pequenos pés caminhando pelo meu pescoço, deixando uma vereda até a minha nuca. Todos os meus músculos relaxam com a massagem sutil que faz em mim.
— Não faz isso... — Minha razão pede num sussurro cálido, enquanto minhas pálpebras pesam sobre os meus olhos.
— É só uma massagem — diz num tom despreocupado.
— Não é uma massagem, é um feitiço... — Dom ri baixinho do meu comentário, enchendo o meu ouvido com a sua voz rouca se misturando ao som das águas do mar. — Você está me encantando com seus dedos mágicos, como um sereio.
— Um sereio? — pergunta com a voz risonha. Ele se aproxima um pouco mais e roça levemente os lábios na minha orelha. A sensação é tão intensa que me deixa sem ar por alguns segundos, enquanto os meus olhos se reviram de excitação com a mistura da provocação ao seu toque em minha nuca. — Não seria tritão? — sussurra, provocando um formigamento no meu corpo. Ele para a massagem e se debruça nas barras de proteção do píer feitas de madeira.
— Foi o que eu disse — respondo com o corpo ainda mole.
— Não foi não — rebate, me olhando de viés, com um meio sorriso.
Apoio às minhas mãos nas barras de proteção e jogo minha estrutura para trás, me alongando para acordar meu corpo. Volto para cima, enlaço o meu braço no de Dom, apoiando a minha cabeça em seu ombro e assisto as ondas do mar por um tempo. Ao longe, noto um navio cargueiro se aproximando silenciosamente em meio às brumas. Me sinto dentro de um filme de romance.
— Sua massagem me deixou com sono — digo ao bocejar.
— Essa não era a intenção.
— Ah, então admite que estava mesmo me enfeitiçando? — Dom sorri e beija a lateral da minha cabeça.
— Posso te levar para a minha casa, você dorme lá. Se está com sono, não deveria dirigir — sugere de um jeito falsamente inocente.
— Não vou dormir na sua casa — resmungo.
— Já dormimos juntos, sabe como é, não vou fazer nada, até já te prometi isso hoje. Não estou me comportando?
— Não muito. — Sorrio do seu cinismo. — Desistiu do racha?
— Não. Antes podemos dar uma checada por lá para você conhecer e ver que não está rolando uma carnificina. Depois a gente descansa. — Abraça a minha cintura e me guia até a moto.
— Eu não vou dormir na sua casa — aviso sem muita moral, pois não paro de sorrir.
— Não sou de jogar na cara, nem de cobrar nada, mas já me pediu para dormir com você e aceitei — lembra subindo na moto. — Otávio nem é desculpa. Você disse que ele está passando uns dias fora e não acredito que vai chegar a essa hora — conclui antes de colocar o capacete.
— Estamos indo longe demais — digo movendo a cabeça em negativa, quando ele abre a viseira.
— Vem, Dalena. É só uma noite.
Eu subo na moto e saímos dali, deixando o mar atrás de nós, seguindo para um dos bairros mais periféricos da cidade, com ruas escuras, sem asfalto e um ar menos urbano. Andar por essa área dá um arrepio na espinha, pois é um local extremamente violento. Embora alguns olhares de sujeitos em um comportamento suspeito nos avaliem por onde passamos, os acenos de cabeça que Dom faz, me levam a crer que ele tem passe livre por lá.
Entramos em uma rua de barro com um grande descampado em volta. Não há luz ou moradias, o que me deixa mais apreensiva. Eu pressiono Dom um pouco mais nos meus braços, como um sinal claro do meu medo de estar naquela localidade remota. Ele aperta minha mão em resposta e acelera a moto, provavelmente para chegarmos mais rápido ao local.
Em alguns instantes, estamos em grande terreno baldio, iluminado por inúmeros faróis. Há vários paredões de som tocando batidões e motos fazendo todo tipo de manobra, levantando poeira em meio a uma considerável quantidade de pessoas. A chegada do dono do morro de Tia Ondina é recepcionada por luzes piscando e uma rápida salva de tiros para o alto se misturando ao barulho de fogos, fazendo o meu coração saltar.
Dom guia a moto até um espaço mais isolado e tira o seu capacete, enquanto mantenho o meu. Um rapaz se aproxima em passos ligeiros arrastando um cooler cinza, com um fuzil nas costas, indicando que era um soldado. Suas roupas parecem grandes demais para o corpo franzino, pois, enquanto anda, puxa as calças para cima, que parecem sempre a ponto de escorregar pelas pernas. Ele vem com um sorriso aberto, mostrando-se feliz em vir atender qualquer necessidade do seu chefe.
— Na moral, achei que o senhor não vinha — diz abrindo o cooler, pegando uma garrafa de Jack Daniel's e um copo, provavelmente para servir Dom. — Geral tava reclamando. Sabe que só tem graça quando vem marcar presença.
— Não vou beber — avisa Dom.
— Ôxe... — O rapaz estranha em tom de surpresa, coçando o cabelo ralo com fios oxigenados e padrões desenhados na lateral da cabeça. — É por causa dessa novinha na garupa, patrão? Quem é ela? — Faz as duas perguntas quase ao mesmo tempo, direcionando para mim os olhos miúdos no seu rosto afilado.
— Não é da sua conta. Leva o uísque para o Roman — fala autoritário, e o rapaz obedece sem questionar.
Fiquei incomodada com a forma que ele falou, mas não estou em um ambiente comum, e certamente Dom precisa falar de forma dura ou não seria o dono do morro. Personagem ou não, presenciar isso serviu para me lembrar quem é o homem que passei os últimos vinte minutos abraçada, passeando por ruas onde jamais andaria nesse horário.
Uma moto do mesmo modelo que a nossa encosta ao nosso lado. O homem está sem capacete, acompanhado de uma bela mulher na garupa, segurando o que imagino ser o copo de uísque dele. Ele faz um cumprimento de mão com Dom, mas seus olhos não saem de mim, mesmo que não consiga me ver por trás da viseira, deixando claro o seu interesse em descobrir a minha identidade.
O homem tem cabelos pretos curtos e barba por fazer, o que dá um ar de rebeldia e desleixo. A mulher tem cabelos longos e loiros, presos em um rabo de cavalo alto, destacando seu rosto delicado e maquiagem impecável. Suas longas unhas vermelhas e a tatuagem de um tigre no braço, exalam uma aura de ousadia. Ambos vestem roupas simples e práticas, com camisetas de malha desbotadas e calças jeans surradas.
— Tá andando com a polícia hoje? — O homem pergunta em tom de brincadeira ainda me olhando, com um sorriso malicioso.
— Sabe como é, sempre tem uma que é chave de cadeia — responde, também brincando, mas não acho a menor graça e reviro os meus olhos por dentro do capacete.
— E como eu sei! — diz pegando no joelho da mulher que dá um leve tapa em suas costas.
— Tá dizendo que sou chave de cadeia, Roman? — a mulher pergunta queixosa, e ele ri.
— Braba feito um siri na lata, pense! — O homem fala e leva um beliscão. Imediatamente, ele força um gemido, a deixando mais irritada, enquanto Dom finge achar engraçado. — Vou levar minha gata ali, porque quando fica violenta desse jeito, eu me armo logo.
— Roman! — A mulher grita e o homem arranca a moto sumindo entre as outras.
Minhas mãos repousam em minhas coxas e Dom as encontra ao fazer um carinho em meu joelho. As motos roncam os seus motores, disputando o barulho com os paredões de som e os gritos empolgados dos que assistiam as exibições. As armas estavam por todos os lados, enfiadas na cintura da roupa, fuzis pendurados no ombros ou simplesmente na mão de alguém.
Não é uma carnificina, mas é um evento bem peculiar.
Alguns dos homens ali presentes ostentavam tatuagens duvidosas, que indicavam alguns dos seus crimes, as condenações que tiveram e coisas do tipo. Muitos tinham cicatrizes à mostra ou cabelos oxigenados. A atmosfera era tensa e eletrizante, com a sensação de que a qualquer momento algo poderia acontecer. Olho ao redor, tentando disfarçar meu desconforto, mas sei que não posso ignorar a realidade que me cerca. A adrenalina corre forte em minhas veias e eu me sinto viva, porém, ao mesmo tempo, completamente vulnerável.
— Está cansada? — Dom pergunta e antes que eu responda, outra moto, um modelo BMW, encosta ao nosso lado.
A piloto é uma mulher usando uma calça jeans apertada e um cropped manga longa. Ver sua barriga completamente exposta me fez pensar em como chegou ali tão plena sem sentir frio. Ela tira o capacete, e pela primeira vez eu presencio uma cena em slow motion ao vivo, com os seus cabelos escuros cacheados caindo por cima dos ombros.
A moça vira a cabeça em nossa direção, revelando o rosto de uma modelo internacional com seus fios num balanço digno de uma propaganda de shampoo. Dom mantém sua postura ereta na moto, mas seus ombros relaxados, tencionam levemente ignorando a mulher ao lado. Seus olhos estão fixos no movimento à nossa frente, como se evitasse olhar para ela.
Merda!
Quem é essa?
Um calor sobe pelo meu corpo, e não é mais pela proximidade com Dom.
Entre esses dois tem algo... Claro que tem!
— Maomé não vai à montanha, a montanha vem até Maomé — diz, chamando a atenção de Dom, enquanto coloca o capacete sobre a perna e apoia o braço sobre ele. Eu só continuo bestificada com a sua beleza.
Espera aí. Ela está citando ditados?
Ai... não acredito que eu estou com ciúme de ditados populares.
— Suzanna — Dom cumprimenta com um cordial aceno de cabeça, e passo a acompanhar cada movimento dele com a estranha.
Dom está desconfortável, tenso e continua evitando contato visual com ela. Em poucos segundos, meu instinto me diz o óbvio: se ainda não aconteceu nada entre eles ou não está acontecendo, não é difícil imaginar que há uma grande possibilidade de que algo aconteça. Cruzo os meus braços sobre o peito para assistir aos dois de camarote.
— Não vai se misturar aos selvagens hoje? — Suzanna pergunta com um certo ar debochado.
— Não. — Dom responde sem dar importância, e a mulher me encara como se fosse capaz de ver o meu incômodo por trás da viseira, sinto o meu rosto queimar.
— A princesa não desce do cavalo para que eu possa disputar um racha com o seu príncipe? — pergunta diretamente a mim com ironia.
— A princesa vai ficar exatamente onde está, hoje só a companhia dela me interessa — responde o dono do morro com um tom afetuoso, segurando em meu joelho, mas sem me dar oportunidade de falar, como se eu precisasse de porta voz. Tenho uma vontade enorme de beliscar ele igual a mulher que estava com Roman fez. Felizmente, me controlo.
A mulher arqueia as sobrancelhas por um breve instante e se ajeita na moto.
— Não vai mesmo correr hoje? — Ela parece não acreditar no que ouviu, e ele apenas abana a cabeça em negativa. — Então vim à toa — conclui tentando disfarçar a decepção.
A moça gira a chave na ignição da moto e dá uma olhada ao redor, como se esperasse Dom mudar de ideia, enquanto ele não dá a menor atenção a sua presença, até que desiste de ficar ao nosso lado.
— A gente se vê. — Suzanna ajeita o capacete e sai, me ignorando completamente.
Por baixo da viseira sinto o meu rosto se contorcer de indignação. Dom me olha do retrovisor e sorri convencido, só não entendo o motivo da graça. Ele coloca o capacete, liga o motor da moto, e eu aperto ainda mais meus braços contra o peito.
Dom parece esperar que eu me segure em sua cintura ou no bagageiro para sairmos dali, mas permaneço paralisada, agora eu sou realmente uma esfinge. Vendo que não vou ceder, ele acelera devagar e deixamos o descampado, pegando o mesmo caminho pelo qual viemos. Longe dos olhos de todos, encosta a moto no canto da estrada escura de barro e a desliga, depois tira o capacete.
— Não gostou do racha? — pergunta ao se virar para mim o máximo que consegue.
— Posso apontar várias coisas das quais não gostei e nenhuma tem a ver com o racha que nem cheguei a assistir — aponto com a voz abafada por dentro do capacete.
— Sou todo ouvidos — diz ao apertar o botão que abre a minha viseira.
— Eu me senti ridícula... — confesso, sem meias palavras. — Mas sinceramente, não quero conversar aqui no meio do breu. — Olho à minha volta e sinto um calafrio.
— Não vou dirigir com você sem se apoiar em alguma coisa, então é melhor falar logo — insiste, e eu amarro ainda mais a minha cara.
— Você não me deixou falar, me chamou de chave de cadeia e também senti um clima estranho de Suzanna comigo, para falar o mínimo — desabafo, inconformada, depois de tirar o capacete para tentar parecer menos ridícula.
— Entendi — fala encarando o chão. — Desça, por favor — pede, me olhando de viés.
— Não vou descer no meio do nada. — Sorrio de nervoso.
— Não tem como conversar com você nas minhas costas — Dom reclama.
— Não tem como conversar aqui — rebato, apontado para os lados.
Dom aciona o descanso da moto e faz um verdadeiro malabarismo para descer, me deixando no bagageiro. Eu fico com medo de cair, além do medo de aparecer um bicho ou algo do tipo. Ele se aproxima de mim parecendo se esforçar para ficar sério e começa a se explicar.
— Achei que a ideia era você não falar e não mostrar o seu rosto, mas se quiser socializar com o pessoal, a gente volta lá sem problema algum — oferece com um ar vitorioso. Eu entorto a minha boca e recuso. — A história da chave de cadeia foi só uma brincadeira para dizer que você prendeu o meu coração. Eu me expressei mal. — Ele foi convincente, apesar da péssima comparação. — Com relação a Suzanna, qualquer pessoa sente um clima estranho ao lado dela. — Dou um sorriso incrédulo, pois é algo bem difícil de acreditar.
— Vocês tem algum lance? — pergunto de forma direta.
— Ela vende o meu produto para o pessoal da alta. — Dom não responde a minha pergunta e sinto que tem mais.
— Não me respondeu se tem alguma coisa com ela...
— Está com ciúmes? — pergunta com um risinho na voz.
— Continua sem responder.
— Podemos conversar melhor em casa.
— Dom... — falo em tom de advertência.
— Já tivemos um contato mais íntimo — confessa, e sinto uma pontada no meu peito —, mas o que falei sobre qualquer pessoa se sentir estranho ao lado dela é verdade.
— Doeu? — Tento disfarçar meu desconforto com a ideia dos dois juntos.
— Não — responde me estudando.
— Não precisa me esconder nada, eu sei que não passou esses anos praticando o celibato. Agora vamos embora, por favor — peço e enfio o capacete de volta na minha cabeça.
Dom volta a subir na moto e liga o motor, no entanto, só acelera quando me seguro em sua cintura. Na estrada ele parece testar a minha resistência à velocidade, pois passa a ir bem mais rápido do que estava quando viemos no caminho para ir ao racha promovido pela facção que comanda.
Alguns minutos depois chegamos a um dos condomínios mais caros de Bela Vista, na região mais ao sul, próxima do litoral das praias mais elitizadas e distante do centro. A entrada do condomínio possui um lindo e amplo jardim com portões que pareciam dar acesso à outra cidade, por uma portaria altamente segura.
Dom libera a nossa entrada através da sua biometria e ao avançar, logo me vejo rodeada de incríveis mansões como é onde morei com Otávio. No entanto, a casa do senador fica em uma localidade mais central e com terrenos menores, aqui o espaço de cada imóvel é bem maior. Seguimos pelas ruas extremamente bem cuidadas até a mais recuada de todas, onde ao final, ele estaciona na garagem da última casa.
A fachada ampla é bem moderna, edificada em texturas que alternam o mármore com pedras sofisticadas, tudo em tons de off-white e grafite. Enormes vidraças substituem as paredes nos dois pisos, proporcionando uma vista da casa por dentro, que tem uma longa escada. Rapidamente presumo ser o acesso ao primeiro andar, onde imagino que sejam os quartos. A porta acompanha a geração das que são feitas para gigantes passarem por elas. Uma bela área externa arborizada rodeia a suntuosa residência.
Confesso que anos atrás não imaginaria Dom morando em um lugar assim. Não que eu tenha pensado sobre o futuro dele, acontece que sabendo de onde veio é algo bem difícil de se deduzir. Nesse pouco tempo que estamos mantendo contato, vejo que a realidade de um traficante é bem diferente da que imaginava.
— Uau... — vocalizo a minha surpresa alongando o som das letras quando tiro o capacete. Desço da moto e Dom faz o mesmo com um sorriso orgulhoso no rosto.
A moto fica ao lado da Range Rover de Dom e, aparentemente, são os dois veículos que ele possui. Ele segura em minha mão e nos afastamos do espaço destinado a garagem, indo em direção a porta que é aberta por um homem do qual certamente faz sentido tanto espaço para uma passagem, pois ele é praticamente um gigante.
Quando nos aproximamos, o homem com sobrancelhas caídas sorri para o dono da casa, fazendo com que seus olhos oblíquos praticamente sumam de tão apertados que ficam. Por trás do gigante com seus prováveis dois metros de altura e um corpo bem arredondado na circunferência da barriga, surge em passos mansos, feito os de um gato, uma leoa branca. Imediatamente, congelo assustada me escondendo nas costas de Dom.
— É domesticada, Dalena. Não precisa ter medo — avisa me trazendo de volta para o seu lado, mesmo com minha relutância.
— Imaginei que fosse, mas ela não me conhece — digo preocupada.
— Acontece que não está chegando sozinha ou com atitudes suspeitas e ela está sempre bem alimentada, então não há razão para ter medo — esclarece, enquanto o acompanho em direção a casa, apertando o meu corpo no dele.
— Chegou cedo. — O homem observa mantendo a simpatia. — O racha não tava bom hoje?
— Estava, mas não quis ficar por lá — responde Dom, quando o forço a parar de andar. Não quero arriscar entrar na casa com uma leoa na porta. — Essa é Dalena. Nos conhecemos há bastante tempo — diz, me apresentando ao homem, enquanto mantém os olhos fixos em mim.
— Conhece há mais tempo que eu? — O homem pergunta espantado.
— Nem minha mãe me conhecia há mais tempo do que você, acho que saí do útero dela para as suas mãos — brinca, e o homem sorri satisfeito.
— Ah, sim... Isso é quase verdade — responde risonho. — Prazer, moça. — Ele me estende a mão e a seguro de olho na leoa.
— Dalena, esse é Tiquinho. — Confesso que prendo um riso quando ouvi como o chamam, ele é totalmente oposto a tiquinho, tá mais para super muitão.
— Prazer — digo com simpatia, apesar de logo voltar a ficar um pouco tensa com a leoa, que está atenta ao que acontecia. Ela é um encanto, mesmo que me deixe extremamente receosa.
— Vocês querem alguma coisa? — Tiquinho parece ansioso por uma resposta positiva.
— Privacidade. — Dom responde, e dessa vez, não seguro a vontade de dar um beliscão disfarçado na sua cintura. Mas ele ignora a minha repreensão por sua grosseria. — Eu sei que está ansioso para conversar com Dalena, mas vou deixar você fazer isso à vontade no café da manhã.
— Ele me conhece — sorridente, Tiquinho diz para mim, apontando o dedo para Dom. — Quer que eu leve Branca?
— Só tire ela da porta ou não vamos entrar hoje. — Tiquinho obedece imediatamente e se afasta com a leoa.
— Por que disse que queria privacidade? — Aproveito o rápido momento a sós para perguntar.
— Acredite, se eu não dissesse isso, ele dormiria junto de Branca aos nossos pés.
— Espera — peço puxando ele de volta para frente da casa. — Vamos dormir juntos e com Branca também? — Dom apenas sorri e me puxa para dentro.
Quando entramos na sala, Branca se afasta de Tiquinho e deita aos pés de Dom, que se ajoelha e afaga a cabeça dela, depois ele segura a minha mão levando até a pelagem da leoa. Seus pelos são macios, apesar de parecerem bem firmes na região lombar, principalmente se acariciar na direção oposta. Eu me ajoelho também ao ganhar confiança, me divertindo com a experiência.
— Boa noite, jovens. Vou dormir, já está tarde — Tiquinho fala e sai depois que o cumprimentamos.
Sento ao lado de Branca, empolgada por estar diante de um animal tão exuberante. A leoa no início me ignora, mas aos poucos começa a corresponder às minhas interações e afagos, até que se arrasta para o meu colo, deitando o seu corpo incrivelmente pesado sobre as minhas pernas.
— Ah, não! — Dom diz ao levantar. — Ninguém vai roubar você de mim hoje, vamos lá pra cima — chama, estendendo a mão para mim.
— Só se Branca for — imponho, e ele sorri.
— Nem precisa pedir, ela vem.
Saímos da sala, subimos as escadas e chegamos ao piso superior, onde tem uma vista panorâmica da rua e algumas casas. Branca de fato nos seguiu até o quarto de Dom. O lugar é amplo com poucos móveis, tudo é basicamente embutido, apenas a cama ocupa um grande espaço em cima de um enorme tapete de pele sintética.
Grandes cortinas em tons de cinza cobrem as janelas, que oferecem uma vista infinita, dando uma impressão mais aconchegante. O colchão é coberto com um acolchoado edredom e uma comunicante de almofadas e travesseiros, todos seguindo o mesmo padrão de cor e contrastando com os detalhes brancos.
— Quer tomar um banho? — pergunta, enquanto imagino quantas mulheres ele trouxe aqui.
— Eu não trouxe roupa.
— Posso te emprestar uma.
— Eu só vou tirar a minha jaqueta por hora, depois penso em banho ou coisas do tipo.
— Fique a vontade então... eu só vou tomar um banho e vestir uma roupa mais confortável. Posso te deixar sozinha com a Branca?
— Claro! Acho que estamos nos entendendo bem.
Dom sai olhando para nós duas, feito um pai preocupado em dar as costas para suas filhas pequenas, sumindo onde imagino ser à entrada para o closet. Branca e eu nos olhamos como se o simples fato de ele sair por uns minutos, já fosse o suficiente para deixar saudades.
A leoa anda majestosa até o tapete de pele e deita sobre ele. Sigo os seus passos e me deito ao seu lado, tratando-a feito uma amiga de longas datas. Branca me permite se aconchegar ao seu lado sem se incomodar com meu excesso de carinho, até mesmo parecendo gostar, de um jeito adorável.
O ronronar dela vibra através da pele, proporcionando um estado de relaxamento para mim. Ficar ali, dividindo o espaço com um animal tão majestoso de forma tão íntima, me faz esquecer o mundo além das paredes. Por um instante, imagino uma existência onde vive-se apenas o presente, atendendo às necessidades do corpo, deixando a mente vazia de preocupações e abrindo espaço para a paz entrar na alma.
Meus olhos ficam pesados. Branca se aconchega mais um pouco junto a mim, com sua respiração pesada me acalentando. Minha mão aos poucos interrompe os afagos, meu cérebro vai se desligando para um breve descanso. Uma pancada macia atinge o meu rosto e vejo que a leoa tenta chamar a minha atenção para continuar os carinhos.
— Ahhh... você é uma gatinha manhosa — falo para Branca, e ela joga a cabeça por cima da minha barriga fazendo dengo. — Ui! — digo com o impacto. — Manhosa e bem pesada. — Ela não responde, apenas ignora que a sua cabeça deve pesar mais que o meu corpo inteiro, a deixando onde colocou, esmagando as minhas vísceras.
Usando uma roupa mais confortável — calça e camiseta de algodão —, Dom volta um tempo depois, nos presenteando com o seu delicioso cheiro que está gravado no meu olfato. Ele deita ao lado de Branca, invadindo a nossa festa sem ser convidado, mas totalmente bem-vindo. A leoa imediatamente esquece de mim, voltando a sua atenção para o seu dono, me deixando com inveja de ter a liberdade de ser dele.
— Por que não foram para a cama? — Dom faz a pergunta, e em seguida se posiciona mais de lado, apoiando a cabeça na mão, com o braço esticado no chão, formando um ângulo de 90 graus com o antebraço para cima. Observando sua postura, imito o gesto para deixar minha cabeça mais erguida e poder vê-lo melhor.
— Apenas acompanhei Branca, não sabia que ela tinha autorização para deitar na sua cama — explico, sabendo que estou evitando a cama dele, mas totalmente consciente que fazer isso não significa nada. Dom poderia me ter em qualquer lugar.
— Ela é mais dona dessa casa do que eu. — Sorri cheio de encanto.
— Como conseguiu um animal selvagem? — pergunto, curiosa.
— Presente de um parceiro do Paraguai.
— Mas é legalizada?
— Tem que ser ou o condomínio não aceitaria. Oficialmente, Tiquinho é o dono. Ele é dono de praticamente tudo o que é meu.
— Qual é a sua história com ele?
— É um velho amigo da minha mãe. Eles se conheceram ainda criança, e foi quem me ajudou na doença dela. Depois que ela morreu, arrombou uma funerária porque queria um bom caixão para o corpo dela. Tiquinho não queria que fosse feito o sepultamento social, mas acabou sendo preso, ele não foi muito inteligente — contou, tentando disfarçar a emoção da lembrança.
— Talvez estivesse muito abalado com a morte dela e não pensou muito bem — avalio. Com certeza isso foi uma medida desesperada.
— É, ele estava muito abalado e ficou ainda mais quando a polícia desenterrou a minha mãe e o dono da funerária pegou o caixão de volta. Ela passou muito tempo com seus restos mortais enrolados num lençol velho que o coveiro se desfez por gentileza, porque a prefeitura não quis mais dar o caixão social. A gente não tinha dinheiro nem para comida, dirá para resolver a situação a tempo de fazer outro enterro decente.
— Nossa... — minha voz sai carregada de pesar e meus olhos ficam marejados.
— Bom. De qualquer forma, hoje em dia, ela descansa como uma rainha. Transferimos seu ossinhos para um bom cemitério e ele está sempre por lá colocando flores e cuidando do túmulo. Não tínhamos uma foto decente, mas um artista fez uma pequena escultura que parece muito com ela.
— Ela deve estar muito feliz por ser tão amada por vocês, tenho certeza que isso é o mais importante. — Dom me dá um sorriso gentil. — Deve ter sido horrível para Tiquinho ter sido preso por algo assim.
— Se foi, mas depois que comecei a ganhar dinheiro, paguei um advogado para tirar ele da prisão. Antes de ficar bem de vida, me envolvi com uma juíza para ela me ajudar com o caso, só que infelizmente não rolou — explica.
— Por quê?
— Ela disse que não queria ser associada à soltura dele, muito menos a mim. Só estava afim de se divertir um pouco comigo — fala sem entrar em mais detalhes.
— Essa mulher não te ajudou em nada? — pergunto, tentando esconder minha indignação
— Ela me dava produtos de higiene pessoal, perfume caro, roupas e principalmente cueca — conta com certo divertimento.
— Por isso estava sempre tão perfumado quando chegava no almoxarifado — concluo, incomodada.
— Eu deixei de encontrar com ela depois que me pediu para dormir lá — diz, como se estivesse se justificando para mim. Meu coração se aquece, enquanto escondo um sorriso, por trás de Branca, que ressona entre nós.
— Ela foi a única com quem saiu por interesse? — eu me atrevo a perguntar.
— Não, mas foi a última. Cheguei a sair com outra ao mesmo tempo, mas a juíza não aceitava que eu estivesse com alguém além dela. Na esperança que ela ajudasse Tiquinho, aceitei — explica, sem se afetar com as lembranças.
— Ela não ficou chateada quando deixou de se encontrarem?
— Muito. Mas o que podia fazer? Subir o morro atrás de mim? Ela era a juíza do caso de Tiquinho e na audiência, nos encontramos. Deu a soltura dele e às vezes me vende sentenças. Hoje, nosso contato se resume a isso — finaliza, deixando a perna esquerda mais por cima de Branca.
Eu gosto de saber mais sobre Dom e da forma que me fala sobre a sua vida sem segredos.
— A amizade da sua mãe e Tiquinho parece ter sido muito forte.
— Era sim..., embora eu desconfie de que no fundo ele a amava além da amizade.
— Um amor platônico..., isso explica tudo.
— Exatamente... — concorda comigo, deixando sua mão passar por cima de Branca, que já dormia profundamente, e acaricia os meus cabelos.
— Estou com sono — digo com os olhos pesados, deitando a cabeça em Branca, o meu braço já estava dolorido por estar na mesma posição há tanto tempo.
— Quer ir para a cama?
— Não sei se é uma boa ideia — eu me preocupo. — Não vai me oferecer um quarto de hóspedes?
— Sabe que não. — Ele esboça um pequeno sorriso. — Não quero nada entre nós, principalmente uma parede.
— Nem Branca?
— Por enquanto ela ainda é aceitável.
— Por enquanto?...
— É... por enquanto. — Sorrimos um para o outro enquanto Branca dormia em segundo plano.
É curioso como uma paixão pode ser silenciosa por fora e barulhenta por dentro, pois nesse instante a minha boca descansa e meus olhos fitam Dom passivamente, mas por dentro os meus órgãos eclodem como fogos de artifício, fazendo uma verdadeira festa por simplesmente estar na presença dele. Seria vergonhoso se eu não tivesse a capacidade de possuir esse controle, já que provavelmente pularia em cima dele feito uma fã que se exalta de emoção ao ver seu ídolo.
— Estou vendo que não vai sair do chão. Vou pegar uns travesseiros — Dom observa. Em seguida, vai até a cama, voltando com o edredom e uma infinidade de travesseiros, enquanto tiro as minhas botas, que coloco no canto do quarto.
Depois que todos nós estávamos com a cabeça em uma superfície mais confortável, inclusive Branca, Dom nos cobre com o edredom. O quarto mantinha uma temperatura bem fria desde que chegamos, então me cobrir a essa altura, mesmo de calça jeans e meias, é o que estava me faltando para ficar perfeito.
Nossos braços se encontram por cima do corpo de Branca, criando uma sensação de proximidade e união entre nós três. Dom parece relaxado, e seus olhos pesam de sono. Eu sinto a minha mente se acalmar, enquanto o ronronar suave da leoa nos envolve em uma atmosfera de paz e conforto. Por um momento, tudo o que importa é estar ali, juntos, em silêncio, e deixar que o mundo lá fora desapareça.
Posso dizer que desde a última vez que dormimos no almoxarifado, eu nunca mais dormi com um sorriso no rosto. É surreal a capacidade que Dom tem de me trazer alegria somente com a sua presença.
|NOTA DA AUTORA|
Um capítulo bem fofo, fala aí se não foi? kkkkkkk
Um lindo momento de paz, apesar das revelações tristes sobre Dom, não é?
Agora me contem o que mais gostariam? Teve Branca, Tiquinho, Suzanna... O núcleo de Dom é bem movimentado kkkkk
Bom, mudando de assunto, vou falar de algo super especial... TE ESPERO NOS MEUS SONHOS chegou ao capitulo final e ficará disponível até o dia 15/04 aqui no Wattpad. Ela se tornou a minha obra mais lida, superando A MATRIOSHKA DO TURCO com mais que o dobro de leituras, somando as duas plataformas. Em 2 de abril fez um ano de publicação. Tenho muito orgulho dessa obra e de como parece um carinho para quem lê, apesar das tribulações da história.
Eu sei que muitos aqui estão relendo, mas quem não estiver, se puder, vai lá no último capítulo, deixar um coração que seja para essa despedida de Miranda e Flávio. Eles permaneceram somente como degustação aqui e completa apenas na Amazônia.
Para finalizar, quero saber quem deseja mais capítulos semanais de A VIDA NO MORRO COMEÇA CEDO ou um por semana está bom?
É isso! Um grande cheiro e até sexta.
Ah! Desculpa andar sumida do insta. Eu sei que muitos estão sentindo a minha falta por lá, mas estou num período que preciso me afastar. Assim que possível, volto!!
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