▓ CAPÍTULO TRÊS ▓
A madrugada e o dia foram longos. Mexi na mochila diversas vezes, tentando me distrair, sendo completamente inútil. Fui obrigada a pensar sobre o meu futuro, o que é algo torturante de encarar, por mais que tente me manter forte. A realidade do que me espera não me dá motivos para ficar tranquila.
Voltar para a minha mãe continua não sendo uma opção e agora preciso deixar a escola. Ainda não me sinto preparada para enfrentar o mundo lá fora, e isso está me deixando muito ansiosa. Mas o que realmente me azucrina é saber que não terei nenhuma ligação com Dom daqui para frente.
O barulho dos alunos e funcionários fora do almoxarifado começa a diminuir aos poucos. Aguardo impaciente a hora de encontrar o meu guardião. O frio na barriga só aumenta com o passar do tempo, enquanto minhas mãos também vão ficando mais geladas. O nervosismo não me dá trégua, mesmo sabendo que ainda vai demorar para Dom aparecer.
A luz amarela do poste ao lado do ginásio atravessa a pequena janela acima dos armários, formando faixas douradas na parede branca. Um pouco mais cedo do que o habitual, o som de passos cautelosos se aproximando da porta alcançam os meus ouvidos, quebrando o silêncio da escola durante a noite. Meu coração passa a bater mais forte.
Os passos são interrompidos diante da entrada do almoxarifado. Ouço um movimento dentro da tranca. Dom chegar mais cedo me deixou pensando: será que está arrependido por ter me mandado embora ou é um sinal que deseja se livrar logo de mim? Com essas dúvidas tomando conta da minha cabeça, fico mais tensa a cada segundo. Espero a porta ser aberta, sem conseguir disfarçar minha aflição.
Ontem, Dom determinou que eu deveria deixar a escola, mas tenho esperança que aconteça uma mudança de planos de última hora. Depois de um pequeno clique, a fechadura é destrancada. Ao empurrar a porta lentamente, uma figura monocromática, bem diferente do colorido que traz a figura com cabelos ruivos com os apaixonantes olhos azuis, entra no almoxarifado. Meu corpo fica tenso e não consigo me mover. Já sei que estou metida em problemas.
Merda!
Merda!
Minha mente corre a mil, tentando entender o porquê desse nojento estar no almoxarifado. Dom teria entregado o meu paradeiro ou o mandado até ali? Com um olhar rápido, vejo suas mãos segurando dois pequenos arames, que devem ter sido usados para destrancar a fechadura. Paralisada, concluo que se ele invadiu, está aqui por conta própria.
Merda!
O garoto vem na minha direção com o seu fuzil de estimação pendurado no ombro. Sua presença horripilante inunda o almoxarifado, destruindo as minhas fantasias encantadoras com Dom. Coalhada me lança um sorriso arrogante e malicioso. Quando se aproxima, deixa o seu rosto a centímetros do meu, me fazendo aspirar seu hálito ruim, tornando mais difícil não fazer cara de nojo. Ele pinça com as pontas dos dedos uma mecha dos meus cabelos. Em seguida, escorrega a mão pelos fios até chegar ao meu queixo, castigando o meu ser com o atrito do seu toque repulsivo.
Eu não quero morrer...
Ele vai me matar...
Eu vou morrer...
— Eu sabia que você estava aqui — diz satisfeito por estar certo em sua suposição. — Teria vindo antes, mas tudo na vida exige paciência — escuto tentando entender melhor o que ele está falando.
O meu pulmão infla e esvazia com mais urgência, como se me faltasse o ar. Mesmo com a atmosfera contaminada, aspiro todo o oxigênio ao meu redor. Piscos os olhos freneticamente, sendo difícil os fechar por tantas vezes seguidas e continuar enxergando a mesma figura quando se abrem.
— Todos os dias eu te acompanhava da laje até a escola. Depois que acabava a sua aula, também te filmava voltando para casa. Tudo no mais absoluto sigilo, esperando o dia que eu ia te pegar. Só que a gatinha fujona não voltou um belo dia, e só eu sabia o último lugar para onde ela tinha ido — fala sussurrando por todo o meu rosto, enquanto meu corpo parece estar em ebulição de tanto pavor.
Ao contrário do que se espera de alguém com um bom coração, Coalhada saboreia o meu medo feito uma entidade maligna que se alimenta do mal. Quanto mais apavorada eu fico, mais ele parece se divertir com a situação, pois seus olhos brilham enquanto os meus desabam.
— Tô ligado que aqui é área do chefinho, e Thundercat é quem dá o confere das paradas que guardam aqui. Mas... como tá funcionando a parceria de vocês? — pergunta curioso, se mantendo perto de mim.
— Não tem parceria — digo tentando controlar a voz trêmula, ao mesmo tempo em que me afasto lentamente para trás, como se fosse capaz de fugir das mãos dele num truque de mágica.
— Não tem parceria? — Agito a cabeça em negativa reforçando o que falei, na esperança inútil que isso o inspirasse de alguma forma a não me machucar. — Mas que otário! Se bem que ele só curte umas paradas com mais idade e grana. O cara não dá ponto sem nó mesmo, só quer um bagulho com interesse. Fica se passando por di maior e tem até uns rolê com uma juíza e a porra toda. Ele é cheio das influências — diz numa malemolência desdenhosa. Em seguida, ri maldosamente, vocalizando um som fino e entrecortado, bem semelhante a uma hiena.
Coalhada segura firme o meu braço, ao mesmo tempo que mantém o olhar vidrado para o chão, parecendo ter sido sugado por um pensamento. Estamos bem recuados no almoxarifado, olho a porta entreaberta bem a minha frente, desejando com todas as minhas forças passar por ela, mas não parece ser possível para mim.
Estou paralisada, não consigo me mover.
Eu me sinto deitada em minha cama, Sandoval e Coalhada são as mesmas pessoas. Tudo se mistura na minha mente. Meus olhos piscam frenéticos, tentando encontrar apenas uma realidade. Tenho a sensação de que estou embaixo d'água, como se o ar a minha volta me deixasse suspensa ao mesmo tempo que torna tudo lento e abafa os sons.
Um tímido raciocínio lógico me ocorre ao encarar o fuzil com os olhos esbugalhados. Coalhada deve ter entrado pulando o alambrado no fundo da escola que dá para a mata das dunas. O vigia não o deixaria entrar na escola com um fuzil. Então, se ninguém sabe que ele está aqui, ninguém virá em meu socorro.
Eu vou morrer.
Ele vai me matar.
— Agora que sei que tua parada com Thundercat é sem emoção... — vocaliza a frase com seu habitual deboche maldoso. — não vai ter problema algum a gente fazer uma festinha, não é? Eu tô cheio de vontade de lamber bem no meio das tuas pernas, igual a um cachorro louco. O que acha da ideia, hum? — Balanço a cabeça sem fazer nenhum movimento brusco. — Não?! Poxa, mó zuada você, hein! Tô aqui todo carinhoso... — Passa o dedo no meio do meu busto por cima da minha roupa.
Eu vou morrer.
Ele vai me matar.
Estou paralisada.
— Tô durasso, tá ligada? Eu quero ganhar uma sentada... — geme, levando a minha mão para o meio das suas pernas, me fazendo sentir o seu órgão enrijecido e meu corpo passa a tremer convulsivamente. — Faz cu doce não, novinha — implora com a voz mole e permaneço inflexível. — Tu ainda não tá na minha?
— Nã-nnã, não... — balbucio nervosa.
— Beleza, então — diz ao mesmo tempo que escuto o click de um canivete. Sua lâmina logo surge no meu rosto. — Tira a roupa — manda.
Coalhada se afasta por um instante, apontando o canivete para mim. Ele anda até a porta, confere rapidamente se tem alguém pelo ginásio e volta a deixando entreaberta do mesmo jeito.
— Ainda tá vestida? Tá pensando que eu tô com o tempo do mundo todo ou que sou bonzinho? — Passa o canivete na minha coxa, fazendo um corte por cima da legging, depois de um grito fino começo a chorar desesperada. — Não fode o bagulho ou o bagulho vai ficar doido — avisa alterado, tapando a minha boca. Controlo o volume do meu lamento desesperado e ele tira a sua mão.
O garoto se afasta, empunhando o canivete. Próximo à porta, solta o fuzil do ombro e o coloca em pé, no canto da parede, entre os armários abarrotados de artigos esportivos. Começo a despir a minha roupa devagar, sentindo que nunca desejei tanto ver Dom passar pela porta do almoxarifado.
— Já mandei a real que não tô com tempo! — ralha ao me cortar novamente, agora na lateral do meu braço. Solto outro grito e imediatamente tapo a minha boca quando ele ameaça vir para cima de mim.
O medo constante de outro ataque iminente por parte de Coalhada anestesia a dor nos cortes que sofri. Tento me manter alerta como Dom ensinou - eu não estarei morta, até realmente estar. A lição só me ajuda em parte, porque tenho dificuldade em encontrar uma maneira de me defender ou escapar se ele atacar.
É impossível para mim enxergar uma oportunidade para arriscar fugir. Minha mente fica constantemente ocupada com o pensamento do quanto quero que isso acabe. Sem ver uma saída, passo a me sentir separada do meu corpo. Amedrontada, eu tiro a roupa com mais pressa, usando apenas uma mão, enquanto a outra abafa o meu choro, até que fico somente de roupa íntima.
— Tá tirando com a minha cara? Porque ainda tô te vendo vestida? — pergunta de um jeito hostil.
Rapidamente removo os pequenos pedaços de pano em completo estado robótico, deixando o meu corpo completamente exposto. É doloroso sentir que a nudez pode trazer uma sensação de aprisionamento, ou como o olhar de alguém sobre a pele nua pode machucar fisicamente.
— Deita e abre as pernas — manda e permaneço em pé chorando, feito um coelho acuado por um predador. — Tá surda? — grita agressivamente e desfere um chute atingindo a parte baixa da minha barriga, fazendo com que eu emita um pequeno grito, enquanto caio ao me desequilibrar com o impacto.
Todo o meu corpo nu se dobra no chão com uma dor insuportável no meu abdômen. Tento puxar o ar, como se estivesse me afogando e buscasse a superfície da água em agonia.
Eu vou morrer.
Ele vai me matar.
Será que a minha mãe vai chorar por mim?
Tudo me ocorre em um milésimo de segundo.
— Agora vai abrir as pernas ou quer que eu arranque para ser mais rápida? — pergunta me trazendo de volta a realidade, ao mesmo tempo em que engasgo no meu próprio choro.
Coalhada vem em minha direção e atinge mais algumas vezes a minha barriga com seu pé. Ele se diverte sadicamente, como se estivesse chutando uma bola por brincadeira. Os gritos de dor e pavor saltam mudos da minha garganta por medo de irritá-lo ainda mais. Protejo o meu estômago, me encolhendo no formato de uma semente, mas tenho meus braços e dedos esmagados pela ponta do seu tênis.
Ele ergue o meu corpo, puxando a minha cabeça por todos os fios que tem no topo dela. Vou levantando num choro desesperado, tentando aliviar a força que faz e amenizar a sensação que o meu couro cabeludo está sendo arrancado. Ao finalmente ficar em pé, sou chutada tão forte que me dobro novamente ao meio com a dor lacerante e logo caio ao ser empurrada.
— Você demorou tanto, que estou quase desistindo de te comer e achando mais divertido te arrebentar. Talvez eu te foda quando já estiver morta, porque não vai ter tanto nhenhenhem — diz impiedoso ao mesmo tempo que me bate mais, me apavorando completamente ao que continuo tentando me proteger.
Eu vou morrer.
Ele vai me matar.
Quando levanto o rosto imaginando que estou em meus últimos minutos de vida, vejo bem a tempo Dom surgir como um gigante por trás dele e o atingir com um halteres em sua nuca. A pancada é forte o suficiente para fazer com que Coalhada desmaie e vá ao chão sem nenhuma reação.
Dom.
Ainda estou viva.
Um par de olhos azuis espantados me fita encolhida no chão. Dom ensaia um movimento, parecendo vir me ajudar ao estender os seus braços para mim, porém recua rapidamente virando o rosto para me dar privacidade. Noto que ele procura as palavras, visivelmente abalado com a cena que testemunhou.
Ainda estou viva.
— Não quero te pressionar nessa situação... — lamenta num visível desgosto —, mas ele não vai ficar desacordado por muito tempo, seja rápida, se vista logo. Enquanto isso, vou ficar de guarda ou podemos ser pegos desprevenidos — avisa com uma expressão penosa, ainda evitando me olhar nua.
Sinto vergonha. Meu rosto arde.
Ainda estou viva.
— Precisa ser forte, Dalena. Vista a roupa rápido e desapareça, que eu cuido do resto — Dom diz de um jeito preocupado e me dá as costas completamente para eu ter mais privacidade.
Um misto de alívio, desespero e raiva eclodem no meu corpo. Meus olhos são atraídos, inconscientemente, para o canivete. Os cortes na minha perna e braço sangram com um ardor forte. Minha respiração se transforma em algo animalesco ao fitar o Coalhada inerte no chão.
Rapidamente, eu agarro o cabo madrepérola entre os dedos, salto sobre o corpo caído do garoto e enterro a lâmina em seu peito, fazendo ele ter um espasmo, sem que Dom tenha tempo de me impedir. Repito a estocada de novo e de novo. Cada vez que espeto o seu corpo, me sinto fazendo justiça, como se finalmente pudesse devolver toda dor que causaram tanto a mim quanto a Nina.
O sangue jorra em meus pulsos firmes.
Eu mato Sandoval.
Eu mato Pampa.
Eu mato Coalhada.
Vocês estão mortos!
Morra!
Morra!
Morra!
Repito o ato ensandecidamente, urrando com o mais puro ódio correndo em minhas veias até ser arrancada de cima dele. Meu sangue está quente, meu corpo está quente, minha mente está a duzentos e vinte por hora, fervendo, borbulhando, rompendo com qualquer pensamento lúcido.
Morra!
Morra!
Morra!
— Me larga, me larga! — berro rouca entre a mão de Dom que tenta abafar os meus gritos carregados de revolta.
— Mas o que deu em você? — Ele aperta mais forte a minha boca.
— Eu vou matar ele! — grito por baixo da sua mão, sacudindo o corpo.
— Ele já tá morto! Ele já tá morto! — exclama no meu ouvido e começo a me controlar. — Fica calma, Dalena. Precisa se acalmar, não temos tempo. — Dom me aperta, tentando me confortar.
Meus olhos fitam o peito ensanguentado do garoto e a sua falta de expressão no rosto, confirmando que ele realmente está morto. Me viro bruscamente para Dom, agarro o seu corpo, enfiando o meu rosto no ombro dele, que me acolhe acariciando as minhas costas, até eu ficar mais controlada.
— Você não pode mais ficar aqui, tem que ir embora agora. Entendeu? — Dom diz, me apertando em seus braços.
— E-e-eu não vou te deixar sozinho com esse problema. Vamos criar um plano — aviso um pouco atordoada, e Dom me olha intrigado. — Também não posso sair na rua ensanguentada com um soldado do tráfico morto. Se alguém me ver, vai deduzir fácil. Preciso de um banho enquanto penso — digo com o raciocínio a mil.
Tentando fugir das consequências que meu crime pode nos causar, minha cabeça fica sobrecarregada com todas as informações que absorvi assistindo séries americanas sobre crimes. De tudo o que eu vou lembrando, nada se encaixa para essa situação. Surge somente o básico, algo que qualquer criança é capaz de deduzir: nada de digitais, se livrar da arma do crime e destruir as pistas que indiquem a minha presença na cena.
— Não toca em nada e fecha os olhos, por favor — peço e saio para o vestiário feminino tentando ser o mais prática possível.
Abro o chuveiro vendo o quanto estou trêmula, parece que um terremoto está acontecendo em meu corpo. As imagens do que acabei de viver surgem repetidamente nos meus pensamentos, impedindo que eu consiga concluir qualquer raciocínio para me livrar do meu crime ou o provável fato de que eu e Dom seremos mortos pelo tráfico.
O meu chão some quando entendo que Dom vai morrer se eu não pensar em nada. Ele não tem culpa. Se qualquer coisa acontecer com a única pessoa que me ajudou, não vou me perdoar... jamais. De repente, as cenas começam a se anuviar na minha mente. Coalhada me batendo, eu o matando, até que essas memórias fogem dos meus pensamentos dando espaço para a voz do meu professor de português.
"Tudo na vida é uma narrativa. Se você dominar o enredo, você consegue dominar qualquer situação. Uma redação, que é um texto dissertativo, tem uma fala diferente de um poema ou de uma história contada em um livro, mas todos precisam da narrativa para transmitir uma ideia lógica."
De forma acelerada, lembro cada palavra da aula de redação.
"Um bom mentiroso precisa do quê para que acreditem nele? De uma boa narrativa. E um bom escritor? De uma boa narrativa. Um aluno com uma redação nota mil no Enem, precisa de: uma boa narrativa... — acompanho a voz dele na minha memória. Como se faz isso? Fechando todos os pontos, guiando o olhar do leitor para uma estrutura textual que faça sentido, ou seja: nexo causal e verossimilhança."
É exatamente isso, concluo com minhas mãos ainda sacolejantes e minha testa enrugada. O dono do morro é o leitor principal, quer dizer... ele é a pessoa que precisa ser enganada de uma forma que não enxergue mais nada além do que eu mostrar. Minhas notas em redação sempre são dez, eu consigo contar uma boa narrativa, na verdade, uma boa mentira.
Tomando banho, estudo inúmeras possibilidades. Todas tem uma infinidade de riscos envolvidos, mas chego a uma narrativa perfeita, enquanto molho os cortes que ganhei, esperando o sangue estancar. Depois da ducha, sem dar espaço para os meus pensamentos serem tomados pela experiência de ter sido praticamente estuprada mais uma vez ou de ter matado alguém, visto uma roupa concentrada no plano.
Paro um momento para me acalmar, se eu não mostrar confiança, Dom não vai acreditar no meu plano, e preciso que ele acredite. Começo a lembrar de nós dois, das suas implicâncias, do jeito que se preocupa comigo, dos últimos dias, do nosso beijo. Não é fácil voltar ao estado normal, porque as coisas ficam voltando junto do que ouvi de Nina, do que passei com Sandoval e do que acabei de viver.
Enxugo o meu rosto, e depois, cruzo os braços sobre o peito para não demonstrar o meu pânico. Saio do vestiário repetindo para mim mesma que eu consigo. Ao passar pela porta do almoxarifado trancada, encontro Dom sentado na arquibancada. Preciso ser rápida, pois o tempo é crucial para o plano que elaborei. Se Caldeira, o dono do morro, desconfiar de algo, tudo pode dar errado.
— Então você matou alguém primeiro que eu?... — pergunta tentando aliviar a tensão quando paro em sua frente. Noto que ele me observa com um olhar que eu ainda não conhecia. Dom parece assustado.
Acredito que esteja apreensivo por eu ter assassinado alguém e isso o deixa preocupado sobre mim, sobre se vou segurar essa situação. Apesar de ainda não conseguir entender o que aconteceu há pouco, sei que preciso seguir adiante, fingir que isso não foi nada ou seremos descobertos. Então, não vou nos colocar em risco.
— Fiz o que falou: ficar esperta e aproveitar o melhor momento — aponto, falando o mínimo possível, buscando passar segurança.
— Quer dizer que fui um bom professor? — tenta puxar assunto, acho que ele está me testando.
— O melhor que eu tive — minha voz soa fraca, pronunciando as palavras com um sabor amargo, estou prestes a cair em prantos.
Eu preciso aguentar firme.
— Fico feliz com o reconhecimento — agradece e dá um longo suspiro. — Eu ia matar ele, só não quis fazer isso na sua frente. — Engole em seco e desvia o olhar, com um semblante sério. Depois, volta a me olhar. — Você acabou de sair da barra da saia da sua mãe, nunca se envolveu no mundo do crime, enquanto eu sei mais sobre isso, entende?
— Vai me dar sermão agora? Achei que estivessemos sem tempo — tento sair da situação antes que eu desabe.
Preciso aguentar firme.
— É que as coisas não funcionam assim... Você não sai da casa da sua mãe e mata alguém...
— Então, eu deveria estar no lugar dele?
— Nunca — afirma com firmeza, mas vejo em seu olhos o medo de sermos descobertos por eu não aguentar firme.
Encaro o chão por um instante, me sinto culpada por ter colocado Dom nessa situação. Foi um erro ter deixado o tempo passar, explorando a boa vontade dele. Se tivesse ido logo encarar a minha vida, talvez nada disso tivesse acontecido. Qualquer coisa ruim que acontecer a ele, será minha responsabilidade.
Eu preciso aguentar firme.
Penso em Nina.
— Quem é o viciado mais problemático do morro? — vou direto ao ponto, com o coração ainda tomado por um misto de ânsia e pavor, é muito arriscado ficar aqui.
— É... — vocaliza ao pensar.
— Nem precisa me dizer — interrompo, porque o tempo não está a nosso favor. — Você vai contar ao Caldeira que veio aqui e encontrou a porta do almoxarifado aberta com o Coalhada morto no chão. Também vai dizer que deu uma busca na área e viu o Pampa tentando pular o alambrado em direção à mata. Diga que correu atrás e ele fugiu, mas conseguiu arrancar das costas dele uma mochila, que você vai encher com a droga, dinheiro ou o que quer que seja que o tráfico guarda no almoxarifado. Esse é o plano — explico em poucas palavras.
— Você não sabe escolher a comida para uma fuga, mas sabe como encobrir um assassinato? — Dom dá um sorrisinho descrente. Ele está mais confuso a cada minuto.
— Primeiro, não sou obrigada a saber tudo. Segundo, eu não podia viver só de bolacha e pão seco, achei que a salsicha aguentaria. — Aperto um pouco mais os meus braços envolta do meu corpo.
Enquanto me contorço por dentro, Dom pensa pacientemente no meu plano. A calma que ele demonstra, dá a impressão de que não existe um corpo estirado no chão há alguns metros de distância da gente. Começo a suar frio, temendo alguém nos surpreender ou algo do tipo.
— Caldeira guarda ouro dentro dos artigos esportivos — revela, se referindo ao que o dono do morro esconde no almoxarifado.
— Sério? — pergunto surpresa. — Tipo, ouro de verdade?
— Sim, você chegou perto quando falou dos Goonies — diz, e lembro que conversamos sobre o filme. — É um verdadeiro tesouro. Notas apodrecem e coisas do tipo, o ouro não. Além de não ser rastreável. Ouvi o Caldeira dizendo essas coisas.
— Ele não tem medo de esconder ouro numa escola?
— Agora vai ter.
— Acho que isso é bom pra gente, é uma coisa a mais para ele se preocupar. Faz tempo que ele guarda ouro aqui?
— Não. É só por enquanto, vão realocar a qualquer hora e guardar outras paradas, por isso insisti para você ir embora, podíamos ser surpreendidos — diz e depois acrescenta: — Eu tinha pensado em jogar o corpo dele na mata da duna. Não sei se o seu plano vai colar.
— Sair arrastando um cadáver até um bom lugar de desova é muita exposição, sem contar que ele será encontrado uma hora ou outra, a mata daqui tem muito movimento dos próprios traficantes — alego, achando bem arriscado. — Com o meu plano você vai dar a direção e deixar que deduzam o resto. Sem contar que não vão querer que a história vaze, porque estavam usando uma escola pública. Eles vão sumir com o corpo ou essa história vai vir com tudo pra cima do tráfico.
— É muito arriscado, esconder o corpo parece mais simples.
— Pensa, Dom. Está entregando um possível traidor, o ouro e um viciado cheio de treta com a sua facção. A Armada do Crime, ou até mesmo os Fuzileiros do Morro vão matar ele de qualquer jeito. — esclareço apressada, assistindo a sua expressão de insatisfação. — Eu juro que ninguém nunca vai saber que eu estive aqui e que sou o motivo da morte dele
— Não é só o risco de você não aguentar a pressão. O Pampa só não comeu terra ainda, porque é filho de um policial — pondera, ainda desacreditado do meu plano. — Sabia disso? Porque a ArCrim sabe. Na hora que esse noiado for pego, vai estourar uma bomba no morro.
— É só mais um motivo para a história não se voltar contra você. A ArCrim não vai ter tempo de pensar e precisa agir rápido para punir o Pampa, antes da polícia interferir. Assim que o gatilho for puxado, ficará envolvida nesse problema por um bom tempo — prevejo. Isso é muito óbvio para mim. — "O tráfico mata primeiro e pergunta depois", o apresentador do Policia em Ação fala isso o tempo todo na TV.
— Mesmo assim, o cara vai negar — Dom continua resistindo.
— Qualquer um nega, até quem é culpado — digo apressada. — Se a gente quer sair ileso dessa, temos que ousar. Assisti alguns filmes de suspense, o crime fica mais complexo quando é colocada a culpa em outra pessoa, principalmente se silenciar o bode expiatório o quanto antes. O tráfico não faz uma investigação como a polícia, que pergunta, procura provas e testemunhas, pacientemente.
— Você é uma nerd — diz e pensa por um momento, até que finalmente o vejo concordar com um aceno positivo de cabeça. — Tá certo, vamos fazer assim então. Não vai ter problemas na consciência de jogar a culpa em outra pessoa? — pergunta, preocupado. — Acabou de matar um soldado do tráfico, e está planejando a morte de viciado. Quer mesmo entrar com os dois pés no mundo do crime?
A voz de Nina vem na minha memória, relembro tudo o que ouvi em um milésimo de segundo, me fazendo ter a certeza que jamais irei me arrepender. A justiça do morro vai valer para ela também, Pampa não pode ficar impune só porque é filho de policial.
Sandoval, Pampa e Coalhada despertam um lado meu que me assusta.
— Eu sei quem é o cara. Não é só filho de policial, é um ajudante do grupo de extermínio. Sandoval disse que ele sempre vai no açougue extorquir por lá. Também ouvi no banheiro uma garota contar a uma amiga que foi pega a força por ele em uma festa e estuprada.
— Ah, Dalena... — Dom remexe a cabeça, incomodado com o que ouve.
— O verme nem usou camisinha, ela tá com medo de ter pego uma doença, engravidado ou as duas coisas. Também tem medo de conversar com a mãe. Além de ter sido ameaçada por ele, não pode ir na polícia, porque o Pampa é filho de um deles... — conto sentindo o meu sangue ferver.
— Tá fazendo isso de caso pensado, Dalena? Tá querendo dar uma de heroína e exterminar os estupradores do morro? Você já sabia em quem eu ia pensar. Está me usando? — desconfia das intenções do meu plano.
— Estou trazendo algo bom para isso — afirmo, convicta. — Na justiça do morro, como estuprador ou traidor a sentença dele é uma só. Ele merece ser punido.
— Mas você só ouviu uma conversa no banheiro?
— Acha mesmo que ele não fez? — Franzo o cenho levemente irritada.
— Não é isso. Matar uma pessoa por mais repulsiva que ela seja tem um peso, e o defunto pode levantar dos mortos. Tem certeza que vai aguentar a pressão? — Dom parece um pouco incrédulo da minha capacidade. Ele sabe que uma consciência pesada pode ser uma ameaça para fazer tudo desandar.
— Mataria muito mais pessoas assim se eu pudesse — assumo sem pestanejar.
Eu queria que alguém tivesse me defendido assim de Sandoval, me protegido dele, como Dom me protegeu de Coalhada. Viver esse trauma sem ter alguém que se importe da mesma forma que a minha mãe fez, torna a sensação de desamparo muito maior.
Nina nunca saberá que eu fiz isso por ela, mas talvez pense que Deus ouviu as suas preces. Com certeza, a garota reza para o Pampa morrer, assim como eu rezo para que Sandoval morra. Coalhada também me despertou esse desejo, com o azar de ficar indefeso entre o meu ódio e um canivete.
— Por você tá tudo bem? — pergunto a Dom. Ele me olha por um momento enquanto a pressa me corrói.
— Eu não tenho pena de filho da puta, Dalena — fala com frieza.
— Então fechô. Eu vou embora e você cuida do resto — oriento, encerrando o assunto.
— Sabe, você não é uma garotinha fujona — diz como se pedisse desculpas.
— Eu sei que não... — Os meus olhos pesam. — Talvez eu tenha envelhecido um ano a cada dia desde que fugi de casa. Acho que a minha idade mental agora não é a de uma pré-adolescente, me sinto até mais velha do que você.
— Não sente medo disso, medo de crescer tão rápido?
— O que você sente ao ver que não pensa mais com a idade que tem? — Meu cenho fica franzido ao fazer a pergunta.
— Sinto que tenho a direção da minha vida, para melhor ou pior. Dá medo, ao mesmo tempo que me mantém mais esperto.
Baixo o meu olhar por um instante pensando sobre o que ele disse.
— Talvez seja isso, estamos controlando o nosso destino, ou pode ser que seja o nosso instinto de sobrevivência nos mantendo vivos até a hora que ele falhe, e aí acabamos descobrindo que ainda somos crianças — reflito.
— Talvez... Apenas..., não se perca de quem você é. Não deixe o seu sorriso aqui.
— É uma promessa que não posso fazer. Diz o ditado que as rosas caem e ficam os espinhos — minha voz fica embargada. — De qualquer forma... só obrigada, Dom — agradeço de uma vez, não temos muito tempo. Saio rapidamente desejando um último abraço, mas não arrisco para não demorar ainda mais.
Passo no almoxarifado para pegar a minha mochila. Encaro o Coalhada sem vida no chão, me obrigando a não levar qualquer tipo de remorso comigo e corro até o alambrado do fundo da escola. Depois de escalar a grade sem dificuldade, pulo garantindo não ser vista por ninguém pelo lado que dá na mata, desaparecendo logo em seguida pelas dunas em meio as árvores, me esquivando dos olhos de qualquer um do tráfico ou morador. Isso é fácil, porque à noite, as pessoas ficam trancadas em suas casas.
Queria um tempo para me acalmar, mas se alguém me ver zanzando por aí, vou levantar suspeitas e não posso arriscar mais o pescoço de Dom. Ainda trêmula, sigo na direção do bar de Lourdes, levando a sensação que me escondi da vida por esses dias, só que ela me encontrou novamente, como uma predadora perigosa.
Agora, o que me resta é enfrentar a realidade.
Voltar para a casa de Sandoval não é uma opção.
Eu preciso aguentar firme.
|NOTA DA AUTORA|
Foi por pouco... Muito pouco... Quase que Dalena sucumbe nas mãos de Coalhada.
Deixem suas impressões sobre o capítulo, até breve! ✿◕‿◕✿
Sexta tem capítulo de TE ESPERO NOS MEUS SONHOS
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