※ Capítulo 4 ※
Durante os vinte e dois dias que Mayuri esteve fora, Nemu sentiu a falta dele o tempo todo. Procurou concentrar todas as suas energias no trabalho, mas conforme o tratamento de recuperação de memórias avançava, mais fortes ficavam suas emoções e maior se tornava a necessidade de ter Mayuri por perto.
As lembranças surgiam durante a noite em forma de sonhos e na manhã seguinte estavam lá, acessíveis, como num catálogo ou biblioteca.
Aquelas três semanas se seguiram de forma quase religiosa: encerrados os trabalhos no Instituto, Nemu ia para a casa, se alimentava, e esperava por Akon. Ele sempre aparecia duas ou três horas após o expediente — não queria que os outros membros do Instituto os visse juntos — e sempre utilizava o shunpo para se locomover, evitando perguntas durante o percurso.
Ele entrava pelos fundos da propriedade, através da porta da cozinha, e lá realizava a aplicação do soro, que durava em média quarenta e cinco minutos.
Nemu criou o hábito de deixar um chá preparado para eles, pois apesar do procedimento ser muito simples, resumindo-se a aplicar o soro lentamente e esperar, Akon sempre ficava até o final, como precaução, pois havia a possibilidade de Nemu sofrer algum efeito colateral.
Após terem feito a aplicação do soro, Nemu e Akon saíram da cozinha e caminharam juntos até a varanda, enquanto conversavam sobre as atividades no Instituto.
Nemu se sentou na cadeira de balanço que havia alí com sua xícara de chá em mãos, enquanto Akon encontrava-se em pé no jardim fumando um cigarro. Eles estavam conversando longe um do outro para que a fumaça não voasse pra cima de Nemu.
— Vou indo então, Nemu-San — disse Akon, enquanto apagava o cigarro. — Até amanhã.
— Até amanhã, Akon-San — respondeu com um leve sorriso nos lábios. — Muito obrigada pela ajuda.
— Eu me ausento por poucos dias e você já fica devendo favores por aí, Nemu? — Interrompeu Mayuri, que havia chegado silenciosamente.
— Mayuri-Sama! — Engasgando levemente com o chá. — Bem-vindo! Fez boa viagem?
— Kurotsuchi Taichou — Akon o cumprimentou, fazendo uma reverência ao líder.
— O que vocês dois estão fazendo aqui fora a essa hora? — Indagou Mayuri, ignorando completamente os cumprimentos de seus subordinados.
Akon ficou em silêncio, mas Nemu agiu rápido.
— Eu não me senti muito bem durante a tarde, e Akon veio ver se eu precisava de algo. — respondeu Nemu, levantando-se da cadeira e apertando o xale que usava contra o corpo.
— Quanta gentileza da parte dele. — Riu sem humor. — Mas agora estou aqui e posso examiná-la, pode ir descansar Akon, teremos muito trabalho amanhã no Instituto.
Akon e Mayuri se conheciam há séculos, e se têm uma coisa que o primeiro havia aprendido sobre o segundo durante aqueles longos anos de convivência, é que a ironia podia ser facilmente seguida de violência dependendo de como o interlocutor reagisse.
— Sim, Kurotsuchi Taichou. — Se limitou a dizer, fazendo uma rápida reverência ao capitão e a tenente, partindo num shunpo.
Uma brisa gélida castigou a mulher de cabelos negros, que encontrava-se parada na varanda ao lado de seu líder.
— Já para dentro, Nemu — ordenou, abrindo a porta na sequência.
Nemu obedeceu e se preparou para o pior. Mayuri a conhecia como a palma da mão e sabia que ela quase nunca tinha problemas de saúde. Ela era saudável como um cavalo geneticamente modificado cujos anticorpos são capazes de neutralizar qualquer doença. Desta forma, era de se esperar que ele não engoliria sua desculpa.
— Deseja algo para o jantar, Mayuri-Sama? — Ofereceu, tentado evitar o inevitável.
— Já comi. — Tirou o seu haori branco, e pendurou no cabide atrás da porta. — Vá se lavar, vou examinar você.
— Mas eu já estou me sentindo melhor...
Mayuri a encarou com um de seus olhares mais ferozes e Nemu achou melhor não discutir. Subiu as escadas e foi direto para o banho. As memórias que ela havia recuperado até agora apenas reafirmaram o que ela já sabia: ele não tolerava ser contrariado.
Tirou a roupa rapidamente e sequer se preocupou em aquecer a água. Entrou na banheira gelada e passou a se esfregar com firmeza enquanto maquinava alguma desculpa.
Ela sabia como as coisas aconteceriam a seguir, uma vez que Mayuri jamais permitiu que ela se consultasse ou fosse tratada por membros da 4ª divisão — que era a dos shinigamis médicos responsáveis pela saúde de todos da Seireitei — e sempre cuidou dela e de si mesmo em casa.
Ele tinha um cômodo que funcionava como uma espécie de consultório, e lá realizava todos os exames necessários e demais procedimentos. Se fosse algo mais complicado, usavam o laboratório.
Privacidade era algo essencial para Mayuri, tanto que a única pessoa que o viu sem máscara ou pinturas — além de Nemu — foi a antiga capitã da 4ª divisão, Retsu Unohana, que foi responsável por tratá-lo após uma grande luta que quase o matou. No entanto, a mencionada mulher faleceu durante a guerra, e salvo aquela única ocasião, ninguém jamais o examinou.
Nemu não tinha habilidade em mentir, pelo menos não para Mayuri, então precisava ter uma narrativa convincente na ponta da língua, e principalmente, não podia deixar ele descobrir o que ela e Akon vinham fazendo em sua ausência.
Após lavar os cabelos, enxaguou-se rapidamente, colocou uma toalha na cabeça, vestiu suas roupas íntimas, um roupão branco por cima, e dirigiu-se ao quarto-consultório.
Mayuri estava sentado em sua cadeira lendo a edição daquele dia do "Diário da Seireitei" enquanto esperava por ela.
Como já haviam feito aquilo diversas vezes, Nemu sabia como proceder. Entrou, tirou o roupão e se sentou na maca vestindo apenas suas roupas de baixo. Usava calcinha e sutiã de algodão azul claro, sem detalhes, desses que são feitos para ser confortáveis e não sensuais.
Ele se levantou e começou a examiná-la como de costume: verificou os ouvidos, a garganta, os olhos, articulações, e ouviu os batimentos cardíacos que estavam levemente acelerados.
— O que você sentiu durante a tarde? — perguntou enquanto examinava os pulmões dela.
— Um pouco de enjôo, mas foi por minha culpa e não interferência externa — respondeu olhando para o chão.
Ele a encarou esperando uma explicação.
— Eu almocei o que sobrou do jantar de ontem. — Suspirou sem encará-lo. — Acabei sendo negligente com as refeições em sua ausência e ao invés de preparar alimentos frescos eu apenas aquecia a que havia feito no dia anterior. Acredito que o almoço tenha me feito mal, mas eu já o eliminei e estou me sentindo melhor agora.
Foi o melhor que conseguiu, afinal de contas, não era de todo mentira, já que ela havia almoçado sobras do jantar quase todos os dias que ele esteve fora.
Ela viu os pés dele se moverem, primeiro em direção a mesa, depois de volta a maca, e engoliu em seco. Fechou os olhos por um instante, até sentir a mão dele segurar seu queixo, erguendo seu rosto.
Ele a encarou, ela encarou de volta.
— Eu não quero que você receba pessoas quando estiver sozinha em casa — disse olhando-a nos olhos. — Não é prudente.
— Sim, Mayuri-Sama.
Passaram-se alguns minutos, o silêncio reinava absoluto, e Nemu esperava que sua narrativa tivesse sido convincente o bastante. Ela sabia que Mayuri não gostava de visitas, as evitava a todo custo, era extremamente desconfiado e não acreditava em qualquer tipo de boa intenção, mas tinha esperanças de que — por se tratar de Akon — o assunto não se estendesse muito.
— Você está gelada — disse Mayuri ao trocá-la na bochecha.
— A água estava fria...
— Minha nossa, você anda mais preguiçosa do que nunca. Não querer cozinhar duas vezes por dia é compreensível, mas não ter capacidade de esquentar a água do seu próprio banho?! — Revirou os olhos. — Inacreditável.
— Sinto muito, Mayuri-Sama.
Eles se encararam por mais alguns segundos até ele voltar a atenção para as roupas íntimas dela.
— Desde quando você tem essas peças? — perguntou, puxando levemente a alça do sutiã dela.
— Eu as comprei, Mayuri-Sama, as outras estavam velhas.
— Você gosta dessa cor? — questionou em tom inexpressivo.
— Gosto — respondeu sinceramente, um tanto confusa com a pergunta inesperada.
O assunto não se estendeu. Ele descartou as luvas que havia usado enquanto Nemu colocou o roupão branco e foi até seu quarto vestir-se de forma apropriada.
Nemu estava um pouco aliviada com o desfecho daquela noite, já que aparentemente Mayuri havia comprado sua narrativa. Mas não pôde eliminar completamente suas preocupações, pois não fazia a menor ideia do que ele tinha em mente.
Não era uma situação fácil de lidar, mesmo tendo sido sábia ao utilizar elementos verdadeiros em sua mentira, sabia que no longo prazo as mentiras não iriam se sustentar. Precisava de um plano e rápido, pois não conseguiria dar continuidade ao tratamento com Mayuri por perto.
Após vestir o pijama, sentou-se em frente a sua penteadeira para escovar os cabelos. Todas as noites Nemu escovava o cabelo cento e vinte vezes. Mayuri sempre dissera que o cabelo dela tinha sido uma das coisas mais difíceis de modificar. Se tivesse deixado puramente por conta da genética, ela teria cabelos azuis, assim como ele. Mas, graças a ciência e o perfeccionismo de seu criador, ela possuía longos cabelos negros sedosos, e cuidar bem deles era o mínimo que ela poderia fazer.
Quando estava prestes a terminar de escovar o cabelo, ouviu uma leve batida na porta. Levantou-se e abriu-a prontamente. Mayuri estava em frente a porta segurando uma xícara de chá nas mãos.
— Beba isso antes de dormir. — Entregou a xícara e se retirou logo em seguida.
— Obrigada, Mayuri-Sama — respondeu, surpresa com a atitude de seu capitão.
Ele parou no meio do corredor de costas para ela, passaram-se alguns segundos, mas ninguém disse nada, e no instante seguinte Mayuri foi para o seu próprio quarto.
Nemu ficou em pé na porta por algum tempo. Analisou o conteúdo na xícara: era chá de hortelã com gengibre. Ela sabia que o chá prevenia contra gripes, além de acalmar o estômago. Sentiu um calor confortável dentro de si, e por um momento ficou feliz com o gesto dele.
No entanto, a felicidade não durou muito, conforme tomava o chá a gratidão transformava-se em preocupação e arrependimento. Ela não deveria mentir para ele, as memórias traziam uma sensação de familiaridade muito grande, e mais do que nunca ela se sentia íntima de Mayuri.
Intimidade não no sentido vulgar, mas algo mais profundo e complexo, pois eles sabiam das necessidades um do outro sem precisar dizer nada. Na maioria das vezes que Nemu perguntava a ele se precisava de algo era para ser solícita ou simplesmente porque ela já sabia exatamente qual era a necessidade em questão, e com ele não era diferente.
Mayuri sempre cuidou das necessidades dela, na maioria das vezes, sem Nemu ter que dizer uma única palavra. Eles haviam passado por muita coisa juntos, somadas suas duas vidas, conviveram por mais tempo do que era capaz de se lembrar.
Ele era cruel, mas se importava o suficiente com ela para cuidar de sua saúde, vesti-la, alimentá-la, ensiná-la a ler, escrever, lutar, cozinhar e até a tomar banho e escovar os dentes.
Desde as coisas mais difíceis até as mais simples, Mayuri sempre esteve com ela. Ele não tinha pudor ao examiná-la, operá-la, usá-la como arma, isca ou escudo. Mas a verdade é que ele não tinha problemas em fazer tudo isso consigo mesmo.
Mayuri estava sempre modificando o próprio corpo, transformando-o em uma arma, aumentando sua capacidade de regeneração com tratamentos dolorosos e não tinha nenhuma dificuldade em usar a si mesmo como cobaia de seus experimentos.
A expectativa de vida na Soul Society era altíssima. Se não morressem em batalha era possível viver milênios, e as pessoas tardavam muitíssimo a envelhecer. Era comum encontrar pessoas de aparência muito jovem que já haviam ultrapassado os duzentos anos.
Ele poderia muito bem ter desenvolvido outro clone para chamar de tenente. Mas ele decidiu salvá-la, trazê-la de volta a vida, não alguém parecido, mas exclusivamente ela. Como ela podia ser tão egoísta a ponto de mentir para ele agora? Como ela podia tratá-lo desta forma? Quanto mais pensava no assunto, maior se tornava a culpa que sentia.
Nemu desejava mais do que tudo terminar o tratamento de recuperação de memórias, sobretudo porque sentia que as lembranças mais importantes ainda não haviam sido recuperadas. Mas não podia dar continuidade na presença de Mayuri, e certamente não estava disposta a continuar mentindo para ele.
Quando finalmente se deitou o sono não tardou a chegar. Estava exausta. Dormiu com a certeza de que precisava de ajuda, e na manhã seguinte resolveria a situação em que havia se metido, de um jeito ou de outro.
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