XIX - Em busca das bolas de dragão
Os penhascos erguiam-se como dedos com unhas afiadas, desafiando as alturas, paredes gigantescas que mergulhavam a paisagem num negrume frio. O sol ocultava-se atrás dos rochedos agrestes, não fazendo qualquer esforço por iluminar, nem que fosse ao de leve, aquele sítio esquecido do mundo.
Vegeta pairava por ali, observando os detalhes, reconhecendo neste um ótimo local para exercitar os seus poderes sem as restrições da câmara da gravidade ou do relvado da Capsule Corporation. Haveria de voltar. Gostava de sítios solitários, perigosos, assustadores.
Uma sombra passou por cima dele. Voltou a cabeça, mas não viu nada. Não gostou. O vento assobiou por entre os dedos petrificados. Subiu um pouco mais para escapar do corredor claustrofóbico de penhascos e para perceber quem utilizava um lugar tão pouco hospitaleiro como lar. Alguém solitário, perigoso, assustador, sem dúvida. E também enorme.
Um pio estridente cortou o vento e Vegeta encolheu-se. Não se queria demorar e aguçou o olhar para descobrir onde estava a bola de dragão. Fixara os três locais no mapa que o radar mostrara e decorara as indicações que Kakaroto lhe tinha dado, mas lamentava tê-lo deixado tão apressadamente e não lhe ter exigido o radar. Pensava, contudo, que, na realidade, não precisava do radar – bastava-lhe a sua excelente memória, sentido de orientação e perseverança.
Nos entalhes dos penhascos cimeiros, mais próximos das nuvens e do céu de um azul elétrico, descobriu o que lhe pareceu serem ninhos gigantescos, tufos de palha enegrecida, ramos e folhagem de árvores. Não viu ovos. O odor era acre, entrou-lhe pelas narinas e ele torceu o nariz. Novo pio e a mesma sombra ameaçadora bloqueou a pouca claridade que o ajudava a ver os detalhes do lugar. Levantou os olhos, descobriu a figura ameaçadora de uma ave gigantesca, com um bico enorme recheado de dentes, as garras das patas meio dobradas, prontas para ferrá-lo.
- Kuso!!
Suspenso no vazio, Vegeta desviou-se o suficiente para escapar da ave. As asas a bater provocaram uma deslocação de ar tão violenta que ele teve de se esforçar para não ser projetado contra os penhascos, que lhe pareciam agora, depois de conhecer o habitante daquelas paragens, um prolongamento natural das garras do monstro alado.
Os pios tiveram eco e apareceram mais duas aves, ainda maiores que a primeira.
- Tenho de sair daqui.
Aproximou-se novamente dos ninhos vazios. As aves voejavam agitadas em círculos acima dos picos, piando furiosamente. Preparavam nova investida. Vegeta esticou um braço, mão com os dedos unidos, a reunir força para um ataque, mas achou que não valia o esforço. Preferia enganar aqueles malditos bichos. Sorriu. Haveria de voltar ali, agora tinha a certeza, para os seus treinos e haveria de fritar uma ou outra ave, no dia em que voltasse. Mas, naquele momento...
- Não me apetece desperdiçar o meu talento!
Uma das aves mergulhou, soltando um silvo tão agudo que Vegeta tornou a encolher-se. Desviou-se outra vez, rindo à gargalhada, apreciando o bailado que fazia com o pássaro que era do tamanho de um camião, tão pesado e grande que não tinha velocidade o que, para ele, era como se voasse em câmara lenta.
Não viu nada nos ninhos. Decidiu subir, enquanto fintava os ataques das aves que piavam, agitavam as asas, esticavam as patas, regressavam às alturas e investiam, aumentando a sua frustração e fúria. Vegeta enfiou-se numa fenda, para escapar da ave mais pequena, e a sorte sorriu-lhe. Viu algo que brilhava numa pequena plataforma rochosa, no interior da fenda.
Um estrondo desfez o rochedo. A ave maior, o macho do grupo, tinha atacado o penhasco onde ele se enfiara. Vegeta protegeu a cara com os braços, enquanto os pedregulhos rolavam em seu redor e a ave macho piava em triunfo, voando por cima dele, descobrindo-o à ilusória mercê das suas garras. Com um vigoroso bater de asas, a ave desceu na direção do príncipe. Mas ao desfazer o rochedo, a ave tinha também libertado a bola de dragão. Vegeta agarrou-a e, voando às arrecuas, escapou-se a uma das garras, que lhe passou a milímetros da perna esquerda.
- Arigato, maldito bicho!
Vegeta subiu mais alto que os penhascos, observando as aves voando em círculos à sua procura, confusas por tê-lo perdido de vista. A sua lentidão era patética e nem se tinham apercebido de que a eventual presa se tinha escapado, mesmo por debaixo dos seus estúpidos bicos dentados.
- Quando eu voltar, vou esturricar-te as penas todas – prometeu rindo-se, olhando para a ave macho que piava um lamento de fúria.
Olhou para a mão e observou o interior da bola cor-de-laranja. Contou seis estrelas vermelhas. Fechou os olhos a visualizar mentalmente a próxima localização no mapa verde do mostrador do radar do dragão. A que estava mais perto era a bola de dragão com uma estrela. Orientou-se pelo sol que descia no horizonte e saiu disparado num voo rápido na direção que sabia ser a correta.
Ele não precisava do raio do radar do dragão!
A distância que tinha de cobrir, era, infelizmente, longa e ele sabia que iria demorar uma grande parte da noite em viagem, para não utilizar demasiada energia – não o podia fazer, apesar de detestar aceitar o facto. O combate com Kilm ainda se repercutia nos músculos e nos ossos. Mas, com todas as limitações, haveria de chegar primeiro ao ponto de encontro, junto ao túmulo do idiota do criador da Dimensão Real, antes de Kakaroto e daquele rapazola que era o seu neto. Iria também descansar e só esperava que a próxima bola de dragão estivesse igualmente num lugar inóspito. Não estava com disposição para negociar com quem quer que fosse a posse de qualquer uma das duas bolas que ele estava encarregado de procurar.
***
Sentia uma pedra cravada nos rins, mas estar deitado sabia-lhe tão bem que não conseguiu conciliar as forças suficientes para mudar ligeiramente o corpo de modo a escapar da pedra que lhe estava a estragar o descanso.
Despertava com imensa preguiça. Moveu ligeiramente os lábios secos, percebeu que estava com sede e que o interior da boca lhe sabia a cinza.
Pronto! E ali estava o acordar do sonho irreal que tivera. Iria descobrir-se no chão do bosque queimado – daí o sabor a cinza – incrível sobrevivente de uma hipotermia. Não conseguiria explicar a razão da destruição do bosque, nem tão pouco como conseguira passar uma noite ao relento sem ter sucumbido e estar apenas com sede e com uma dor de rins monumental. Estaria num sítio que ele reconhecia como verdadeiro e que não corria o risco de se desfazer pela ação de uma esponja impregnada de diluente.
Tentou mover as pálpebras, começando pela do lado direito, mas pesavam-lhe demasiado. Gemeu, numa tentativa de forçar a garganta a verbalizar um apropriado "socorro" ou "ajudem-me", mas estava demasiado cansado.
Alguém se ajoelhou ao lado dele, a frescura de uma compressa molhou-lhe a testa. Uma voz fina e doce perguntou-lhe se estava bem e ele quis responder que sim, mas a boca não lhe quis obedecer e torceu-se numa careta semelhante a um sorriso.
A enfermeira tentava despertá-lo à custa de água na testa, mas ele desejava era água na boca e agarrou-lhe no braço, pedindo e nem soube que língua utilizou:
- Dá-me água... por... por favor...
Quando as primeiras gotas lhe chegaram à língua, agarrou com as mãos a pequena malga que lhe tinham encostado ao queixo e bebeu até se achar saciado. Deitou a cabeça na terra e as pálpebras despegaram-se, de repente.
- Estás melhor?
Viu as nuvens a deslizarem no céu de um azul pálido... tudo desenhado.
Tiago sentou-se de repente. O sonho continuava.
A enfermeira repetiu:
- Estás melhor?
Ele olhava hipnotizado para a sua mão direita que assentava na terra e que sustinha o peso do corpo que soerguia. Pelo menos, naquela posição, já não tinha a pedra a picar-lhe os rins. Continuava a ser um desenho animado.
As lembranças regressaram. Tinha uma missão – encontrar uma bola cor-de-laranja com duas estrelas vermelhas no seu interior que estava numa aldeia, ou assim parecia a Goku que via do alto o local indicado pelo radar. Ele tinha dito ao saiyajin que o deixasse ali, que fosse procurar outra bola e que, assim que a tivesse, que fosse ter com ele e que iriam então os dois juntos procurar pelas últimas bolas. Goku assim fizera. Ao aproximar-se da aldeia, Tiago resolvera experimentar, de sua autoria, a técnica de voo, a bukuujutsu. Como se sentia tão leve com aquele aspeto bizarro de desenho animado devia ser algo inato e fácil, sendo ele herdeiro de quem era. Enganara-se. Tropeçara nos próprios pés, não contara com uma ladeira acentuada e rebolara por ali abaixo. Ao chegar ao fundo, embatera com a cabeça numa pedra – o chão estava semeado delas – e perdera os sentidos, não sem antes aterrar em cima de outra que, pelos vistos, lhe moera os rins.
Ele continuava a ser um raio de um desenho animado e sentia-se tão estranho! Seriam as mesmas sensações que sentira a sua mãe quando ali estivera, quinze anos antes? E teria tido a mesma sede enorme que o fazia ansiar por um rio de água em exclusivo para si?
Com ele não estava nenhuma enfermeira. Era uma rapariga que aparentava ter a mesma idade que a sua, o cabelo muito negro, vestida com um traje estranho - uma túnica colorida apertada no pescoço de mangas compridas, calças largas e botas escuras até ao joelho. Os olhos eram amendoados, tão negros quanto o cabelo. Tiago sentiu um frio no estômago. A moça era um desenho animado mas era bastante bonita. Levantou os sobrolhos ao vê-lo olhar para ela e ele respondeu:
- Hai, estou melhor...
Goku tinha-lhe dito que não se devia demorar e ele tentou ir direto ao assunto, mas começou a gaguejar:
- Escuta... Eu não sei onde estou, mas... Mas preciso de uma coisa que está aqui... Eu estou à procura de... Bem, é uma coisa que eu não sei se tu conheces ou se viste... Eu também nunca vi nenhuma, mas... Acho que saberei o que é quando a vir...
- Shh!
Ela mandou-o calar colocando o dedo indicador sobre os lábios. A outra mão segurava uma pequena malga com um resto de água no fundo, o pano molhado sobre o ombro que utilizara na testa dele. Ele ficou enfeitiçado e calou-se, esperando as palavras dela.
- O que procuras, será encontrado.
- Ah, sim? Hai, espero bem que sim... É muito importante para mim...
- Muito importante? – Ela perguntou aquilo com tanta delicadeza que a Tiago apeteceu-lhe agarrá-la e embalá-la nos braços. Sentiu falta de ar.
- Pois, muito... importante...
Ao dizê-lo, porém, já não parecia assim tão importante.
Uma voz surgiu do nada interrompendo o coração dele.
- Weewee! Onde estás?
- A minha mãe. Levanta-te. Vais apresentar-te com dignidade. Põe-te de pé!
As pernas pareciam manteiga, mas Tiago levantou-se. Apareceu uma mulher esguia como uma cobra, vestida como a rapariga, uma versão mais madura, mas ainda assim incrivelmente bonita, da sua salvadora. Olhou rapidamente em volta e descobriu-se numa vereda pedregosa que serpenteava descendo um outeiro até um conjunto de casas disfarçadas no meio do arvoredo. A aldeia onde estava a bola de dragão.
A mulher mirou-o de alto a baixo.
- Forasteiro, apresenta-te.
- Chamo-me Tiago e...
A rapariga sussurrou-lhe:
- Baixa a cabeça. Já!...
Tiago fez uma grande vénia, quase perdendo o equilíbrio.
- Forasteiro, segue-me.
A mãe começou a descer pela vereda. Tiago olhou para Weewee que lhe indicou que seguisse a mulher e ele fê-lo, forçando as pernas moles a lhe obedecerem. Os joelhos estalaram, os primeiros passos saíram desengonçados, mas foi conseguindo, a pouco e pouco, endireitar os ombros e levantar o queixo. Não percebeu por que razão a mulher lhe perguntou o nome, se era para continuar a tratá-lo por forasteiro.
Chegados à pequena povoação, Tiago deixou de ver Weewee – tinha-a perdido de vista. Outras mulheres, alguns homens, um punhado de crianças, juntavam-se a ele e à mulher, seguindo-o, rodeando-o, murmurando. As visitas deviam ser raras por aqueles lados. Pararam junto a uma casa grande que dominava uma praça redonda de terra batida, onde um grupo de rapazes fortes erguia estacas que enfeitavam com grinaldas de flores e folhas verdes. Preparava-se uma festa. Atrás dele aglomerava-se uma multidão, que fora colecionando ao atravessar as ruas.
Da porta escancarada da casa grande, saiu um homem robusto, apoiado num bordão de madeira escura. Tiago viu, pendurado ao pescoço do homem, uma bola alaranjada, não muito grande, que caberia numa mão. Era aquilo que ele procurava. Estava com sorte e sorriu, mas a animosidade na voz do homem apagou-lhe o sorriso no instante seguinte.
- Nós não gostamos de estranhos.
Tiago fez uma segunda vénia. Achou que devia ser cortês.
- Senhor, eu venho por bem.
- Não me interessa. Abandona imediatamente as nossas terras!
- 'Tousan, não devemos ofender os deuses no dia da nossa festa anual – disse a mãe de Weewee conciliadora.
- Os deuses não o enviaram e não se importarão com a sua sorte – ripostou o homem, que seria o avô de Weewee e uma espécie de chefe daquele burgo. – Ele que se vá e os deuses não reagirão.
- Não poderás ter a certeza. Reúne o conselho. Pede-lhes que analisem a questão. Entretanto, ele será teu convidado. Deixo-te aos teus cuidados.
O homem acariciou a bola. Tiago fez um esgar. Não lhe seria fácil conseguir aquela bola. Nunca a teria a bem, compreendeu.
- Desagrado-te, forasteiro? – perguntou o chefe ofendido.
- Não, senhor. De modo algum.
- Farei como a minha filha sugere. Reunirei o conselho. Entretanto, pertences-me.
O homem reentrou em casa. A mãe de Weewee fitava-o com tanta intensidade que Tiago, engolindo em seco, desviou o olhar. A pequena multidão desmobilizava. Apareceram dois homens altos, semelhantes às estacas que se montavam na praça. Empurraram-no para a casa grande. O interior era escuro e antes de ele conseguir habituar os olhos à pouca luminosidade e perceber onde estava, enfiaram-no numa pequena sala, ficando de guarda à porta. Ser convidado do chefe era ser prisioneiro, pensou aborrecido.
Pensou em Goku. O que faria ele numa ocasião daquelas? Roubaria a bola e dava em enxerto de porrada a quem quer que se metesse no seu caminho? Ou tentaria, com o seu jeito bonzinho e pachorrento, que lhe entregassem a bola e acabariam todos amigos no final? Pessoalmente, agradava-lhe mais a primeira hipótese. Não tinha tempo a perder e não tinha paciência para aturar parolos. Só havia um senão: apesar de ter sangue saiyajin, ele nunca seria capaz de dar, a quem quer que fosse, um enxerto de porrada e teria de passar, para começar, por aqueles homenzarrões que o guardavam.
Pensou em Weewee. Acalmou-se. Encostou a cabeça à parede, suspirou. Estaria ela também a pensar nele? Era bom que assim fosse, poderia interceder junto do avô pela sua sorte.
Curiosamente, libertaram-no quando a noite começava a cair e acendiam-se fogueiras na praça, entre as estacas. Ele saiu da casa, desorientado e faminto. Ninguém lhe tinha dito nada, o chefe não falara mais com ele. Os guardas simplesmente tinham-se afastado da porta, que sempre estivera aberta. Levantou-se, espreitou, não viu ninguém e saiu, atraído pelos sons de convívio que escutava para além das paredes. O conselho deveria ter deliberado a favor dele. De qualquer modo, estava livre.
O festival começava com cantigas e distribuição de bebida. Alguém lhe empurrou uma caneca grande para as mãos. Como tinha sede, bebeu. Pelos vistos, o seu estatuto de forasteiro tinha-se, de alguma forma, esbatido. Ou então era a festa que mudava as pessoas, tornando-as mais desinibidas e amigáveis.
A bebida era espessa e aromática. Não percebeu qualquer toque de álcool, mas alguma coisa deveria ter pois experimentou, quase imediatamente, uma náusea. Estava com uma fome atroz e beber sem comer nunca dava bom resultado. Tiago quis devolver a caneca, mas as pessoas que vogavam pela praça transformaram-se em borrões de tinta. Sim, porque eram todos um bando de desenhos animados! Soltou uma gargalhada.
Tinham-se montado cavaletes onde estenderam pranchas de madeira, criando assim compridas mesas que haveriam de servir a comunidade que se reunia na praça. Tiago só via canecas iguais à sua em cima das mesas e nada de comida. Começou a desesperar quando um dos borrões de tinta lhe estendeu uma malga com o que lhe pareceu algo de sólido. Ele focou a visão e da amálgama colorida surgiu um rosto que ele conhecia.
- Weewee!
- Deves estar com fome.
- Hai!
Tiago agarrou na malga e comeu, nem soube bem o quê, mas foi muito saboroso, algo fibroso como a carne, leve como um legume e adocicado como uma fruta. Pediu mais. A rapariga desapareceu na confusão de borrões de tinta. Entregaram-lhe uma segunda caneca que ele quis evitar beber, mas aquela bebida era demasiado saborosa para lhe resistir e a sede tinha voltado. Weewee entregou-lhe uma segunda malga e ele comeu sofregamente, enfiando as mãos na boca.
- Não deves comer assim – observou ela.
- Estou cheio de fome, Weewee – queixou-se com a boca cheia de comida.
- Procura não beber mais. A bebida faz-te fome.
- Que bebida é essa?
- É a bebida dos deuses.
- Hum... E esta festa é também para os teus deuses?
- Os deuses não são meus – explicou ela confusa.
- Não foi isso que eu quis dizer – disse-lhe, mastigando o ultimo naco daquela massa nutritiva que cruzava diversas texturas e sabores. – Os deuses da tua... aldeia.
- São os deuses do mundo.
- Eu tenho um amigo que conhece o deus deste mundo – atirou, sem pensar. – Esta festa é para esse deus?
A rapariga abriu a boca, escandalizada. Ele riu-se, atrapalhado. Agarrou-a pelos ombros e puxou-a para si, franzindo o sobrolho:
- Ouve-me, preciso daquela bola que o teu avô tem ao pescoço. Sabes se ele se separa, alguma vez, dessa bola?
- Eu vou buscar mais comida!
Esgueirou-se dele como se se tivesse transformado em areia e Tiago ficou com os braços levantados, as mãos vazias, no meio da praça. Weewee levou muito tempo até regressar e ele teve medo que ela não lhe desse mais comida, pois se a bebida era viciante, o que estava a comer era-o mais ainda.
A festa prolongava-se. Dançava-se agora, no meio da praça. Grupos de borrões de tinta saltando, iluminados pelas chamas das fogueiras, vultos mágicos que ondulavam os corpos em homenagem aos deuses. Tiago sentava-se num dos extremos da praça, longe da confusão e das fogueiras, das estacas e das mesas onde serviam uma bebida que o nauseava e uma comida que o extasiava. Weewee olhava para os dançarinos com inveja, mas tinha explicado a Tiago que não podia dançar – era demasiado nova e não tinha ainda sido iniciada no ritual das raparigas da aldeia que passavam a mulheres. Só as mulheres podiam dançar no festival. Ele ficou curioso, mas ela não lhe adiantou mais nada. Apenas indicou, envergonhada, o homem a quem estava prometida desde os cinco anos.
Tiago olhou para Weewee e desejou beijá-la, mas não foi capaz dessa iniciativa peregrina. Poderia ofender os deuses, ou o noivo dela, ou o raio do avô a quem teria de roubar a bola cor-de-laranja. Os borrões de tinta soltavam gritos alegres enquanto dançavam. Deixou-se ficar a contemplar Weewee, embevecido e apaixonado, sorrindo-lhe, derretendo-se todo por aquela rapariga tão doce. Ela também se derretia por ele, com uma malga vazia entre as mãos, apoiada nos joelhos.
E ele esqueceu-se completamente da sua missão.
***
A lama escorria-lhe dos cabelos até aos pés, transformando-o numa massa viscosa, quente e fedorenta. Ele limpou o lugar onde estavam os olhos, arrastando a mão para baixo para libertar o nariz e a boca.
- Uf! – suspirou.
As bolas de dragão poderiam encontrar-se nos lugares mais estranhos e aquele fora, seguramente, um deles. Um mar imenso de lama que umas chuvas torrenciais e repentinas tinham fabricado momentos antes, onde ele mergulhara a contragosto.
Goku limpou a bola, esfregando-a na túnica que estava ainda mais suja que a bola, mas foi o suficiente para conseguir contar, no interior desta, cinco estrelas. Sorriu, enquanto guardava a bola no interior da túnica. Tinha consultado antes o radar do dragão e vira que a bola de dragão de seis estrelas viajava em direção à bola de dragão de uma estrela, na zona ocidental do mapa. Vegeta já tinha recuperado uma bola e preparava-se para alcançar a sua segunda. Ele também.
Uniu os dois dedos à testa, concentrou-se mentalmente na aura do rapaz e, viajando instantaneamente, apareceu junto a Tiago.
Interrompeu, contudo, uma cena que o deixou corado até às orelhas. Viu-se entre ele e uma rapariga que o olhava com aquele ar melado das mulheres apaixonadas e que estendia a boca a pedir um daqueles beijos que levavam por caminhos menos inocentes.
- Tiago-kun!
A rapariga deu um salto para trás quando o viu aparecer do nada. Tinha algum sentido de controlo, pois não gritou e Goku olhou para ela com admiração.
- Goku-san... O que estás a fazer? – disse Tiago, arrastando demasiado as palavras.
- Estiveste a beber?
- Weewee, é este o meu amigo que conhece o deus do...
- Tiago-kun, não nos podemos demorar. Onde está a bola de dragão de duas estrelas?
- Está com o avô dela – explicou Tiago e soltou uma gargalhada.
- Tu estiveste a beber...
- Como foi que... apareceste aqui? - perguntou Weewee curiosa.
- Com a Shunkan Idou, uma técnica que aprendi noutro planeta – respondeu Goku olhando para ela. – Onde está o teu avô?
A rapariga apontou devagar para uma casa grande.
- Ele deve estar ali, a assistir ao festival. Disseste... noutro planeta?
- Não é fantástico?! – exclamou Tiago abrindo os braços, rindo-se como um demente.
Goku agarrou em Tiago pelo colarinho da camisa e arrastou-o até à casa grande. A rapariga seguiu-os. Metade dos aldeões notaram a presença do saiyajin, mas a outra metade, inebriada pelo fogo, pelas danças, pelas cantigas e pela bebida, ignorou-o e continuou com os festejos.
O chefe dos aldeões olhou para Goku com desagrado, apertando o bordão com tanta força que a mão lhe tremeu e os dedos ficaram brancos. Goku reparou no que ele usava ao pescoço. Soltou Tiago que tropeçou nos próprios pés e caiu sentado no chão.
- Não gostas de estranhos – disse Goku.
- Não – respondeu o chefe com a voz tensa. – Nunca os recebemos. O conselho decidiu abrir uma exceção hoje, por ser o dia do festival em que honramos os nossos deuses, e os estranhos não param de chegar.
- Eu vou-me já embora e levo o meu amigo comigo. Mas antes, queremos uma oferta.
- O pagamento para nunca mais voltarem?
- Isso...
Tiago levantou-se a sacudir a cabeça, como se quisesse despertar. A rapariga olhava para ele preocupada.
O chefe pensou durante algum tempo.
- Somos pobres – respondeu, por fim, presunçoso. – Nada te podemos oferecer. Vai-te, forasteiro! Leva o teu amigo. E não apareçam nunca mais.
- Não quero nada da tua aldeia. Quero o que tu tens ao pescoço!
E Goku apontou ostensivamente para a bola de dragão. O chefe agarrou-se à bola, recuando, o rosto lívido de pânico a refletir as chamas das fogueiras.
- Isto, não! É minha!
- Quero-a!
Goku sorriu diabolicamente, abrindo a mão como que a exigir que o chefe depositasse na palma estendida a preciosa bola. Este negou enfaticamente com a cabeça, recuando mais um passo.
- Nunca! Esta bola foi uma dádiva dos céus negros.
- Eu sei. E eu vim hoje, no dia dos teus deuses, reclamá-la!
Os aldeões que assistiam ao diálogo estavam mudos de medo.
- Goku, o que estás a fazer? – sussurrou Tiago, a estranhar aquele comportamento do amigo.
- O que te disseram, chefe? – perguntou o saiyajin.
- Disseram-me que nunca me poderia separar desta bola...
- Apenas a poderias entregar aos deuses? Ora, aqui tens um deus!
De seguida, Goku soltou um grito pavoroso. As cantigas calaram-se e ficou um silêncio palpável, denso como uma manta que abafava as respirações de todos. As chamas soltaram estalidos e fagulhas. O corpo de Goku brilhou como uma das fogueiras e quando os seus cabelos se elevaram no ar, agitando-se amarelos e vibrantes, uma interjeição de assombro percorreu todas as bocas, incluindo a do chefe que se segurava tanto ao bordão, como à bola. Tiago estava tão abismado como os aldeões.
O espetáculo era esmagador. Um homem a cintilar como uma estrela que tivesse caído do céu. Como um ser divino! As vozes levantaram-se, exigindo ao chefe que entregasse a bola ao deus. Era um bom augúrio, naquele dia de festival. Era também um aviso, que a aldeia deveria ser mais generosa e acolher melhor os estrangeiros. O chefe acatou os conselhos que eram gritados como chavões, frases soltas que caíam no meio da multidão como as fagulhas que as fogueiras soltavam. Retirou a bola da corrente e entregou-a ao homem que brilhava, entre o terror e o respeito. Goku agradeceu com um sorriso mais simpático, agarrou em Tiago novamente pelo colarinho e levantou voo.
Quando estavam suficiente longe da aldeia, Goku abandonou o estado de super saiyajin. Tiago pediu-lhe para subir para as costas dele, estava a ficar estrangulado.
- Ouve lá... Não sabia que tu eras assim – disse-lhe.
- Assim?
- Totalmente passado!
- Passado?
- Louco... Lunático... Maluquinho!
- Tiago-kun, a busca das bolas de dragão está recheada de perigos, aventuras e de encontros inesperados. Não podemos hesitar e não nos devemos nunca esquecer do nosso objetivo principal. Já te sentes melhor?
- Não. Tenho vontade de vomitar... Mas aguento-me. Como querias tu que eu tirasse a bola àquele velho teimoso?
- Não viste como eu fiz?
- Vi, mas eu não sou um super saiyajin.
- És um saiyajin e basta. Por enquanto...
Goku abrandou a velocidade e começou a descer.
- Vamos descansar durante algumas horas – anunciou. – A próxima bola está muito longe e não adianta esgotarmos a nossa energia na viagem. Faremos como até aqui: eu deixo-te para que recuperes essa bola e irei procurar pela próxima.
- Hai.
Chegados ao solo, Goku deitou-se, bocejando, e Tiago deitou-se ao lado dele. Estavam num campo selvagem, rodeado de arvoredo e de rochedos, que ajudavam a bloquear o vento frio que vinha de umas montanhas nevadas que se recortavam no horizonte escuro. Alguns animais noturnos faziam ouvir os seus pios e grunhidos.
- Usa a tua imaginação, Tiago-kun, e tudo correrá bem.
***
Totalmente esgotado, Vegeta estendeu-se no chão macio, forrado a relva. Tinha acabado de fugir de um enorme javali que o perseguira ao descobri-lo a remexer numa árvore oca, local onde armazenava ciosamente raízes tenras e bolotas. Ao julgar que lhe roubava a despensa, perseguira furioso o ladrão. Vegeta agarrara na bola de dragão com uma estrela, que estava também dentro da árvore, e desatara numa correria pelo bosque afora, amaldiçoando a sua sorte que só lhe dava para encontrar estúpidos animais enquanto procurava pelas bolas de dragão.
Bom, ao menos animais, pois continuava sem paciência para pessoas.
Despistou o javali saltando por cima da copa das árvores e, de seguida, afastou-se pairando devagar por cima dali.
Não tinha matado nada durante aquela jornada, nem o pássaro gigante, nem aquele javali zangado, e estava a estranhar-se. Sorriu, sem fôlego, deixando o cansaço apoderar-se dele. Olhou em volta, à medida que aterrava numa meseta relvada. Sabia que estava num sítio seguro, longe de pássaros e de javalis... Uns minutos de sono far-lhe-iam bem. Estendeu-se no chão, com um longo suspiro. Só uns minutos... Não concedia a si próprio nada mais que uns minutos. Haveria de ganhar a corrida a Kakaroto. Faltava-lhe apenas uma bola de dragão...
Mas dormiu durante três horas.
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