XIII - Desorientação
Tiago despertou sobressaltado. Estava a ter um pesadelo, mas agora que tinha acordado não se lembrava do que é que o tinha assustado tanto. Agarrou no triângulo dourado que tinha ao pescoço e enfiou-o dentro da camisa amarrotada. Adormecera vestido, abandonado em cima da cama, a televisão sem som a disparar fotogramas de luz.
Espreguiçou-se. Olhou para a casa-de-banho que estava às escuras. Enfiou a cabeça nas mãos, arranhando o couro cabeludo. Estava sozinho, muito provavelmente a roncar sem assistência. Mais uma vez, aquele Goku fazia o que bem entendia e deixava-o amarrado àquele quarto de hotel. Não o iria procurar, decidiu zangado. Ele que fizesse as asneiras que quisesse. Que se embebedasse numa festa de velhos, que se perdesse nas ruas e que se encavalitasse no cimo de um arranha-céus a gritar que era o incrível Son Goku com as câmaras de televisão apontadas, que ele pouco se importava. Estava farto de se preocupar com aquele cinquentão. Para o Inferno com Son Goku!
Em cima da cama e ao lado dele, o computador portátil estava apagado. Esgotara a bateria enquanto ele dormia. Fechou o ecrã sobre o teclado com um safanão e levantou-se.
A água gelada, primeiro nas mãos, depois na cara, causava-lhe arrepios que o irritavam ainda mais. Tinha a sensação doentia de que se alguém lhe dissesse alguma coisa, nem que fosse "olá!", iria rebentar numa fúria que o faria despedaçar tudo em volta. Agarrou no pacote de pastilhas de mentol, enfiou uma na boca e saiu do hotel disposto a divertir-se até cair.
A noite estava gelada, mas prometia. Enfiou-se num autocarro, meteu conversa com um casal de turistas americanos e descobriu que procuravam a mesma coisa que ele: diversão. Eram o Mark e a Melissa. Avisaram-no de que no Japão eram muito rigorosos e que bebidas e cigarros só para maiores de vinte, mas Tiago mentiu, dizendo-lhes que tinha dezanove anos e que contava com a ajuda deles.
- És muito pequeno para dezanove anos – observara a rapariga.
- Vocês, americanos, é que são grandes demais para a idade. Vá lá, ajudam-me ou não?
Ela estava quase a ser conquistada, mas ele hesitava e Tiago abandonou-os na paragem seguinte, saindo do autocarro. Não queria ter aliados que, à mínima dificuldade, o iriam atraiçoar. Nem sequer se despediu.
Seguiu solitário pelas ruas, a tentar aquecer as mãos nos bolsos do blusão, as golas levantadas, a tentar o seu melhor para emular um perfeito matador latino. Desistiu pouco depois por não conseguir captar a atenção de ninguém. Enfiou-se num centro comercial que anunciava nunca fechar portas num inglês confuso por debaixo de grandes caracteres japoneses, cujos néones enfeitiçavam e distraíam em milhentas luzes berrantes. Perdeu-se horas lá dentro, a subir e a descer os sete pisos nas escadas rolantes, de volta das consolas, maquinetas, computadores e acessórios, jogos. Meteu conversa com duas raparigas japonesas de sedosos cabelos pretos que cheiravam a flores. Conseguiu conquistá-las, saiu com uma em cada braço e tomaram o autocarro na mesma paragem onde ele abandonara os americanos. Ao lado delas, a sua estatura conferia alguma autenticidade à mentira de que tinha dezanove anos e que faria vinte no próximo verão. Deu um beijo na face a cada rapariga, deixando-as aos risinhos e ele lembrou-se da Martinha da sua turma, que estava tão longe.
A música no bar era brutal, mas ele sentiu que aquele ruído o recebia com os braços abertos e que o acalentava. Ao fim de alguns shots já se tinha desinibido o suficiente para cravar um cigarro a um grupo de ocidentais que, pelo estilo semelhante ao de Mark e de Melissa, deduziu serem americanos. Enganou-se e foi agradável constatar que eram australianos. As duas japonesas, encostadas ao bar, segredavam entre elas, com olhos húmidos. Ele deu uma passa demorada no cigarro, a tentar classificar qual seria a mais bonita... Não se demorou nessa cogitação, que flutuava em meio de outras ideias desconexas na sua mente enevoada pelo álcool. Iria levar as duas para o quarto do hotel.
E, mais uma vez, para o Inferno com Son Goku!
Soltou uma gargalhada. Nunca tinha feito sexo na vida, mas estava disposto a estrear-se naquele país estranho e distante. Jamie, um australiano sardento, passou-lhe o braço musculado pelos ombros e perguntou-lhe:
- Aquelas duas comem-te com os olhos. Estão contigo?
- Hum-hum... - aquiesceu fumando com incrível prazer aquele cigarro.
- Tens sorte, kid. Muita sorte. Como se chamam?
- Não sei.
Jamie deitou a cabeça para trás, a rir como um perdido.
- I like you, kid!
As duas japonesas entraram juntas na casa-de-banho do bar. Jamie ofereceu-lhe um shot encarnado e amarelo, que fumegava no topo onde recentemente se tinha extinguido uma pequena chama. Tiago bebeu-o de um trago e foi sacudido por um safanão, extasiado com a sensação excitante de ter um fogo a queimá-lo por dentro, a espalhar-se pela pele, a dar-lhe ainda mais vontade de levar as duas japonesas sem nome para a sua cama do hotel.
E Son Goku, se quisesse, até podia entrar na brincadeira... Não, para o Inferno com ele!
A tontura fê-lo apoiar-se na parede. Continuava com o australiano a agarrá-lo pelos ombros e ficou confuso se era ele que segurava o australiano ou se era o australiano que se apoiava nele. O raio do aussie estava mais bêbado que ele! Estendeu-lhe outro shot encarnado e fumegante.
- Como se chama isto? – perguntou-lhe divertido, elevando o pequeno copo num simulacro de brinde.
Jamie agarrou num shot igual e berrou-lhe, para se fazer ouvir por cima da música:
- O tipo do bar diz que se chama saiyajin.
Tiago sentiu uma chicotada tirar-lhe a força nas pernas.
- Co-como?
- Saiyajin!
Olhou para o bar. Apoiado no balcão, um homem de cabelo tão encarnado como a bebida do shot, olhava-o fixamente por detrás de uns óculos escuros opacos, que eram tão estreitos que pareciam uma fita atada à cabeça. Tiago pestanejou. O barman atrás do balcão servia outros shots a dançar como um maluco ao som da música estridente, que não contagiava o homem do cabelo encarnado. Este, para além de imperturbável, era enorme e vestia-se com uma roupagem estranha, prateada e preta. E parecia que o observava com um interesse doentio.
As duas japonesas roçaram-se nele. Jamie soltou-o, por fim. Tiago pediu-lhe outro cigarro e o australiano deu-lho, entendendo como se estivesse a pagar a sua próxima conversa com elas. As raparigas derretiam-se em risos e em trejeitos tímidos, o australiano derretia-se com elas.
Tiago acendeu o cigarro, espreitando o homem do cabelo encarnado que não o desfitava. Sentiu uma mão a acariciar-lhe o peito e a agarrar naquilo que ele usava debaixo da camisa.
- O que é isto? – perguntou-lhe uma das raparigas ao ouvido, num inglês musical mas hesitante.
Na mão pequena dela, o triângulo dourado era sublime, brilhando em mil tons de dourado. Tiago respondeu:
- É a minha herança.
- Onde está a outra metade?
A perspicácia dela baralhou-o. Levou o cigarro à boca, a tentar decidir-se o que responder, quando sabia que não devia alongar-se em explicações, que devia guardar o segredo até do próprio Akira Toriyama que não tivera a mesma perspicácia que aquela japonesinha mimosa, cujo cabelo cheirava a flores. Ela inclinou a cabeça, curiosa e irresistível, enquanto segurava no medalhão preso ao pescoço dele. Ele desviou o olhar.
- Não... Não sei.
No balcão, o homem do cabelo encarnado tinha desaparecido.
Um ulular entusiasmado encheu o bar quando arrancaram os primeiros acordes de uma música que estava na moda por aqueles lados. Algumas vozes começaram a entoar a letra. O som continuava altíssimo, a furar-lhe os tímpanos, mas Tiago constatou com alívio que o álcool entrava-lhe na corrente sanguínea com furor e amenizava tudo, até aquela guitarra enlouquecida e uma bateria pungente. Tirou o medalhão das mãos dela, acariciou-lhe os dedos. Ela dirigiu a cabeça para ele, suspirando, ou assim lhe pareceu. A música tornou-se num zunido na sua cabeça que rodopiava.
O perfume florido da rapariga envolvia-o como um véu. Ele fechou os olhos ao sentir a boca pequena dela a roçar na sua. O beijo fez disparar choques elétricos por todo o corpo. Tiago teve receio de tocar nela, pois o sonho poderia desfazer-se em milhentas bolas de sabão. A parede onde se encostava era a sua salvação.
Estava no paraíso!
***
Goku passara a noite em claro, vigiando a casa de Tori-Sama. Acoitara-se próximo, no local que achara mais discreto para não arriscar ser descoberto pelos vizinhos e ficara a vê-lo seguir uma rotina tão aborrecida que quase adormecera de tédio. O único momento em que lhe parecera algo fora do usual para uma noite típica naquela casa, fora quando Tori-Sama saíra a seguir ao jantar, explicara qualquer coisa à mulher que fizera uma cara contrariada e entrara num pequeno estúdio situado no sótão. Sentara-se diante do estirador e ficara a olhar para o medalhão de Mu, dando-lhe voltas e reviravoltas. Ainda se debruçara sobre o estirador, agarrara numa folha de papel, mas desistira pouco depois. Agarrara no medalhão, fazendo rodopiá-lo com os dedos a segurar na corrente e saíra assobiando do estúdio.
A aura poderosa estava em Tóquio. Goku perseguira-a mentalmente, a uma distância que achou segura. Não a reconheceu, apesar de ter procurado incansavelmente por todos os cantos da sua memória de tempos passados, inimigos e amigos. Era alguém poderoso e que ele nunca vira. Mas continuava com o estranho pressentimento de que quem atuava naquela confusão, a provocava e beneficiava dela, era um velho conhecido.
Enquanto vigiava Tori-Sama sentiu vários tremores de terra, a maior parte deles fracos e quase impercetíveis, outro mais forte que lhe aguçara os sentidos. A aura poderosa, entretanto, tinha reduzido o nível de energia até um mínimo muito subtil – tentava passar despercebida, mas também passara a inofensiva, pelo que Goku aliviara a sua vigília.
Tori-Sama nada produzira nos seus desenhos mágicos e ele perguntou-se se teria percebido alguma coisa do medalhão ou se sabia que a porta dos mundos tinha permitido a passagem para aquela dimensão de alguém que, muito provavelmente, cobiçaria aquele pequeno triângulo dourado. Quanto à outra metade, Goku estava descansado, pois Tiago nunca seria detetado pelo inimigo, devido à sua aura peculiar e à forma desconcertante como ele conseguia, sem o saber, dissimular a sua energia saiyajin na maior parte do tempo. Outro ponto favorável era que Tiago estava a salvo no quarto de hotel. Com Tori-Sama era diferente – ele era o criador, a chave para os mistérios e mais vulnerável do que Tiago.
Pouco depois da meia-noite, Tori-Sama apagara a luz do quarto e deitara-se. Goku continuara vigilante. A aura poderosa, por seu turno, em qualquer lugar daquela imensa metrópole, diminuíra tanto a sua energia que Goku tivera alguma dificuldade em manter a sua outra vigilância. Era como tentar acompanhar as deambulações de uma formiga na lua. Ficara a ver a noite gelada a passar com um gato curioso que lhe fizera companhia, percebendo que ele tinha uma missão aborrecida, mas vital, a cumprir.
De manhã, chovia. Goku viu Tori-Sama sair de casa, à mesma hora do dia anterior, quando ele e Tiago o tinham interpelado. Despediu-se do gato e elevou-se silenciosamente no ar. Desde o alto, viu Tori-Sama apanhar o mesmo autocarro e viu-o seguir o caminho até ao Bird Studio. Entretanto, também vira que ele usava o medalhão ao pescoço, notara uma parte da corrente dourada na nuca. Voltou-se para o horizonte e crispou o rosto quando não encontrou a formiga – a aura poderosa tinha-se dissolvido por completo.
- Mas ainda continua aqui... Porquê? E como consegue fazer isso?
Cruzou os braços. Sentia-se apreensivo.
Nisto, percebeu claramente um pedido de ajuda. Levou dois dedos à testa e materializou-se num quarto de hotel que não reconheceu. As camas estavam desmanchadas, havia roupa empilhada por todo o lado. Era um quarto grande, diferente daquele onde estava alojado com o filho de Trunks. Tinha uma área de estar, equipada com sofás, uma mesa rodeada de quatro cadeiras, um aparador com gavetas. As cortinas estavam corridas, pelo que estava escuro lá dentro, um ambiente pardo e abafado. Um candeeiro com uma luz fraca estava aceso em cima do aparador, ao lado de uma bandeja com restos de pacotes de papelão de um qualquer fast food.
- Nan da, Tiago-kun?
O rapaz olhava para ele assustado e tinha o aspeto de ter sobrevivido a um atropelamento por um comboio.
- Como fizeste isso?
- Já te tinha dito que posso fazê-lo. É uma técnica que utilizo para transpor grandes distâncias.
- Pois... OK.
- O que se passa? – Goku olhou em redor – Que sítio é este?
- O problema... é esse... Goku-san – respondeu Tiago atrapalhado. – Eu... não sei onde estou.
- Saíste do hotel?
- Ora, claro que saí! – explodiu nervoso. – Senão, como raios estou agora aqui?
- Podias ter sido raptado.
Tiago enfiou uma mão nos cabelos, afastando a franja dos olhos.
- Temos um problema... Um problema grave.
- Que problema?
- Foi por isso que te chamei... É giro! – Riu-se ainda mais nervoso. – Nunca pensei que resultasse, mas acabaste por conseguir encontrar-me.
- Elevaste a tua energia e eu descobri onde estavas. É uma técnica simples. Mas se eu te posso encontrar assim, também o podem os nossos inimigos. Deverás ter cuidado, daqui para a frente. Diz-me, Tiago-kun: qual é o problema?
- O medalhão – disse levando as mãos ao peito. – A minha metade desapareceu.
- Desapareceu? – gritou Goku.
- Sim, desapareceu... - confirmou num fio de voz. – Pois, desapa...
- Como foi isso acontecer?
- Eu... Eu saí do hotel. Quando descobri que não estavas, fiquei furioso e resolvi sair. Ir divertir-me. Percebes? Tínhamos combinado ficar no hotel e tu, à primeira oportunidade, abandonaste-me.
- Mas eu... fui treinar-me.
- Encontrei umas raparigas num centro comercial. Fomos beber uns copos. Estava uma autêntica loucura no bar... Conheci uns australianos...
- Conheceste alguém estranho?
- Estranho? Não. Pareceu-me tudo gente normal. Bem, bebi uns copos e... E fiquei tão bêbado que não me lembro de mais nada depois do bar. Tinha o medalhão comigo, lembro-me perfeitamente. Quando acordei, há bocado, é que reparei que já não o tinha.
Goku olhou em redor.
- Vieste com essas raparigas para este quarto de hotel?
Tiago corou.
- Não sei. Acho que não... Elas eram japonesas, pareceram-me miúdas daqui, de Tóquio. Este quarto...
A porta fechou-se. Alguém entrava. Tiago voltou-se. Goku disse-lhe:
- Não é melhor vestires-te?
Mas Tiago só teve tempo de constatar que estava de cuecas, não para procurar as calças e nem tão pouco para vesti-las. Quando levantou a cabeça, um grito furou-lhe os ouvidos.
- Quem é esse? – berrou a rapariga, que tinha chegado, em inglês, apontando para Goku.
- Me-Melissa?
- Ela não me parece japonesa, Tiago-kun – disse Goku.
- E não é!
A americana soltou outro grito. Tiago aproximou-se dela, agitando os braços, pedindo-lhe calma. Ela olhou-o assustada.
- Melissa, please... Foste tu que me trouxeste para cá? Onde está o Mark?
- Quem é esse?
- É o meu tio. Veio buscar-me.
- Veio... Buscar-te?
- Responde-me, Melissa.
- Não te lembras, pois não? – disse ela, sem desfitar Goku. – Estavas bêbado e não dizias coisa com coisa. Nem te lembravas onde era o teu hotel.
- E as raparigas japonesas que estavam comigo? E o australiano grande? Chamava-se Jamie.
- Estavas sozinho, idiota. Sozinho e com o nariz a sangrar, deitado numa viela escura, a resmungar e a gritar. Tinhas todo o aspeto de quem tinha sido roubado. Tiveste sorte por eu e o Mark termos passado por ali. Tentámos levar-te para o teu hotel, mas não nos soubeste dizer como se chamava e muito menos como chegar lá. Só dizias asneiras. Falavas no teu pai e no teu sangue qualquer-coisa gim e que haverias de vingar-te.
- Fui roubado?
Tiago lembrou-se da japonesa que o tinha beijado e do interesse dela no medalhão, mas não acreditava que tivesse sido aquela flor perfumada a deixá-lo com o nariz a sangrar numa viela escura.
- Sim, não tens documentos contigo, nem carteira, nem dinheiro.
- Nem o medalhão... - murmurou, pois foi isso que lhe tinham roubado, o dinheiro gastara-o todo no bar e não levara a sua identificação quando saíra para a rua.
- Eu é que tive a ideia de te trazer para o nosso hotel. O Mark não queria, tivemos uma discussão por causa de ti, kid. Não passas de um miúdo, certo? Tens tanto dezanove anos, como eu sou a Lady Ga-Ga.
Tiago corou pela segunda vez. Desviou os olhos. Ela passou-lhe a mão pela cara.
- És um querido, contudo... Gostei muito do beijo que me deste, mas não gosto de desmamar bebés, ainda por cima com o meu namorado a dormir ao lado. Apesar de, às vezes, o Mark ser tão palerma que merecia que eu lhe fizesse uma ou outra coisinha má.
- Eu não sou um bebé – replicou Tiago ofendido.
Melissa beijou-o na boca. Goku disse:
- Tiago-kun... Peço desculpa por estar a interromper, mas temos um problema urgente para resolver. E devemos ir já ao Bird Studio.
Tiago agarrou na americana pelos braços e afastou-a de si.
- Melissa, gostei muito de te conhecer mas ouviste o meu tio.
Que falara num inglês impecável com uma inconfundível pronúncia americana, noutro tom de voz, mas ela estava mais interessada no beijo e nem se apercebera.
- Tenho de me ir embora. Onde estão... as minhas calças?
Ela suspirou. Entregou-lhe as calças que ele vestiu enquanto andava até à porta do quarto. Calçou-se também a andar. Goku despediu-se com um efusivo "djá né" que Melissa ignorou, pois só tinha olhos para Tiago.
- Diz-me, ao menos, que idade tens?
- Ele tem catorze anos e vem de outra dimensão, como eu – respondeu Goku.
O coração do Tiago parou ao ouvir aquela resposta. Melissa empalideceu, provavelmente também de coração parado. Goku empurrou-o para fora do quarto, fechou a porta, continuou a empurrá-lo pelo corredor até ao elevador e disse-lhe preocupado:
- Eu percebo que namorar é mais interessante para ti do que isto que vamos fazer agora, mas estamos no meio de uma emergência.
- O que foi que lhe disseste...?
- Não te preocupes. A tua amiga não vai perceber e daqui a pouco já se esqueceu de ti e de mim... O que será mais do que conveniente. Tiago-kun, o teu medalhão foi roubado e eu desconfio quem será o ladrão.
- E quem é?
Tiago carregou no botão do elevador. A luz verde acendeu-se. Goku afastou-se.
- O que estás a fazer? O elevador está a chegar.
- Vamos por aqui – respondeu Goku abrindo a porta de emergência que conduzia à escadaria interior do edifício.
- Vamos pelas escadas? Estás louco! Estamos no nono andar.
- Não. Sobe para as minhas costas.
Tiago negou com veemência.
- Nem penses! Não saio daqui a voar contigo.
Pelos visto, o assunto não tinha discussão, porque Goku agarrou nele pelo pulso e saiu disparado pelo poço da escadaria acima, até ao patamar do último piso. Abriu a porta com um ligeiro encosto de cotovelo que a deformou por completo e fê-la cair dos gonzos com um estrondo metálico que ecoou pelas escadas. Acederam à cobertura do hotel onde soprava uma ventania desagradável. Tiago lembrou-se de que se tinha esquecido do blusão no quarto.
- Espera! Estou com frio.
- Não há tempo. Sobe! – ordenou Goku.
Tiago viu que ele vestia a sua túnica verde escura, de mangas cavas.
- Não tens frio?
- Sobe, já disse!
O tom autoritário era inédito e Tiago resolveu não argumentar mais. Agarrou-se com força ao tecido da túnica e Goku arrancou com uma velocidade alucinante. Ele fechou os olhos, a sentir o vento fustigar-lhe a cara. Nunca tinha voado assim mas, curiosamente, não sentiu medo. A descarga de adrenalina era saborosa, melhor do que o beijo da Melissa, mais excitante do que o beijo da flor japonesa. Nem se atreveu a falar, nem a perguntar nada, pois as suas palavras não se deveriam escutar por cima do vento e deixou-se levar, confiando cegamente naquele homem que era tão desconcertante nas suas atitudes. Estava-lhe agradecido, sobretudo, por não lhe ter ralhado ou pior... sovado!, por ele ter deixado roubar a sua metade do medalhão.
De repente, pararam. O solavanco quase cuspiu Tiago das costas de Goku.
- O que foi?
- Mudança de planos – respondeu sério.
- Já não vamos ao Bird Studio?
- Não.
- Mas não é lá que está...?
- Existe outro desafio.
Goku rodou no ar e saiu a voar noutra direção, sobrevoando os arranha-céus de Tóquio como um cometa, deixando um rasto branco atrás. Tiago, agarrado à roupa dele com tanta força que os nós dos dedos esbranquiçaram, só esperava que não estivesse ninguém a olhar para o céu e que se resolvesse a fotografar ou a filmar o estranho fenómeno. Detestaria aparecer nas notícias daquela maneira...
Como não aguentava o ar no rosto, fez a viagem – que, vendo bem, chegou a ser curta – de olhos fechados. Quando percebeu uma diminuição da velocidade, entreabriu as pálpebras e pasmou-se ao descobrir que sobrevoavam uma área montanhosa. Havia neve ali e o frio intensificou-se. Para a esquerda notava-se o volume do monte Fuji ocultado pelas nuvens baixas. Espirrou ruidosamente. Goku estava tão concentrado que não comentou o espirro. Parou pouco depois no meio do ar e desceu devagar até ao chão. Antes mesmo de as botas tocarem no solo, Tiago saltou das costas dele. Desequilibrou-se e caiu sentado na neve dura.
- Tiago-kun, afasta-te – pediu-lhe com uma voz cava.
Tiago levantou-se enregelado.
- Goku-san...
- Faz o que te digo – pediu no mesmo tom de voz. – Onegai shimass.
O pedido era estranho e mais inédito ainda era a forma como o fazia. Tiago recuou, a olhar para todos os lados, para tentar perceber por que razão Goku parara naquele local inóspito e gelado. As sapatilhas que calçava ficavam rapidamente encharcadas por cada passo que dava.
Diante de Goku surgiu um homem alto, vindo também das alturas. Ele não se tinha apercebido de que se aproximava gente e muito menos procuraria tal olhando para o céu. Mas quando o viu, sentiu o coração subir-lhe até à garganta. Tiago parou de recuar a fixar o homem branco como um vampiro, com uma cabeleira encarnada revolta a enquadrar um rosto feroz. A fatiota preto e cinza era a mesma, a única coisa que faltavam eram os óculos opacos, finos como uma fita, que percebia agora, tinham ocultado uns olhos rasgados cujas íris eram da cor da cabeleira.
A custo desfez o nó que o emudecia e balbuciou:
- Esse... homem...
Goku não se voltou e perguntou-lhe:
- Conheces?
- Estava ontem no bar. Olhava muito para mim.
- Hum!
- Foi ele que...?
- Afasta-te.
Goku dobrou os braços pelos cotovelos, de punhos fechados, inclinou-se ligeiramente para diante. Interpelou o outro gritando, para se poder ouvir por cima do vento:
- Tens uma coisa que nos pertence.
O homem nada disse. Tiago refugiou-se atrás de um penedo. Apesar de Goku não ter querido responder-lhe, ele compreendeu que aquele era o ladrão do medalhão. De algum modo misterioso, lendo as auras como Goku dizia, tinham conseguido encontrar-se e enfrentavam-se num terreno onde não haveria testemunhas. Descontando o voo alucinante por cima de Tóquio e continuavam a ser discretos.
Goku esperou, numa imobilidade e silêncio perturbadores. As pupilas do homem desviaram-se um milímetro, para notarem a presença dele e Tiago encolheu-se atrás do penedo, sem deixar de os espreitar, porém.
De repente, o homem deu um salto, transpôs a distância que os separava e atingiu Goku com uma joelhada nos queixos. Goku caiu de costas. Tiago saiu da proteção do penedo, cheio de bravata, mas também com um medo terrível a tolher-lhe as pernas. Goku levantava-se, a neve caindo de cima dele e ordenou-lhe zangado:
- Eu disse para te afastares!
Tiago viu o homem do cabelo encarnado atacar novamente. Goku defendeu o murro cruzando os braços por cima da cara, mas descuidou a parte inferior e foi rasteirado. Antes de aterrar novamente na neve, o homem socou-o com tanta violência que Tiago sentiu um arrepio pela espinha abaixo. O homem olhou diretamente para ele e sorriu. Tiago endireitou-se, rangendo os dentes. Mais um momento de confronto em que ele deveria soltar toda a sua força e sentia precisamente o contrário – a amolecer como manteiga ao sol, apesar do frio horrível que sentia.
Vindo por detrás, Goku atingiu o homem com um pontapé, afastando-o de Tiago. Desferiu ainda um par de socos, mas o homem defendeu-se bem. Goku acabou estatelado na neve pela terceira vez, a gemer. Tiago estava dececionado. Não tinha a sua mãe tecido elogios grandiosos à força de Son Goku? Ou assim lhe parecera, nas entrelinhas?
O homem, sempre sem exprimir um som, deu um salto enorme e ficou a pairar no ar. Esticou um braço, abriu os dedos da mão direita. Tiago semicerrou os olhos, a tentar focar o que via na mão do homem, algo que brilhava, redondo como uma esfera. Goku saltou e foi ao encontro dele. A rapidez dos golpes foi incrível, Tiago não percebeu o que se estava a passar.
Goku combatia com o homem do cabelo encarnado com afinco, sentindo a sua energia com cautela e assombro. Ele não era o inimigo que ele pressentia, mas fazia parte do mesmo bando. Sabia lutar e fazia-o de um modo profissional, cirúrgico e confiante. O saiyajin rodou sobre si próprio, atrapalhado com a sua própria lentidão, mercê daquele corpo emperrado e foi tão lento que o outro, mais confiante, conseguiu atingi-lo com um soco nos rins que o fez gritar.
O homem riu-se ao vê-lo agarrado ao sítio onde lhe tinha aplicado o soco. Estava a doer-lhe a sério. Goku arfou, a observá-lo. Não queria desatar todo o seu poder – não o devia fazer ali – e pressentia no adversário a mesma contenção, o que o intrigou e alarmou. Não devia brincar, por outro lado...
Antes de terminar esse pensamento foi atingido com um soco na cara que o fez cuspir saliva e sangue. Sentiu o outro demasiado perto, esticou um braço, lançou um pequeno disparo energético. Ouviu uma gargalhada e depois um silêncio abrupto.
Alguém entrava na cena de rompante e afastava o lutador inimigo com dois golpes tão certeiros que Goku ouviu claramente algo a estalar e a ranger. Não era a aura de Tiago, mas...
Um silvo e a deslocação do ar que lhe agitou os cabelos indicava que o seu adversário partia a toda a pressa. O vento soprou furioso enquanto ele descia até ao chão. Decididamente, o vento daquelas montanhas não gostava dele.
- É altura de uma situação tão grave como esta ser entregue a alguém que possa fazer alguma coisa.
E quem chegava completou:
- Um verdadeiro guerreiro!
O desprezo naquela voz era inconfundível. Goku suspirou cansado, mas também muito aliviado, porque já não estava desgraçadamente sozinho naquela dimensão.
Disse extenuado:
- Vegeta.
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