▓ CAPÍTULO DOIS ▓
Acordo ao som do alarme irritante do meu celular, aspirando o odor de plástico do tatame, passo a mão no pescoço e sinto a pele molhada de suor. Desgrudo o rosto do tecido e contemplo uma mancha úmida no formato distorcido do meu perfil. Queria poder tomar um banho e refrescar o corpo antes de me trancar, mas tenho medo de não ter tempo o suficiente, então prefiro voltar para a minha toca.
Olho em volta do ginásio e me pergunto como em um ponto tão alto do morro faz tanto calor, principalmente pela escola ser rodeada pelo verde das dunas. Eu sei que Belo Rio é uma cidade pra lá de quente, mas aqui deveria ser ameno, já que Tia Ondina fica na parte litorânea da cidade, por trás do metro quadrado mais caro do município, onde tem a orla de Grão Marfim.
O vento nessa região da cidade é abundante e, apesar de ter a nossa frente um paredão com vários condomínios de luxo em uma avenida beira-mar, ainda estamos na parte mais elevada, em cima de dunas. O melhor disso é a vista privilegiada do oceano Atlântico, sem contar no lindo farol que é cartão postal da cidade.
Coloco uma salsicha no pão e como em algumas mordidas. Vou até o bebedouro e abasteço a minha garrafinha com água para passar mais um dia. Antes de me enclausurar definitivamente na cabine, bebo um pouco tentando amenizar o calor ao me hidratar.
Sinto falta de ir para a aula, eu gosto de estudar. No geral, meus professores são gentis e me acham acima da média. Ao contrário deles, minha mãe sempre me chama de burra e pergunta para quê eu ainda estudo quando faço algo errado em casa. Sei que deveria confiar mais na opinião de alguém diplomado, é que na verdade, me dói ela não enxergar nada de bom em mim, nem mesmo os meus méritos.
Caminhando pelo ginásio, noto que um mal estar percorre os meus ossos, mas imagino que tenha sido o desconforto de ter dormido no tatame. Antes de começar o movimento de alunos e funcionários, vou para a cabine sanitária. Fico trancada durante o dia inteiro dividindo os meus pensamentos com as conversas do banheiro.
Acompanho as mesmas pessoas irem até lá para fazerem as mesmas coisas. Inclusive, o trio de garotas do dia anterior, repete a dose e fazem sexo na cabine ao lado, parecendo estarem com mais fogo no rabo do que no dia anterior. Conforme as horas passam, o mal-estar aumenta, assim como o calor que sinto.
Quando o turno escolar está prestes a terminar, ouço passos de alguém entrando no vestiário, o barulho de livros sendo soltos em cima do banco de madeira e uma garota chorando. A torneira de uma das cubas é ligada, o fluxo da água é interrompido algumas vezes, até que por fim, ela assoa o nariz, fungando devido o seu choro.
— Cheguei! — Uma segunda garota se anuncia com a voz arfante, como se tivesse vindo correndo. A chegada dela intensifica o choro da primeira. — Calma, vamos conversar. Já viu se tem alguém nas cabines?
— Não — responde a garota chorosa.
— Eu confiro — diz a segunda.
As portas das outras cabines rangem uma a uma ao serem abertas. Ergo minhas pernas sobre o sanitário e me encolho. Meu coração fica palpitante, o medo de ser descoberta toma conta de mim. Eu me sinto em um daqueles filmes de terror, onde o assassino está procurando a vítima no banheiro.
Ao chegar na cabine em que estou, a garota empurra a porta algumas vezes, fazendo o trinco sacolejar na pequena tranca de metal. A aluna se abaixa para olhar por baixo. Tensa, mordo o meu punho para controlar meu desespero, mas ela se dá por satisfeita ao não encontrar pés no seu campo de visão.
— Tudo limpo, pode falar.
— Eu nem sei por onde começar. — A garota funga, ainda chorosa e a outra solta o longo suspiro.
— Calma... Fala primeiro como foi parar nessa festa.
— Soninha, aquela garota do segundo ano médio, me convidou. Ela disse que Lelo estaria lá. Você sabe que sou super apaixonada por ele, então eu fui. A casa que rolou a festa é da namorada do cara da boca do Beco da Lama, ela tem praticamente a nossa idade e mora sozinha.
— Ela estava lá? — pergunta a garota que chegou depois. — Sabia o que estava rolando na casa dela?
— Sim, o cara da boca também, o tal do Boy Loco. Ouvi dizer que é de quem o Pampa compra a droga.
— Ninguém fez nada? — questiona num tom revoltado.
— Não. Acho que parecia que eu estava permitindo, não sei... — O choro da garota intensifica novamente. — Lembro de tudo em flashes e não consegui reagir a nada. Eu só estava ali com o Pampa fazendo o que queria, entende?
— Onde estava a Soninha e o Lelo?
— Assim que eu cheguei o Lelo saiu com uma garota, ele nem me notou, Paty. — A garota funga. — A Soninha estava com um cara lá que não conheço, acho que era amigo do Pampa. Eles me ofereceram uma batida, eu aceitei, estava gostoso. O som estava muito alto, a casa muito escura. As pessoas se pegando em todo lugar, tipo, ninguém tá nem aí, sabe? O lugar só cheirava a droga...
— Então você ficou bêbada, Nina? — Paty questiona com espanto
— Nããão... — A garota responde desesperada, abafando o grito. — Que dizer, devo ter ficado. Eu não sei, nunca bebi. Tenho medo de ter sido drogada pelo Pampa. Era como se eu estivesse dormindo sem estar, como se eu vivesse um pesadelo real e não pudesse fazer nada. Ele me levou apoiada no ombro dele para o fundo da casa. — A voz dela começa a tremer. — Ti-ti-tinha outros homens olhando... Eu fui deitada em uma mesa... Só lembro da dor. Ainda dói... Dói muito.
O relato de Nina me deixa apavorada. Sinto o peito arder, as palavras que ouço dela, me arrancam lágrimas pelo medo de ter chegado tão perto de passar por isso. Minhas pernas ficam trêmulas, mal consigo me mexer.
— Nina... — Paty balbucia, e a garota cai em prantos. O desespero dela podia ser o meu, parece ser meu, é como se eu estivesse chorando. — Tem que ir na polícia, eu te acompanho.
— Não! Minha mãe me mataria e ele também. Você sabe que Pampa está no grupo de extermínio e é filho de policial. Tenho medo dele voltar...
O pavor de Nina me apavora.
— Ele passou a noite comigo... E-e-ele... machucou todas as partes do meu corpo e não usou camisinha. Estou sentindo tanto nojo de mim, da minha boca, da minha pele... E se eu estiver grávida? E se ele tiver me passado uma doença? — Nina diz sem parar de chorar em desespero. — Tem mordidas no meu corpo, hematomas, minha roupa ficou manchada de sangue... — Paty fica chocada ao ver o que a amiga vai mostrando.
Tapo os meus ouvidos enquanto Nina continua a falar, é demais para ouvir, é demais para processar. Eu quero dar um abraço nela, quero pedir que se junte a mim, quero poder cuidar dela, quero matar Pampa e dizer que ele nunca mais vai cruzar o seu caminho.
Quando elas saem do vestiário, alguns minutos depois, meu corpo está ardendo em febre. Pampa, Sandoval, eu odeio esses filhos da puta. Eles merecem morrer da pior forma possível. Estou desgastada e enjoada. Não foi difícil de associar a situação de Nina ao meu próprio desespero com as visitas noturnas que recebi no meu quarto.
Ao final da noite meu corpo arde em chamas invisíveis, me deixando completamente fraca e desorientada. Sentada sobre o sanitário da cabine falsamente interditada, encosto o meu ombro na parede, adormecendo por algumas horas devido a febre alta. Durante esse tempo, acordo em pequenos flashes confusos entre uma cochilada e outra.
— Dalena... Dalena... Não precisa ficar aí trancada se não tem ninguém aqui. — Ouço a voz de Dom do outro lado da porta depois de algumas batidas.
— Está tudo bem, só estou dormindo um pouco, fiquei muito... — penso em Nina, mas guardo o segredo dela. — Fiquei muito cansada hoje — respondo com os olhos pesados.
— Cansada? — pergunta e me sinto cansada até para responder.
Vejo Dom se afastar e adormeço novamente.
— Dalena... Dalena... abre a porta. — Escuto Dom pedir insistentemente por cima da divisória da cabine ao lado. — Dalena...
— Hum... — resmungo.
— A porta.
Olho para cima e o vejo com uma expressão preocupada, faço um esforço e giro a trava. Logo me sento novamente, colocando o dorso da minha mão sobre o meu pescoço. Quando me toco, sinto um calor ardente, isso indica que uma febre alta é a razão da minha temperatura elevada. Dom repete o que acabei de fazer, constatando o mesmo.
— Você tá doente, muito doente — ele sussurra. — Vem, vamos sair desse banheiro. — Tenta me ajudar a levantar.
— Não, me deixa, eu vou ficar bem. Não me tira daqui — peço com a voz fraca. — Tenho medo de voltar para a casa de Sandoval, medo de que faça igual a Pampa.
— Eu não vou te tirar daqui, só vou te ajudar a sair do banheiro.
Fito o garoto num estado de confusão, mas acabo cedendo diante do que parece ser uma forma de me socorrer. Ele me ajuda a ir até o tatame, onde eu caio, mole como uma boneca de pano. Meus olhos parecem tão pesados, que se fecham, mas não adormeço.
— Você está muito doente e com tanta febre... — Dom fala para si. — Esse plástico só vai piorar, porque vai esquentar mais — continua falando sozinho, já que eu não consigo acompanhar o que é dito. — Sabe como ficou assim? Comeu alguma coisa estragada?
— Não comi nada demais, só pão e a salsicha que eu trouxe na minha mochila — balbucio.
— Você trouxe salsinha numa mochila para um banheiro e comeu? Pensei que queria fugir de casa e não morrer por intoxicação alimentar.
— Porque você fala tanto na minha morte? — resmungo.
— Porque parece que não tem noção do perigo — retruca com um grunhido.
— Nunca ouviu falar que Deus escreve certo por linhas tortas?
— Certo, só espero que esteja certa, menina que ama ditados.
— Eu fiz um trabalho na escola sobre ditados populares, algum problema?
— Nenhum, só fica aí, conheço uma pessoa que trabalha na farmácia e pode conseguir algo — avisa e desaparece.
Dom volta um tempo depois e passa a noite me ajudando na minha recuperação. Durante a madrugada, a febre parece bagunçar os meus sentidos. Delirante, ouço repetidas vezes a respiração pesada de Sandoval me tocando, também ouço o desespero na voz de Nina. Eu me sinto como ela, fraca e vulnerável.
Apesar de me ver entre tanta angústia, cada vez que consigo abrir as minhas pálpebras, vejo um borrão de cabelos laranjas caindo por cima de um par de olhos azuis preocupados. Então, entendo que estou segura, que eles não estão ali comigo, que o choro que me acompanha não é meu, é só a minha mente.
Pela manhã, vendo que eu ainda não estou bem, Dom decide me trancar no almoxarifado e diz que posso ficar mais um dia. Ele avisa que vai liberar o banheiro interditado para evitar chamar a atenção de alguém responsável pela limpeza. Pede para não me preocupar, garantindo que ninguém irá me surpreender no depósito, pois só ele tem as chaves. Por fim, só vai embora depois que prometo não comer nada do que trouxe de casa, beber apenas água e os medicamentos.
Passar o dia no almoxarifado revivendo o relato de Nina constantemente, me leva à exaustão. Também estou sofrendo por tomar tanta água devido a febre e não possuir um sanitário a disposição, o que deixa minha bexiga muito desconfortável. Ainda assim, não restam dúvidas que o local oferece maior proteção do que o movimentado vestiário, já que quem possui a chave está me ajudando.
A noite escurece o pequeno céu que aparece pela janelinha, olho em volta tentando distrair os meus pensamentos. Suspeito que escondem drogas aqui, apesar de não ter nada que indique isso, pois tudo parece em ordem, só tem o arquivo e equipamentos esportivos nos armários. Sem dar espaço para a minha curiosidade, evito descobrir o que é guardado no almoxarifado além de mim ou das coisas da escola. Obedeço a orientação de Dom, que no horário combinado, abre a porta.
Uma corrente fria se espalha pela sala até então fechada. O garoto se aproxima e tira da bolsa que trouxe uma vasilha com sopa e alguns alimentos, deixando ao meu lado, depois senta no chão para me fazer companhia por algumas horas. Verificando que eu ainda não me sinto recuperada por completo, permite que eu fique por mais um dia no almoxarifado. Mas logo minha estadia se estende por mais tempo do que eu esperava que ele fosse permitir.
No total se passam seis dias. Eu continuo no almoxarifado quando a febre já nem é um motivo para permanecer. Não estou doente há um bom tempo. Durante esse periodo, minha mente voltou várias vezes ao relato de Nina, ele ficou gravado em mim. Assim que a ouvi, tive a certeza de que se não tivesse fugido estaria carregando o mesmo trauma, isso mexe comigo.
Lembro do quanto me segurei para não sair do meu esconderijo e abraçá-la, sei que não podia me expor. Mesmo assim, fico angustiada ao me arrepender por não ter ido. Em vários momentos me vejo sentindo a dor dela, imaginando o que seria de mim se ainda estivesse em uma casa com Sandoval.
Conhecer Dom tem sido o melhor que essa experiência está me trazendo. Agora, confio totalmente nele e mal posso esperar para o encontrar ao final do dia, enquanto condeno as horas que não estamos juntos. Ele me permitir ficar, mesmo sendo um risco enorme, deixa a certeza de que encontrei alguém muito especial. Seu cuidado e respeito por mim tornam essa situação mais suportável.
— Oi! — Pulo nos seus braços quando entra pela porta e recebo um abraço.
— Trouxe tudo o que me pediu. — Ele me entrega uma sacola com um livro que possui um compilado de poesias "Estações & Metamorfoses" da escritora Waleska de Oliveira e algumas revistas. — Minha moral no morro já está caindo de tanto que ando frequentando a banca de jornal, não pega bem um soldado comprando essas coisas. Aí tem o suficiente para passar um tempo sem me pedir de novo.
— Valeu — agradeço, conferindo as matérias de capa da Supercurioso, National Geografic e da revista História, além da linda capa do livro de poesias, que parece um encanto.
— O dia foi tranquilo?
— Acabei de ler mais um conto da coletânea de terror que me trouxe, quer saber o que aconteceu? — pergunto empolgada.
— Hoje não — recusa e nos sentamos no chão um ao lado do outro, apoiando as costas no único espaço livre na parede entre o amontoado de armários. — Dalena... Antes da gente passar horas falando besteira, quero dizer que você tem que encontrar um lugar para ir.
— Não é fácil encontrar um lugar com a minha idade, Dom. Preciso de mais tempo.
— Quanto mais tempo aqui, além de arriscar a minha cabeça, você tá colocando a sua em risco também. — Dom dá um longo suspiro e passa as mãos pelos cabelos.
— É só que... Está dando certo, não é? Espera mais um tempo... Ainda não estou pronta. Sinto que é muito cedo para eu sair por aí.
— Olha, você escolheu fugir de casa, se não souber o que veio fazer nas ruas, será uma vítima, mesmo que esteja tentando evitar não ser. Aqui ninguém quer saber se você tem dez, quinze ou vinte. A vida no morro começa cedo... precisa pensar em algo, estamos brincando com a sorte. É sério.
— É, eu sei que a vida no morro começa cedo, mas não consigo pensar em nada — admito. — Só tem a rua, virar flanelinha e essas coisas, ou vender meu corpo na casa de Lourdes.
— Lá em Lourdes será mais difícil de se esconder se alguém vier atrás de você.
— Se vier, posso fugir para outro bar que tem no Morro Grande. Tem até umas garotas da escola que são de lá, pelo que ouvi, ninguém foi atrás delas, por causa que viraram mulher — conto, um pouco sem graça ao pensar nisso.
— É, só o que tem é garota da tua idade juntando os trapinhos ou ganhando o mundo e os pais não tão nem ligando — comenta com certo incômodo.
— Será ótimo, porque não quero minha mãe no meu pé. Na verdade, tenho a impressão de que ela nunca virá me procurar. Sempre fez questão de dizer que tentou me abortar e me teve a força — reflito, amargando um enorme desgosto. — Procurar minha família está descartado, é quase certo que serei devolvida para a casa de Sandoval, porque ninguém quer uma boca à mais. — Faço um dar de ombros
— Eu sei como é, por isso estou no tráfico. Meu pai não sei por onde anda hoje em dia, minha mãe morreu de tuberculose, meus irmãos estão espalhados pelo mundo e a minha família nunca me estendeu a mão, só quem me acolheu foi o crime. Eu moro com uns irmãos da facção, por isso, não dá para você ficar lá.
— Sinto muito por sua mãe — lamento.
— Valeu.
— Ainda estão procurando por mim? — procuro saber notícias do mundo lá fora.
— Só o Sandoval mesmo que anda procurando um sinal seu. Sua mãe nunca falou nada não — informa. — Não sente mesmo falta dela?
— Não... — respondo, lembrando da nossa difícil convivência. — Sinto paz. Ela sempre deixou claro o quanto eu sou um peso na sua vida. Já ouvi coisas dela que nossa... é até difícil de repetir, sabe. No final, eu sempre entendia toda aquela rejeição que via nela. Não foi fácil mesmo me criar sozinha, mas sempre achei que éramos nós duas contra o mundo. Hoje, eu vejo que minha mãe só não teve coragem de me deixar morrer de fome.
— Geralmente, agradeço por meu pai ter sumido. Ele só me causava problemas, roubava até o dinheiro que eu ganhava vendendo jujuba para comprar comida e gastava tudo com cachaça. Ao contrário da minha mãe, que faz muita falta... — diz com uma visível saudade.
— Como você se sente sozinho no meio de pessoas que matam outras?
— Eu me sinto vivendo o mundo real — fala de maneira banal.
— O que isso significa? — pergunto me sentindo inocente.
— Não significa muita coisa, só é o que é. Basta aprender para quem levantar a cabeça, para quem baixar e para quem olhar no olho, com o coração aberto.
— Obrigada por me olhar no olho... Eu devo ser uma amizade estranha para você, mas não vou esquecer sua ajuda.
— É, você é uma amizade estranha. — Sorri de um jeito moleque. — Também não precisa agradecer a ajuda e não me deve nada por isso. Aqui é público, não é? — pergunta, e confirmo ao assentir.
Expilo o ar e encosto a cabeça na parede atrás de mim, deixando o meu rosto completamente virado para ele. Meus olhos focam nas sardas espalhadas em sua pele na parte alta das maçãs do rosto. Dá para ver que Dom não é um garoto inofensivo, como todos outros que trabalham para o tráfico. Seu comportamento, possui uma atitude de perigo até mesmo no jeito de respirar, sempre alerta, sempre pronto para revidar qualquer ameaça. Ainda assim, fico com sorrisos bobos quando estou perto dele, na expectativa de receber um elogio ou um simples toque.
— Já se apaixonou?
— Iiiih, qualé?! Que mané se apaixonou... — Tenta fugir do assunto.
— Eu já, por um professor — digo sem sentir que é algo importante, apesar de ter achado que seria constrangedor revelar algo assim, mas é divertido ver a preocupação dele.
— Isso né ideia não, Dalena. — Fico rindo do jeito engraçado dele. — Professor é tudo velho para você, só vai se aproveitar.
— Então por quem eu deveria me apaixonar? — pergunto e ele balança a cabeça com um sorriso envergonhado.
— Acho que quando acontecer, vai saber melhor do que se eu te disser. — Encosta também a cabeça na parede e ficamos assim, olhando um para o outro.
— Você dormiria aqui hoje?
— Por quê? — Fica desconfiado. — Tá sabendo que eu não presto para se apaixonar, né? Só faço coisas que talvez seja muito cedo para você. Eu não acho que seja a tua hora...
— Eu sei, mas ainda assim é muito bom ter você por perto. — Pouso minha mão no rosto dele e toco suas sardas.
— Só isso?
— Só. Só isso... — Distancio a minha mão do seu rosto.
— Dalena... — vocaliza o meu nome em advertência como uma canção repreensiva. — Você é uma menina linda e o que tá pedindo não é algo muito fácil, tá sabendo? — Desenha um sorriso misterioso nos lábios. — Não que vá rolar essas paradas estranhas do teu padrasto — justifica com um tom seguro e franze o cenho. — Só para te dar uma noção, se eu quisesse, você já estava nua sem eu encostar um dedo num fio de cabelo seu.
— Achei que eu era só bonitinha — digo ainda flutuando de felicidade por ele ter me chamado de linda.
— Você tá brincando com uma parada que não é ideia para a tua faixa etária — adverte novamente.
— Temos praticamente a mesma idade e já falei que é só dormir — tranquilizo Dom.
— Ter quase a mesma idade, não muda nada. Mas beleza, então... eu vou ficar, porque também fico pensando em você sozinha o dia todo aqui e não quero que fique pirada — justifica.
— Tá com medo que eu vire uma maluca?
— Você já é bem doidinha, então...
— Então, eu poderia roubar o tráfico e sumir, depois de ficar rica — planejo num devaneio.
— Com certeza você ia sumir debaixo de sete palmos ou morro abaixo.
— Para de falar essas coisas — reclamo, sorridente.
— É bom lembrar, porque parece que você não tem muita ideia sobre nada. Deve pensar que está em um daqueles filmes que passa a tarde na televisão — fala de um jeito sério.
— Tipo os Goonies? Na situação em que me encontro, eu pegaria o ouro. Willy Caolho já estava morto mesmo — admito.
— Olha o spoiler.
— Vai dizer que não assistiu?
— Claro que já, mas eu podia não ter assistido — justifica e reviro os meus olhos. — Então, você pegaria o ouro?
— De um cara morto, na minha situação? — Respiro fundo. — Tem noventa e nove por cento de chances de que sim, eu pegaria.
— O que seria esse um por cento?
— Se fosse te prejudicar, ou prejudicar alguém que não merece. Resumindo: eu não sou capaz de trair alguém — esclareço.
— Ainda bem que não... — Dom respira aliviado, e ficamos em silêncio.
— Valeu... — digo um tempo depois. Ele me olha confuso. — Por ficar hoje.
— Mas não se acostuma... — avisa.
— Tá certo — concordo sem insistir no contrário. — Posso perguntar uma coisa?
— Não — Dom diz, sendo curto e grosso.
— O que o tráfico guarda aqui?
— Aê, Dalena. Só se preocupa em sair daqui viva e rápido — ele alerta. — Vai tomar banho e depois vem dormir, está tarde — manda de um jeito sério, e atendo sem implicar, evitando chateá-lo.
Depois que volto do banho, apago a luz do almoxarifado e Dom guarda a sua arma em uma das gavetas de um pequeno móvel para arquivos. Deitamos no vão entre os armários um de frente para o outro, usando minhas roupas de travesseiro. Eu adormeço admirando o seu rosto, iluminado pela luz externa que vem de um poste e atravessa as estreitas janelinhas de vidro no alto da parede. Elas não dão possibilitam qualquer acesso ou visão de quem quem está de fora, servem apenas para passagem do ar circular no ambiente.
Dom continuou dormindo ao meu lado por mais três dias. Na situação em que estou, ter alguém do meu lado tem tornado tudo melhor. Principalmente pela segurança que sinto na sua presença, afastando as coisas ruins que tenho vivido. Nossa convivência é fácil, ele até passou a gostar de ler a revista Supercurioso comigo. Antes de dormirmos, enquanto faço carinho em suas sardas, ele afaga os meus cabelos.
O tempo já nem é mais contado por mim, embora imagine que façam onze dias que saí de casa. Eu só me concentro no momento em que Dom vai chegar. Nas lembranças das nossas intermináveis conversas e de como é surreal poder sentir o toque dele e ser tocada também. Mesmo quando não está ao meu lado, ele me dá inúmeros motivos para sorrir.
A porta se abre e já estou pronta para correr até os seus braços. Dessa vez, enlaço as minhas pernas em sua cintura e ele me segura com firmeza para evitar que nos espatifemos no chão. Finjo que não preciso descer, permitindo minhas narinas explorarem o cheiro mentolado do shampoo que usou para lavar os cabelos. Respiro o seu perfume, como se o transportasse pelas minhas vias aéreas diretamente para o meu coração.
— Desce, Dalena. Você é pesada, desce — manda, me empurrando.
— Não sou nada. — Eu me solto dele e volto para o chão.
Dom me entrega a mochila recheada com comida e minhas roupas limpas. Enquanto guardo tudo rapidamente, ele fica absorto em seu celular. Deixo ele sozinho quando vou ao vestiário para o meu momento no banheiro. Depois do banho, enfio as pernas em uma legging preta bem justa e visto um cropped rosa, dando um toque de estilo. Confiro minuciosamente se deixei vestígio da minha presença e retorno ao almoxarifado.
— Ué. Desistiu do celular por hoje? — Estranho ao encontrar Dom deitado de costas para o chão, lendo as mensagens dos leitores para a Supercurioso. Sempre nos divertimos com as pérolas mandadas, é como ler comentários engraçados em posts na internet, só que sobre matérias anteriores da revista.
— Esqueci que é dia vinte e seis e não recarreguei meus dados, preciso de wi-fi para pagar essa bosta. — Passa a folha violentamente, descontando a raiva na revista. — Qual é a graça de encontrar gente morta enrolada num pano em uma montanha de areia, não é muito mais fácil ir num cemitério? Já vi em um filme que mexer com múmia né ideia não — brinca com a matéria sobre uma múmia encontrada.
— Você disse que hoje é dia vinte e seis? — Me vem um lampejo na memória.
— É sim — afirma ao conferir o celular.
— Hoje é o meu aniversário! — anúncio, impressionada. — Caramba, eu tinha esquecido.
— Não é nada — desconfia.
— É sim. — Pego meu documento na bolsa e jogo sobre o peito de Dom.
— Mil novecentos e noventa e nove — repete os números do meu ano de nascimento ao conferir o meu documento. — É mesmo. Quatorze anos. — Lanço um sorriso, mordendo os meus lábios com um olhar esperançoso e ele me estuda ao perceber algo em mim.
— Isso não quer dizer nada. — Arremessa a carteira de identidade em minha direção.
— Do que você tá falando, hein? — Agarro o documento e guardo, fingindo que não estava entendendo, mas sei que durante esses dias, Dom percebeu que estou gostando dele.
— Nada — desconversa, levantando do chão. — Só espero que não esteja planejando fazer dezoito anos aqui — adverte.
— Eu tô tentando pensar em outro lugar para ir — justifico, incomodada com o comentário.
— Tá nada — Dom rebate aborrecido.
— O meu plano era perfeito, eu só não sabia que a escola era território do tráfico — digo irritada.
— Tão perfeito que teria ido parar em um hospital se alguém tivesse visto você morrendo em cima de um sanitário, ou talvez, quando fosse encontrada, já estivesse morta — debocha com frieza.
— Para de falar na minha morte, garoto! — Saio do tom, ele está me tirando do sério.
— Eu não sou um garoto, Dalena. Já te falei que os meus quatorze anos, não se comparam aos seus quatorze anos. Eu sou um homem, você só está a um ano de sair da pré-adolescência — pontua numa calma irritante.
— Eu nem tenho corpo e tamanho de quatorze, pareço ter muito mais do que tenho — digo contrariada. No fundo, sinto vergonha por Dom ter percebido que gosto dele e me acha uma criança, também fico desconfortável com a pressão para procurar outro lugar
— Se fosse assim, não existiria anão adulto. Você ainda é só uma garotinha fujona, adiando a verdade. — Joga as palavras na minha cara, como se fosse a pessoa mais madura da face da Terra.
— Que verdade? — pergunto, sabendo que não vou gostar da resposta.
— Que você vai voltar com o rabinho entre as pernas para a casa da sua mãe, porque não consegue viver na rua — diz olhando nos meus olhos, cheio de paciência.
— Eu vou conseguir sim, só preciso de tempo! — grito ao avançar na direção de Dom, num ato impulsivo. Inesperadamente, ele cola os lábios no meus, agarrando a minha cintura.
Fecho os olhos, sentindo todo o meu corpo queimar extasiado sem conseguir me mover ou sequer saber o que fazer. Abro os olhos e encaro as íris azuis de Dom como um mar de possibilidades apaixonantes. Ele passeia as mãos pelas minhas costas até a minha nuca, tornando a sensação tridimensional. Pressiona mais os meus lábios, em seguida descola de uma vez, me soltando bruscamente e sai em direção a porta.
— Um beijo de criança como presente de aniversário. Amanhã eu volto para abrir a porta, esteja de mala pronta para continuar sua aventura em outro lugar ou voltar de uma vez para a sua casa. — Dom me tranca e desaparece.
Vou até a parede e deixo o meu corpo escorregar por ela, parando quando a minha bunda encontra o chão, onde eu fico sentada esperando ele voltar para terminar o que começou, mas isso não acontece. Fico somente na lembrança do quanto foi bom.
|NOTA DA AUTORA|
Segundo capítulo entregue! Estou super feliz com essa obra. Abrindo espaço aqui para uma curiosidade, eu a escrevi para participar de um concurso com o tema de morro, como achei justo o contrato da plataforma onde aconteceria o prêmio, desisti de participar, mas não de escrevê-la, porque já estava completamente apaixonada pelo enredo.
Enfim, aqui está A VIDA NO MORRO COMEÇA CEDO, completamente recém-nascida e já colocada no mundo.
Super triste a história da Nina, não é? Isso ainda vai dar rolo.
E já tem shipp rolando por Dalena e Dom? Desde o primeiro capítulo, eu piro com eles. O que acharam do beijo de criança? Os dois são suuuper fofos, não é? Aí, ai...
Até o próximo capítulo, flores do meu jardim!! ✿◕‿◕✿
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