▓ CAPÍTULO UM ▓
︻╦╤─ O ponto de partida.
Ouço a porta do meu quarto ser fechada. Agora, sozinha, finalmente posso chorar em segurança até o amanhecer. É assim que tenho passado as últimas semanas. Quando estou na escola, não choro. Pelos corredores ou na aula, finjo que nada está acontecendo e que sou normal como todos os outros ali. Sorrio, estudo, treino atletismo... Em casa, fico alerta na esperança de que não ocorra novamente, mas infelizmente, só piora.
Durante a noite, no meu quarto, quando a minha mãe já está dormindo, o meu padrasto se ajoelha ao lado da minha cama. A cada nova oportunidade, ele avança mais os seus dedos por baixo da minha roupa. Como se trouxesse em suas mãos uma descarga elétrica, seu toque me causa ondas de choque, me deixando petrificada de medo. Não consigo entender porque simplesmente eu paraliso ou me sinto tão errada.
Encarando o meu relógio transparente comprado com o chinês que sempre está na parada de ônibus, observo o ponteiro neon avançar a cada minuto para um novo dia. Olhos os poucos móveis de madeira à minha volta, como testemunhas indiferentes, e me pergunto o quanto da minha noite foi real ou se teria sido um terrível pesadelo. Fico confusa sobre se essas coisas estão mesmo acontecendo comigo.
O quarto está iluminado pelo sol da manhã que entra através da janela. Eu me levanto da cama e corro para o espelho suspenso na parede por um prego feito um quadro. Tiro a roupa buscando no reflexo do meu corpo nu, provas de uma mão nojenta me apalpando, mas não há nada. Visto a farda escolar sem tomar banho. Há um tempo que evito usar o banheiro, porque o meu padrasto se esgueira pelas frestas dos cobogós de alvenaria para me espiar, enquanto toca em si mesmo.
Certo dia, quando cheguei mais cedo da escola, acabei encontrando ele com o short arriado sentado na minha cama. Sua mão segurava o próprio órgão sexual numa cena repulsiva. Corri desesperada para a rua, só entrei em casa depois que vi minha mãe chegar com Dete, a mulher que mora ao lado.
A minha mãe sempre está na companhia da vizinha ao sair de casa, e quando ela volta, o meu padrasto gruda do seu lado. Isso me deixa sem oportunidade de conversar para explicar o que vem acontecendo. Eu sei que esse é o motivo dele estar sempre com ela, mas a faz pensar que é amor ou coisa do tipo.
Depois de estudar um melhor momento, encontro um jeito de dizer tudo a minha mãe sem a presença do meu padrasto por perto. Vou fingir que saí para a escola e na hora que ele for para o trabalho, volto e conto tudo o que estou passando. Não vejo a hora de irmos embora da casa deste homem.
Abro a porta e corto a pequena cozinha, abarrotada de armários simples e uma mesa redonda com quatro lugares ocupando a maior parte do espaço. No fundo, há uma compacta pia de metal na bancada de concreto, ao lado, uma antiga geladeira branca encostada na parede. O fogão de quatro bocas, espremido no canto, tem uma panela que ferve o café, exalando um cheiro que faz minha barriga roncar.
Caminho a passos rápidos para a saída, tentando evitar que meu padrasto tenha tempo de me dar bom dia com seus abraços asquerosos e sua voz sebosa. Para o meu azar, ele atravessa o meu caminho e me agarra. O seu abraço forçado traz o perfume do desodorante com fedor de barata que está usando, o que me dá ânsia de vômito.
— Tem gente precisando de um banho. Tá com cheiro de azeda, bonequinha — diz Sandoval, enquanto eu seguro a enorme vontade de vomitar presa na minha garganta, fazendo os meus olhos lacrimejarem.
Além do nojo que vem das minhas entranhas, sinto um profundo ódio de ter que olhar na cara dele. Aquele tipo de ódio que me faria matar Sandoval em qualquer oportunidade que eu tivesse. Perdi a conta de quantas vezes sonhei ou fantasiei em ver esse sorriso doente sumir da sua cara imunda. O pior é que ele sente isso no meu olhar e parece ficar satisfeito por eu não conseguir fazer nada mais do que me corroer.
— Daqui a pouco essa sua cor bonita, que as mulheres brancas tanto sofrem no sol para ter, vai ficar encardida por causa da sujeira. Será que a culpa é desse narizinho de princesa que você tem e não tá sentindo a precisão urgente de um banho? — Ele ri.
— Não tem problema nenhum com meu nariz — pronuncio as palavras entre os dentes, sentindo o olhar repreensivo da minha mãe sobre mim.
— Calma, é só que você deve ter cuidado, pois tá virando uma mocinha. Mesmo com esse rosto de boneca e esses zoião bonito da cor de uma nuvem de tempestade, os homens vão correr longe quando chegar perto. Com certeza, vão até sair falando. Para ganhar fama de sebosa é bem rapidinho. — Sandoval tem a clara intenção de colocar a minha mãe contra mim para me provocar ainda mais. Ele nem tem muito trabalho com o seu plano, porque essa é a natureza dela.
— Ave Maria, Dalena. Deu para virar porca, além de mal educada? Todo dia já vai para essa escola sem nem olhar na minha cara e nem na de Sandoval. Agora, nem banho toma mais. — Escuto a voz inconformada da minha mãe, encarando os meus tênis pretos, contrastando com o branco da cerâmica no chão.
— Deixa ela, Marilena — interfere Sandoval para se passar por bonzinho.
— Foi assim que te criei? — Ela o ignora — Tenha mais educação com Sandoval, que é sempre tão atencioso com você. Ele te trata melhor do que o bandido do seu pai, aquele traste que não sabe quanto custa nem o shampoo do seu cabelo — minha mãe me repreende.
Dona Marilena, como é conhecida na vizinhança, tem o cabelo volumoso igual ao meu. O meu corpo alongado, também parece ter sido feito da mesma forma que o dela. Eu poderia dizer que sou uma versão da minha mãe com uns dezenove anos a menos. Não tenho fotos suas na adolescência, mas acredito que se tivesse, viveria a experiência de me ver em uma época diferente.
— Tô atrasada, mãe. — Sinto o meu rosto queimar da enorme vontade de chorar que toma conta de mim.
— Olhe, pai é quem cria, viu — minha mãe diz com firmeza, complementando a lição de moral que me deu a pouco.
— Sim, senhora — digo com respeito para que ela pare de falar. — Bom dia, Sandoval. Com licença.
— Pai é o que cria, se lembre disso — grita ao mesmo tempo que vou saindo da casa.
— É da idade, Marilena. — Bato o portão com a raiva percorrendo cada canto do meu ser ao ouvir aquilo, provocando mais uma reclamação da minha mãe.
— Vai botar a casa dos outros abaixo? — berra enfurecida enquanto me afasto.
Corro pela viela que separa um amontoado de casas, buscando um lugar para me esconder e enxugando as lágrimas que caem dos meus olhos. Entro num pequeno beco mal iluminado, me agacho sentindo o meu coração disparado no peito. Moramos na parte mais inóspita do morro de Tia Ondina, onde o tráfico anda livremente e a comunidade se adapta a esta realidade.
A violência no morro é bárbara, só que para quem vive aqui é algo banal. Diferente de uma guerra, o cotidiano dos moradores não para porque alguém foi queimado vivo, uma ossada foi achada ou tem bala de fuzil voando sobre nossas cabeças. O medo existe, mas a criminalidade não assusta até ela olhar diretamente nos seus olhos.
Espero ansiosa Sandoval sair para ir trabalhar no seu açougue. Tento ignorar o ambiente do beco frio e escuro, com odor marcante da lama que sai de uma caixa de gordura no chão de uma das casas à minha volta. Pelos meus cálculos, não vou precisar ficar muito tempo nesse lugar, imagino que ele não vá demorar a sair de casa.
— Tá fazendo o que aí, pequena? — pergunta um garoto de cabeça quase raspada com o cabelo oxigenado, com um fuzil pendurado em seu ombro, apontando para o chão.
Sua pele é quase tão pálida quanto a folha de um papel. Ele deve ser um pouco mais velho do que eu, e, apesar de não saber o seu nome, sei que é conhecido no morro como Coalhada. Também sei que é um dos soldados do tráfico responsável por vigiar a rua onde moro.
— Eu? — minha voz soa esganiçada. — Tô brincando de esconde-esconde — digo engolindo em seco, temendo ele descobrir que estou mentindo.
Por mais que não seja aconselhável mentir para um garoto armado, não tenho outra saída. Além disso, preciso evitar que ele chame a atenção para mim e Sandoval me descubra. Não acho provável que vá implicar comigo bem à vista das pessoas ao redor. O tráfico não costuma perturbar um morador da comunidade sem um bom motivo, pelo menos nunca soube de algo do tipo.
— Tá me tirando? Isso lá é hora de brincar de esconde-esconde? Nem tamanho de brincar você tem, mó gostosa — fala como se estivesse achando divertido a minha mentira.
— E porque me chamou de pequena? — pergunto, tentando disfarçar a minha aflição, enquanto meu coração dá sinais do meu nervosismo.
— Qual é a tua idade? — Seus olhos passeiam pelo meu corpo, buscando tirar suas próprias conclusões de uma maneira invasiva.
— Esqueci — respondo com insolência, embora minha voz tenha saído mais para dentro do que para fora. Eu sei bem o quanto é arriscado confrontar alguém com uma arma, mas não vejo saída para encerrar a conversa.
— Tô perguntando a idade, amanheceu com vontade de morrer? — questiona irritado, e meu coração dispara de vez.
— Onze — minto baixinho. Enquanto me pergunto porque essas coisas só acontecem comigo, imagino que ele não vai acreditar, pois as pessoas já não acreditam quando falo a verdade sobre ter treze anos. Eu pareço ter pelo menos dezesseis.
— Tá me tirando, novinha? Tu tem mais corpo que eu com dezessete.
— É proibido ter onze anos e parecer mais velha? — ralho temerosa com os olhos rasos d'água, e ele me encara desconfiado.
— Beleza, fica aí na moral, mas não vacila, porque tenho o dedo leve — avisa e sai me olhando feio. Sobe na laje da casa em frente, de onde fica me encarando.
O meu coração vai acelerando cada vez mais. Os meus olhos, apesar de embaçados, ficam fixos na porta de casa, sem se atrever a encontrar novamente os de Coalhada. Eu espero insistentemente no beco. Tento controlar o medo que a presença do soldado do tráfico me provoca, assim como a expectativa de conversar com a minha mãe.
Minhas mãos estão suadas, um detalhe do qual eu mal reparo. Tudo o que preciso pensar é na conversa que terei com a minha mãe. Eu não sei quanto tempo se passa, mas finalmente vejo a porta se abrir. Aguardo por mais um tempo depois que Sandoval sai, não quero correr o risco dele me surpreender ao voltar por ter esquecido algo.
— Vai se esconder a vida toda? — o garoto com o fuzil grita da laje ao perceber a demora da minha presença no beco, mas não respondo a provocação
Rapidamente, saio de meu esconderijo e volto para casa, mas já decidida de que que eu não moraria mais ali. Encaro sua fachada humilde, pintada de cal verde, com janelas gradeadas e uma parede com um reboco mal feito, desejando que seja a última vez que eu precise pisar nesse lugar maldito.
Caminho ansiosa para encontrar a minha mãe sob o olhar do soldado do tráfico, que acompanha todos os meus movimentos. O encaro por alguns segundos, sendo o tempo suficiente para ele segurar firme o volume por baixo do short jeans e piscar o olho para mim. Continuo andando, apesar de estar em choque.
Atravesso o portão tremendo com o que acabo de passar e com o coração ainda mais acelerado, somado ao medo que aperta minha garganta. Paro por um momento na porta, tentando esquecer o Coalhada e focar na minha mãe. Ela é muito apaixonada pelo Sandoval, além de agradecida por sustentar nós duas, por isso faz tudo o que ele quer. Fico preocupada com o sofrimento que ela enfrentará ao descobrir que o homem por quem está apaixonada não presta.
Tenho idade para entender que não teremos uma situação fácil daqui para frente, mas será necessário encontrar outro lugar para nós duas, porque aqui, eu não moro mais. Sigo para a cozinha, onde minha mãe lava a louça do café, ouvindo e cantarolando "Prova de fogo" da Wanderléa, uma cantora da jovem guarda que ela ama ouvir.
"Esta é uma prova de fogo:
Você vai dizer se gosta de mim.
Sei que você não é bobo,
seu reinado vai chegando ao fim..."
— Esqueceu alguma coisa, Sandoval? — pergunta, carinhosa, interrompendo a cantoria.
— Né Sandoval não, mãe, sou eu — aviso com a voz chorosa.
— Dalena! — Se espanta bastante irritada. — Mas o que molesta você tá fazendo em casa uma hora dessa? — questiona. — Anda, menina! Diga logo! — ordena sem se sensibilizar com meu aparente nervosismo.
— Eu não fui na escola, mãe. Fiquei escondida no beco da casa de dona Balbina porque queria dizer uma coisa a senhora sem Sandoval por perto — inicio com a voz trêmula.
— Lá vem a novidade. — Entorta o rosto, apertando as mãos no avental de pano. — Vá, conte logo que não tenho o dia todo — exige sem paciência.
— É que Sandoval anda fazendo coisas comigo quando a senhora não tá vendo — digo as palavras se misturando ao afobamento do meu choro.
— Coisas com você...? — sussurra desconfiada.
— Sim, mãe. Ele tem ido toda noite no meu quarto e mexe comigo. Eu finjo que tô dormindo, porque fico... é como se eu ficasse em choque. — Passo os dedos pelos olhos, tentando enxugar as lágrimas. — Ele também fica me agarrando de um jeito estranho e me espiando na hora que tomo banho — desabafo entre soluços, evitando contar coisas ainda mais constrangedoras por vergonha.
— Que conversa é essa, Dalena? Você tá ficando doida? Olhe que já não tem idade para inventar história. Sandoval é quem bota comida na sua barriga e lhe dá um teto. Se não fosse ele, a gente tava passando fome e dormindo na rua, porque se dependesse do seu pai... eu não quero nem pensar — alerta tentando controlar o tom da sua voz, provavelmente com medo dos vizinhos ouvirem.
— Eu não tô mentindo, mãe. Eu juro à senhora. Pelo amor de Deus, acredite em mim — imploro com a voz fanha do nariz entupido pelo choro.
— Cachorra da mulesta, você deixe essas conversas — pede sem se comover comigo aos prantos. — Pare de invenção! — ralha num tom autoritário. — Deus me livre alguém escutar isso e chegar nos ouvidos de Sandoval, ele bota nós duas no olho da rua.
— Eu não quero mais morar aqui, mãe. E-e-eu... — gaguejo, soltando uma lamúria. — Não me importo se a gente não tem para onde ir, prefiro morar na rua.
— Pois saia, Dalena. Se quiser ir morar na rua, pode ir, mas sozinha. Eu não estou nem louca de sair dessa casa. E não se preocupe que eu não vou seguir você, isso garanto.
— Mãe... — chamo sentindo a dor que cada palavra dita por ela me causa.
— Eu não largo de Sandoval por nada nesse mundo, ainda mais porque você tá inventando conversa de um homem bom. Ele lhe trata com carinho, igual a um pai de verdade e em troca recebe uma acusação triste desta. Que decepção, minha filha.
— Eu não estou mentindo — falo em minha defesa, arrasada com tudo o que ouço.
— Ah, mas tá sim, senhora. Olhe... nunca esperei isso de uma pessoa para quem eu dei a vida. Tanto que batalhei para ter um homem, Dalena, e logo quem devia tá unida comigo quer a minha destruição. Nós duas estávamos prestes a ir para o olho da rua quatro meses atrás e as portas desse teto foram abertas. Aqui, estamos longe do relento e de barriga forrada. — Ela continua a ignorar o que eu disse, sem acreditar em mim.
— Mas, mãe... — imploro em desespero.
— Enquanto for minha filha, nunca mais repita uma barbaridade dessa, ou fique sabendo que a porta da rua é serventia da casa. Até porque, na sua idade eu já me virava sozinha. — Nervosa, puxa o avental da cintura e joga em cima da mesa. — Agora me dê licença que eu vou cuidar da minha vida. Estou indo no açougue de Sandoval buscar carne para o almoço, sua mal agradecida.
Minha mãe sai pisando duro com os olhos pesados e desaparece ao passar pela porta. Vários pensamentos bombardeiam minha cabeça. Não sei se é pior estar prestes a ser estuprada pelo meu padrasto ou saber que ela não acredita na própria filha. Uma raiva se apossa do meu corpo e libero alguns gritos na garganta para desafogar minha ira.
Novamente, encaro o meu corpo no espelho. As marcas dos toques de Sandoval continuam invisíveis na minha pele, mas estão por todos os lugares, ficaram gravadas em mim. Aperto os meus olhos e enxergo o seu olhar doente percorrendo o meu corpo. Olho a minha cama e o vejo sentado sobre ela se exibindo para mim da forma mais nojenta que poderia fazer.
A minha mãe nunca me dá ouvidos para nada, pois sempre acha que da minha boca sai apenas besteira. Ao seu lado só me sinto um saco pesado de batatas que é obrigada a arrastar de um lado para o outro porque não pode se livrar. Ela bem que tentou, mas ninguém da nossa família quis cuidar de mim.
Por muito tempo até pensei ser normal não receber carinho ou afeto. Todas as vezes em que simplesmente tento conversar com minha mãe, sou repreendida. Há muito tempo venho percebendo que a minha presença é um grande incômodo para ela. Na escola, ainda criança, foi fácil notar que as mães podem ser de várias formas. Eu que nasci de uma que me enxerga como uma grande dor de cabeça.
Abraço o meu corpo sentindo que eu sou tudo o que me resta; que nessa casa não me falta apenas o amor de uma mãe, me falta segurança. Essas paredes são abrigo para a minha solidão e o meu pavor. Ela me mandou embora, eu sei que não é da boca para fora, isso está entalado na sua garganta desde que nasci.
Se ela conseguiu se virar sozinha na minha idade, eu também consigo. Quero manter vida dentro de mim. Preciso lutar sozinha por minha salvação ou morrerei lentamente. Sinto que o pior está para me acontecer cada vez que estou na presença dele, sem contar que minha mãe me rejeita.
O céu não é perto, como meu professor diz, e a vida se faz com atitude.
Sem raciocinar muito, movida apenas pela necessidade de escapar dos dois, vou até o quarto deles e começo a vasculhar o local em busca de dinheiro. Após procurar em alguns lugares, encontro um pequeno volume de notas amarradas em uma liga. Coloco o dinheiro no bolso, deixando o tecido jeans marcado pelo pequeno rolo de notas. Acredito que seja o suficiente para sair em segurança, sem destino certo, e tentar a sorte em algum lugar.
No meu quarto, preparo a minha mochila com algumas roupas e objetos que possam ser úteis. Deixo para trás as medalhas que conquistei no atletismo. Passo pela cozinha para complementar a bagagem com pão, bolacha, salsicha, banana e uma garrafa d'água. Com isso, além de evitar gastar, garante que eu não precise sair no comércio para comprar comida. Com certeza, Sandoval virá em busca de recuperar o dinheiro quando der por falta.
Tiro o chip do meu telefone e jogo no lixo. Essa pequena peça de memória eletrônica não tem nenhum contato que valha a pena levar comigo. O aparelho pode até ter alguma serventia no futuro. De resto, estou a um passo de construir uma nova vida. Ninguém deveria ter medo de ir para longe de uma família maldita, mesmo assim, enfrento a sensação de que estou fazendo algo errado. Acontece que não vou ficar apenas pela minha subsistência.
Subsistência é uma palavra importante que aprendi nas aulas de geografia. Êxodo também me fez pensar muito, porque para mim significa mais ou menos sair de um lugar que não tem o bastante a oferecer em busca de outro, cheio de oportunidades. Tenho medo do que posso encontrar lá fora, mas também não quero ser uma vítima por causa de um teto e um prato de comida, isso não compensa.
Com um amontoado de conflitos na minha cabeça, deixo a casa em poucos minutos. Estremeço ao ver que o soldado do tráfico continua em seu posto, acompanhando os meus passos enquanto desço a ladeira. Vou em direção a escola onde estudo, pensando no ginásio poliesportivo. É lá que planejo ficar escondida alguns dias até a comida acabar e decidir melhor o que fazer da minha vida, pois não posso ficar na rua. Durante o dia, pretendo me trancar no banheiro e, à noite, dormir no tatame. Será o melhor por hora.
Já no início da rua em que acabei de chegar, sou capaz de ler a placa com o nome "Escola Estadual Tinoco Rios". O lugar é tão grande que a vista não consegue ver todos os espaços de uma única vez. Aproveito uma distração do porteiro e entro vestida com a farda. Atravesso o complexo por trás das salas, me esquivando dos conhecidos, garantindo que ninguém me veja, até chegar ao ginásio vazio, iluminado apenas pela luz do dia.
Meus passos ecoam pela quadra, enquanto passo por ela. Rapidamente, chego ao banheiro feminino, que possui sete sanitários individuais, bancos de madeira, armários de ferro, além da área de banho com diversos chuveiros sem divisórias, é um vestiário completo. Os alunos sempre veem aqui quando querem mais privacidade.
Sobre a bancada de granito onde fica uma fila de pias de porcelana, escrevo em uma folha que arranco do meu caderno o nome "INTERDITADO", depois, colo na porta da última cabine sanitária. Nela, me tranco e espero todos irem embora para as suas casas, até que seja seguro sair.
Por questões óbvias, a experiência de ficar trancada no banheiro um dia inteiro foi a coisa mais agonizante da minha vida, apesar da empolgação de não ter sido descoberta. Também estou animada por saber que tomarei um banho tranquilo no vestiário, sem ninguém me espionando e que não irei acordar com alguém apalpando o meu corpo por baixo da minha roupa.
Tenho muito a comemorar por enquanto, embora pensar na minha mãe idolatrando um porco nojento, me cubra de angústia. Sinto como se ela tivesse preferido amar o próprio demônio do que a mim. Acho que seguir em frente significa focar no lado bom, então me concentro na experiência de ser dona do próprio nariz aos treze anos de idade.
Olho mais uma vez para os ponteiros néon do meu relógio, coisa que passei o dia fazendo enquanto bebi água, fiz xixi e permaneci sentada ouvindo as conversas alheias das garotas da escola. Elas falaram cada coisa pornográfica que os meus ouvidos ficaram ruborizados com o que escutou. Até mesmo uns amassos entre três alunas do último ano, acompanhei constrangida.
Meu professor de Português costuma dizer que somos crianças muito precoces por causa da nossa atitude adulta, mas que isso não é propriamente bom ou ruim. Às vezes não há saída, porque a realidade da vida não deixa. Ele sempre pede para desacelerarmos, andar no nosso ritmo, se pudermos, porque cada idade tem a sua magia. Eu bem que concordo, e por mais que pareça que ninguém nunca esteja ouvindo seus conselhos, eu sempre estou. No fim, acabo me achando mais madura por isso, por saber esperar.
Se esconder em um banheiro público é praticamente um ato de espionagem. Até chegar a noite eu já sabia de tudo o que rolava nos bastidores da escola, inclusive quem andava traficando e quanto custava um cigarro de maconha. Embora essa nem seja uma informação tão privilegiada.
Para garantir que realmente não serei pega em alguma ronda ou coisa do tipo, saio somente às vinte e três horas. Agradeço por não ter o turno da noite na escola, ainda que a calmaria no banheiro tenha deixado meu esconderijo mais entediante. Abro a porta com cuidado e faço uma checagem pelo ginásio, constatando que realmente estou sozinha.
Volto ao vestiário dando pulinhos. Tiro a minha roupa e rodopio esticando os meus ossos e aproveitando o meu momento. Preparo meus itens de higiene para o primeiro banho da minha nova vida. Ligo todos os chuveiros da fileira de duchas, pois quero esbanjar, e vou de uma a outra fazendo a minha festa.
Finalmente, meu cabelo é lavado. Gosto de manter ele na altura dos ombros, mas já fazem duas semanas que eu não higienizava. Com eles molhados, percebo que cresceram um pouco. Puxo um amontoado de fios para a frente do rosto buscando conferir a situação das pontas, já que o período crítico que meu cabelo tem passado atrasou a sagrada hidratação semanal. Vejo que o estrago não é tão grande e massageio algumas mechas separadamente, sonhando com uma coloração castanha brilhando novamente em minha cabeça.
— Mas o que é que tá rolando aqui? — Ouço, surpresa, uma voz ecoar pelo vestiário.
Dou um salto com o susto que tomo ao ser surpreendida, me desequilibrando sobre o chão molhado. Prestes a ceder à gravidade, sinto a mão de alguém me sustentando. Com os meus dedos escorregadios, me seguro a ele evitando uma queda. É... a ele.
Merda!
Meu coração volta a ficar em pânico, como o resto do meu corpo. Fito o garoto com o cabelo que mais parece uma juba num tom acobreado e olhos bem pequenos, quase oblíquos. Puxo minha mão da dele violentamente, me cobrindo ao máximo com dedos e braços. Tento controlar o desespero de estar nua na frente de um desconhecido, não que se fosse conhecido fizesse muita diferença.
O invasor de banheiros femininos se afasta, dá uma boa olhada em mim e desenha um risinho unilateral no canto da boca, como se a minha vergonha tivesse graça. Depois, sem cerimônia, ele vai de ducha em ducha, desligando as válvulas. Aproveito para pegar as minhas coisas e me trancar em uma das cabines sanitárias.
Me sentindo temerosa pela frágil tranca da porta, visto apressada as minhas roupas sem me secar e fico ali, apavorada. Torço para que ele saia sem me machucar, pois já não basta a experiência que tive mais cedo com Coalhada. Isso me faz lembrar que estar sozinha com ele, longe de uma única alma viva, facilita para que faça o que quiser comigo.
O meu plano estava indo tão bem...
Começo a chorar de frustração e desespero. O medo que senti mais cedo com Coalhada não chega nem perto do que me consome agora. Seguro o meu descontrole ao ver os pés dele por baixo da porta, não posso me desesperar ainda mais.
— Sai fora, garota, não tenho a noite toda — ordena.
— Aqui é uma escola pública. Sei bem quem você é, e aqui não é território do tráfico, não pode me expulsar — rebato com atrevimento, mas minha voz sai chorosa.
— Você está bem enganada e eu também sei quem você é, para a sua sorte, ou poderia estar conversando com os anjos agora mesmo. Abre a porra da porta — manda e fico impressionada em como alguém pode soar calmo e ameaçador ao mesmo tempo, só depois absorvo a quase ameaça de morte que veio nas suas palavras.
Sem querer deixar ele mais irritado, eu destranco a trava devagar e abro lentamente a porta, ouvindo as dobradiças reclamarem da falta de qualquer coisa que as deixem viçosas. Estava pronta para argumentar, quando vejo um volume em sua cintura por baixo da camiseta e não preciso de muito para deduzir que é uma arma ou algo do tipo.
Ele vai me matar!
Envolvida na situação dramática em que me encontro, sozinha e sem a menor possibilidade de me defender ou mesmo correr para longe, meu pânico explode e tudo fica escuro.
— Acorda... acorda, garota. — Escuto a voz distante, ao mesmo tempo que tapas leves batem em meu rosto.
Eu me sinto confusa e atordoada, meus olhos piscam como se eu estivesse religando o meu cérebro que estava em pane. Nada do que vejo em flashes faz muito sentido.
— Pensei que fosse mais corajosa, já que roubou o seu padrasto e fugiu de casa — diz ao me ver abrir os olhos de vez.
Começo a focar na visão que tenho dele em pé, montado sobre mim, enquanto estou estirada no banco do vestiário. Imediatamente, jogo as minhas mãos sobre as minhas partes íntimas para protegê-las, mesmo estando de roupa. Ele não ri dessa vez, apenas me observa.
— Não julgue um livro pela capa, às vezes não é coragem, é medo, necessidade ou qualquer coisa — digo virando o rosto, quando finalmente reassumi o meu raciocínio.
— Beleza, novinha, só não apaga de novo — pede saindo de cima de mim, e eu me sento no banco, enquanto tento entender o que ele quer. O garoto se afasta, depois encosta na parede. — Foi por isso que saltou fora da sua casa, tinha gente fazendo essas paradas de tarado com você? — afirmo movimentando todo o meu corpo positivamente e choro outra vez.
Entre lágrimas, fico me sentindo vulnerável diante de alguém com a mesma idade que a minha, mas com o poder de me machucar. Provavelmente, pareço uma criança mijona em comparação ao garoto. O fato de saber que ele está armado, aumenta novamente o meu medo de algo ruim acontecer. Só consigo questionar a minha própria falta de sorte por fugir de um tarado e cair nas mãos do tráfico.
— Fica tranquila, uma arma só é um grande perigo, quando está apontada para você — diz como se isso amenizasse o fato dele poder mirar na minha cabeça a qualquer momento. — Na próxima vez, fica esperta para sair da frente no melhor momento. Desmaiar só facilita para o inimigo, a gente tem que dá trabalho para morrer. Pegou a visão? — afirmo novamente.
"Dar trabalho para morrer"
De um jeito tosco, essa é a coisa que mais faz sentido que alguém já tenha me falado. Eu fugi de casa, não posso contar com ninguém e preciso me manter firme na frente de um cara armado, até porque isso é o que mais tem no morro. Ele podia ter feito coisas muito piores comigo do que Sandoval fez. Se quero me proteger, sou obrigada a estar pronta até mesmo para matar, ou serei sempre uma vítima.
— Alguém já tentou te matar? — A curiosidade surge em mim e me arrisco a perguntar.
— Ninguém me vê como uma ameaça — responde com tranquilidade.
— Mas já matou alguém? — Fico mais a vontade de perguntar outra vez, pois ele não age de forma ameaçadora.
— Sou da paz, mas se precisar, vou estar bem esperto para ser o mais rápido e o com a melhor pontaria. — Abaixo a cabeça e penso o quanto isso faz sentido. — Quantos anos você tem?
— Não é da sua conta — falo de um jeito insolente. Por mais que ele não pareça Coalhada, é como se o ouvisse falar.
— Você é muito doida — diz entre um sorriso debochado e um olhar atento. — Eu tenho praticamente quinze — revela, num sinal de boa fé.
— Eu tenho praticamente quatorze — respondo com má vontade. — Como você entrou para o tráfico? — pergunto um tempo depois.
— Emprego fácil, paga bem, não exige idade mínima e posso fazer carreira sem diploma. Antes dos trinta, sendo pessimista, provavelmente, serei um milionário — explica.
— Ou presunto — acrescento.
— Presunto a gente vira de qualquer jeito. A hora vem pra todo mundo.
— Teria lugar pra mim no tráfico? — arrisco um abrigo, quem sabe um patrão com poder e uma arma seja o que eu preciso.
— Desmaiar desqualificou você — avisa de um jeito educado. — Tem um lugar pra ficar?
— Aqui.
— Aqui não é uma opção — diz sem cerimônia.
— Eu moro no morro, nunca atrapalhei os negócios do tráfico. Isso aqui é público, se serve para o crime, porque não serve para me ajudar? — questiono
— E nasce uma advogada... — Dá um longo suspiro.
— Eu posso pagar, tenho dinheiro — ofereço.
— Se eu quisesse o seu dinheiro já tinha pego.
— O que eu posso te dar então? — Ele não responde à minha pergunta. — Vai me fazer implorar para ficar aqui? Entende o que vai acontecer comigo se eu voltar na minha casa?
— Ainda não aconteceu?
— Algumas coisas sim... — digo endurecida e uma lágrima molha a maçã do meu rosto.
— Você disse à sua mãe? — afirmo com um simples e pesaroso movimento de cabeça. — O que ela disse? — Suspiro pesado.
— Vai ou não me deixar aqui? — Endureço mais o meu rosto.
— Ela não acreditou, não é? — desconfia. — Se ela não acreditou, por que eu tenho que acreditar? — alfineta.
— Esquece... — peço.
Levanto do banco e começo a recolher de um jeito desesperador os meus pertences ao meu redor. Impaciente, eu enfio tudo dentro da minha mochila para ir embora. Me sentindo injustiçada, jogo-a sobre as costas. Enxugo o meu rosto com o dorso da minha mão, saindo em direção à porta.
— Espera ai, esquentadinha. — Segura o meu braço, e eu puxo de uma vez me soltando dele. Logo o encaro irritada. — Você está muito nervosa, isso não é legal. Porque não me deixa pensar direito.
— Qual é a sua, hein? Tá querendo o quê comigo, se não vai me deixar ficar? — questiono impaciente ao soltar a mochila no chão sem a menor delicadeza.
— Estou até querendo te ajudar, mas você não colabora.
— Aê, garoto! — Bato as minhas mãos numa única palma. — Thundercat ou seja lá qual for o seu nome... — Fito os olhos azuis dele. — Eu sei que a tua parada é o tráfico. Não vou ficar aqui de bobeira com você, te contando a minha vida e a porra toda. — Solto um palavrão. É algo que faço quando estou muito irritada.
— Boquinha suja, hein.
— Boquinha... boquinha... — Empaco na palavra, enfurecida com o garoto enquanto me sinto uma idiota.
— Thundercat é o nome de guerra. Cabelo laranja, olho de gato, aí surgiu essa parada — explica de um jeito legal. — Eu me chamo Dominic. É um nome meio bosta, então fala só "Dom" que dá certo. — Estende a mão.
— Boquinha suja... — desdenho do palavrão que falou e aperto a sua mão. — Eu me chamo Dalena.
— Eu sei. Não te falei que teu padrasto tá enchendo o saco atrás do seu paradeiro pelo morro. Ele anda perguntando a todo mundo sobre você. — Solto a mão dele e sento no banco. — Teu nome é diferentão, de onde tua mãe teve essa ideia?
— Ela juntou o nome do meu pai com o dela. Dayvyson e Marilena.
— Pelo menos a junção desses dois digimons deu algo melhor, não?
— Então, do amor não surgem coisas lindas? — ironizo a mim mesma.
— Ah... você é bem bonitinha — brinca tentando me confortar.
— Valeu. Você também é, mas acho que sabe disso, já que tem até fandom aqui no morro.
— Essas meninas são malucas. Não ligo com isso — diz como se realmente não se importasse.
— Dominic também é legal — digo após um momento de silêncio.
— Não é não. Só quer dizer que nasci em um domingo. A médica deu a ideia e minha mãe curtiu — fala apoiando o pé na parede.
— Obrigada por me deixar ficar — agradeço após um tempo em que nós nos encaramos como se víssemos no outro um problema.
— Mas eu não deixei, digamos que ainda não te vi aqui. E, para que a sua estadia não termine com você caindo morro abaixo, acidentalmente, é claro, nem pense em respirar perto do almoxarifado — pontua enfaticamente.
— Eu não vou — afirmo com segurança.
— Onde está se escondendo? — Ele me pergunta passeando os olhos pelo banheiro.
— Na cabine interditada — aponto envergonhada.
— Pensa logo em outro lugar, porque é só hoje — avisa, e olho para ele com ar de desespero. — No máximo só mais uma noite. — Abaixo a cabeça, afundando o rosto entre as mãos. — Tem o que comer?
— Sim — minha voz sai automática.
— Qual é a de ligar todos os chuveiros? — Dom me olha com curiosidade e respondo num dar de ombros. — Não faz mais isso.
— Mais alguma regra? — pergunto nervosa, quicando o pé na cerâmica do banheiro, segurando o choro.
— Não adianta ficar com raiva. Dois dias são o máximo — determina, irredutível.
— Dois dias não são o suficiente para a poeira baixar — argumento.
— Porque não se escondeu na mata? — questiona como se fosse o melhor lugar do mundo para se esconder.
— Aqui tem bebedouro, sanitário e um lugar para dormir sem ser mordida por uma cobra. Acha que sou louca de me enfiar no mato?
— Dois dias e fim de papo — diz por fim e me deixa sozinha no vestiário, enquanto imagino um outro lugar que ofereça o mínimo como aqui.
Meus rosto se contrai em preocupação, pois não pensei em um plano "b" para esses primeiros dias. Ao avaliar a minha situação por um longo tempo, concluo que não existe um lugar seguro no morro para ficar por enquanto. Também não me sinto pronta para pedir abrigo na casa de Lourdes, onde, com certeza, só serei aceita na condição de me prostituir. Mas se eu chegar no fim da linha sem nenhuma outra opção, para a casa de Sandoval não volto.
|NOTA DA AUTORA|
Ei, bebês! Amo trazer novas histórias para vocês, isso é viciante. Agora conta o que está pensando e se já tem previsão sobre o que vem por aí.
Até o próximo capítulo! ✿◕‿◕✿
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