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II - Os amigos perdidos


Os rostos que passavam por ele eram cada vez mais estranhos e começava sinceramente a detestá-los, depois de saber que dali a mais ou menos um mês iria deixar aquela escola e mudar-se para outra. Desejava agora essa mudança, para poder escapar de um enredo que o estava a afogar. Atirara-se de cabeça para um jogo que nunca iria ganhar, porque não passava de um estúpido e ingénuo puto de catorze anos. Na verdade, tinha treze, mas ele gostava de contar os seus aniversários não a partir da data em que nascera, mas logo que havia um ano novo. Estávamos em 2011, ele tinha vindo ao mundo em 1997, tinha catorze anos. Que importavam essas conjeturas, pensou amargurado, com treze ou catorze continuava a ser um miúdo. No início, julgara que conseguiria ser mais esperto que os latagões mais velhos, os piratas que comandavam o navio dos marginais, mas agora percebia que eles não o consideravam mais importante que os gatos do baldio onde ia fumar os seus charros.

Tiago encostou-se à parede, retirou a mochila do ombro direito, pousou-a aos pés. Duas raparigas repararam nele, soltaram risinhos que taparam com as mãos, afastaram-se aos segredinhos. Ele ignorou-as, suspirando. Abriu o pequeno bolso lateral da mochila, retirou uma pastilha elástica de mentol que enfiou na boca. Suava. Apetecia-lhe umas passas da erva boa que o Necas lhe prometera, ou um pouco de nicotina de um cigarro normal, para se acalmar, mas como não tinha nada disso vingou-se na pastilha elástica. Andava nervoso, com um pressentimento... Sabia que a sua vida iria mudar em breve, depois da transferência ou antes, estava com medo do que poderia encontrar. Enrolava a pastilha na língua, repuxando-a, mastigando-a furiosamente.

A escola andava em alvoroço, a comentar as notícias daquela manhã de onze de março, em que o Japão tinha sido atingido por um violento sismo, seguido de um devastador tsunami. A sua mãe, ao contrário do que ele esperava, não o maçara com perguntas e olhares ansiosos naquela manhã. Fixara a atenção nas imagens que a televisão transmitia em direto de uma onda negra e rápida a entrar pela terra adentro. O seu pai também não lhe ligara nenhuma. Ele olhara para a sua irmã de onze anos, a Isabel que comia a torrada, molhando-a como habitualmente no copo de leite com chocolate. O facto de ele ter passado as duas últimas noites fora de casa significava menos que um tremor de terra ocorrido numa terra distante. Se ele desaparecesse, a sua mãe continuaria a tomar o pequeno-almoço com o seu pai, a assistir às últimas notícias do mundo, e a sua irmã continuaria a molhar a torrada no leite com chocolate. Ser descartável e percebê-lo, magoou-o. Incomodou-o demasiado. Ele mastigava a pastilha de boca aberta, preso no pensamento de que se tornava, aos poucos, invisível.

Um caso perdido.

Agachou-se, à procura do telemóvel. Iria combinar uma saída com uma miúda, depois das aulas. Queria um pouco de carinho. Uns bons beijos molhados e haveria de se libertar da energia negativa que acumulava nos últimos dias, desde que soubera que o iriam transferir para a escola dos falhados do Montenegro.

Uma mão agarrou-lhe o ombro, estava ele dobrado, a meio caminho para abrir a mochila e ele percebeu que não era uma mão amiga quando sentiu as unhas cravadas no osso.

- O Marado anda à tua procura para te dar uma tareia. Está a fazer-te uma espera.

Tiago sacudiu a mão de cima dele.

- Não tenho medo do Marado.

O rapaz riu-se e um hálito medonho saiu-lhe da boca. Tiago franziu o nariz. Percebeu por que razão a alcunha dele era o Bosta. Mais um dos falhados do grupo do Necas.

- Ele diz que tu ainda não lhe pagaste.

- Mentira. Paguei-lhe anteontem.

- Ele diz que não.

- Paguei-lhe com um portátil.

- Um computador? O Marado não tem nenhum computador novo. Nem sequer a porra de um Magalhães!

Tiago semicerrou os olhos. Percebeu que o Necas o tinha enganado. Teria de ir atrás dele a seguir, depois de escapar ao Marado. Afinal, tinha-lhe prometido arrebentar os dentes se ele não fizesse o que lhe tinha pedido. O Bosta deu-lhe uma palmada no braço com alguma força.

- Puto, estás lixado. Mas, se quiseres, posso ajudar-te.

- Deixa-me!

Furioso, empurrou o Bosta. A força que empregou no gesto foi estranha, nascida de uma raiva que o queimou por dentro com uma intensidade que ele próprio estranhou. Sentiu-se envolvido numa capa que lhe nublou a forma como percebia as coisas à sua volta, um filtro amarelado que o deixou enjoado. Mas essa sensação durou menos de metade de um segundo. Quando pestanejou, como que a querer dissipar o que lhe tinha coberto os olhos, encontrou o Bosta sentado no chão a uns bons cinco metros dele, estatelado no meio do corredor da escola. Alguns rapazes passavam por ali e começaram a rir-se e a troçar do Bosta que se tentava levantar, combalido. Sem esperar que o outro recuperasse totalmente, Tiago agarrou na mochila e desatou a fugir.

De facto, atrás de umas árvores que estavam do outro lado da rua, passado o portão principal de entrada da escola, via o Marado acoitado, esperando-o para o apanhar e dar-lhe a tal tareia. Tiago observava escondido o outro que o esperava, também escondido. Os inimigos avaliando-se mutuamente. Ele estava mesmo lixado. Cuspiu a pastilha elástica, a boca soube-lhe a vazio e a fresco. Passou a língua pelos dentes. Ora ali estava um problema grave para resolver naquela manhã, mais grave que uma onda gigante a entrar pela terra adentro...

- Tiago Sotero, para dentro! A tua aula já começou!

O Zé Quim, o auxiliar que todos os rapazes daquela escola temiam por ser bruto e capaz de arrear um par de estalos em qualquer aluno pela mais ínfima coisa, gritava-lhe aos ouvidos, mesmo nas suas costas. Tiago abaixou-se, começou a andar em direção ao edifício arrastando a mochila.

- Está bem... Está bem...

A aula de matemática passou-a a rabiscar no caderno quadriculado, concentrado na imagem do Marado que o esperava do lado de fora da escola. Não queria ser apanhado por esse rufia, que já tinha partido um braço a um rapazola cheio de bazófia que se atrevera a insultá-lo. Ele era mais esperto do que aquele bando de falhados. Não ouvia nada da aula. A Marta segredou-lhe:

- Tiago, o professor está a olhar muito para ti.

- E depois? – sussurrou ele sem levantar os olhos do caderno.

- Ele está a perceber que não estás a prestar atenção.

- E depois? – repetiu, olhando para a moça. Sorriu-lhe e a Marta corou agarrando o lápis com mais força, baixando os olhos até à folha onde escrevia números com um traço certinho.

Ele tinha consciência que as meninas gostavam dele. Uma delas tinha-lhe dito que era por causa dos olhos azuis, que nunca tinha visto uns olhos daqueles e ele usava-os sem pudor, para as suas conquistas. Lembrou-se que precisava de descarregar as suas frustrações.

- Queres ir ao Fórum, almoçar comigo?

Continuando corada, a agarrar o lápis com força e a fixar a folha, a Marta respondeu:

- Não posso. A minha avó vem buscar-me, para ir almoçar com ela.

- Sabes que gosto de ti, Martinha... - Apertou-lhe o joelho, por debaixo da mesa. Ela gritou.

O professor chamou-o imediatamente ao quadro para acabar de resolver o exercício que tinha começado. Claro que ele fez figura de urso e pôs a turma toda a rir com a sua indolência, a sua atitude de desafio e a sua inaptidão para a matemática. O professor, irritado, obrigou-o a ficar de pé o resto da aula, massacrando-o com exercícios infindáveis e difíceis, humilhando-o de propósito.

Definitivamente, um caso perdido.

Mas enquanto esteve no palco da sala, pregado ao quadro branco, a sentir a caneta preta a escorregar-lhe da mão suada, tomou uma resolução: não podia enfrentar o Marado e sabia que ele não iria desistir. Por isso, tinha de fugir da escola e desaparecer por alguns dias, até encontrar o Necas, partir-lhe os dentes, obrigá-lo a devolver-lhe o portátil e pagar, finalmente, ao Marado.

Não aproveitou o primeiro intervalo da manhã – iria dar nas vistas e o Zé Quim andava desconfiado, observando-o atentamente no recreio. A Marta cochichava com a Inês e com a Sofia, enquanto as três olhavam para ele, a comentar a cena da aula de matemática quando ele lhe apertara o joelho e lhe dissera que gostava dela. A moça derretia-se em sorrisos e olhares brilhantes – se fosse um desenho animado, espirraria corações encarnados a toda a volta. Tiago enfiou uma segunda pastilha elástica na boca. Gostaria mesmo de trocar uns beijos molhados com a Martinha no Fórum, apalpar-lhe outra vez o joelho... Mas era um adolescente muito ocupado naquele dia. Aliás, um adolescente procurado.

Assim, não aproveitou o primeiro intervalo da manhã, em que foi o príncipe encantado da Marta e a inveja das duas amigas dela. Foi para a aula de inglês, a meio do tempo pediu à professora para sair que estava a sentir-se mal disposto, que tinha de ir à casa-de-banho. Para ser convincente, deixou a mochila na sala. Atravessou o corredor da escola a correr, fintou o Zé Quim que assobiava distraído enquanto varria a folhagem morta do pátio. Escapuliu-se para as traseiras da escola, escalou os contentores da reciclagem e deslizou pelo gradeamento que rodeava o recinto. Quando o chão surgiu debaixo dos pés, agarrado às barras de ferro verdes, olhando para os edifícios da escola do outro lado, sentiu-se livre.

A seguir, correu. Abriu os braços e soltou uma gargalhada. Sim, estava livre e conseguira enganar todos. A professora de inglês, o Zé Quim, o Marado... Pensou na mochila. Teria de arranjar uma maneira de recuperá-la. Parou desanimado. Fora estúpido. Tinha as chaves de casa, o telemóvel, um par de pastilhas, o dinheiro na mochila – não podia ir para casa, não podia ligar a ninguém, não podia mascar uma chiclete, não podia comer.

- Merda!...

Teria de regressar. Enfiou as mãos nos bolsos das calças, rodou nos calcanhares e encarou o caminho por onde correra como um estúpido e inocente miúdo que fazia gazeta pela primeira vez. Olhou para todos os lados, não viu ninguém. Mas ao dar o primeiro passo, sentiu uma forte dor nas costas, junto à omoplata esquerda e arquejou. Quando se voltou levou um murro em cheio no olho e caiu no chão. Entontecido, sentiu a manápula do agressor segurá-lo pela parte da frente da camisa, puxá-lo, a querer pô-lo de pé.

- Puto, andas a fugir de mim?

Reconheceu a voz do Marado. Sorriu, tentando encará-lo, mas não conseguiu abrir as pálpebras como devia de ser. Tinha um olho perdido, lesionado e a latejar do murro que apanhara.

- Deves-me dinheiro!

- O Necas... Entreguei-lhe um portátil para que te pagasse...

Apanhou com um segundo murro, no mesmo lado. Uivou de dor, agarrou-se à cara. Sentiu uma lágrima cobarde saltar do olho bom.

- Não me enganes que eu não tenho paciência para ouvir as tuas desculpas! O meu dinheiro? Acabou-se a paciência, puto!

- Já te disse...

Terceiro soco e ajoelhou-se no chão. Sentia as pernas a tremer, o corpo todo a fraquejar. Queria desistir e desatar num pranto esganiçado. Olha que merda!, iria ele pôr-se ali a chorar como uma menina à frente do Marado? Não! Com todas as suas forças... Não.

- O meu dinheiro? Deves-me trezentos euros e quero o meu dinheiro.

- Tre-trezentos? – gaguejou tentando olhar para o seu agressor. Ainda não o conseguia ver direito. – Não eram duzentos?

Um quarto soco fê-lo estatelar-se no chão, sentiu a bota dura do Marado nas costelas, rebolou.

- Estás a esquecer-te dos juros? E do trabalho que estou a ter a bater em ti? Puto, quero os meus trezentos euros...

O gelo da lâmina de uma navalha tocou-lhe no rosto. Encolheu-se, arrepiado. A voz do Marado era de troça e de superioridade:

- Hoje é sexta-feira. Dou-te até segunda e nem mais um dia. Segunda, venho cobrar os trezentos euros. Se não os tiveres, para além da tareia, traço-te essa linda cara. Ficas desfigurado para o resto da tua vida, para que sempre que te vejas ao espelho te lembres que nunca se engana o Marado. Percebeste? Segunda, puto, a esta hora.

- Tenho escola.

- Também tens escola hoje e estás aqui. Se saíste uma vez, sais duas...

Não replicou mais. Fechou os olhos enquanto sentia a lâmina roçar na pele, a querer rasgá-la, o Marado rindo-se, troçando da sua vulnerabilidade e do seu medo. Começou a contar devagarinho, em surdina: um... dois... três... quatro... Até que o outro, satisfeito por ter ganhado a luta, afastou-se levando consigo a lâmina, as botas duras e os murros certeiros.

Combalido, sentou-se. Ficou quieto, sem pensar em nada, limitando-se a sentir o ardor dos golpes. Tinha sido tão idiota! Levantou-se e dirigiu-se para a escola. Esperaria pelo segundo intervalo da manhã para recuperar a mochila e depois iria à procura do Necas para lhe arrebentar os dentes – ou, pelo menos, para recuperar o portátil, pois o Necas era tão grande quanto o Marado.

A seguir, tinha de arranjar trezentos euros.

Estava mesmo lixado.

***

Entrada no meu diário, data: março 2011

Entrei na despensa, acendi a luz e olhei para a caixa azul de cartão que estava na prateleira mais alta da estante, escondida atrás do saco das toalhas da praia. Uma caixa que guardava as minhas recordações, dos tempos de solteira, dos primeiros anos de casamento, das minhas experiências com os meus filhos. De vez em quando, enfiava lá para dentro um objeto que achava meritório de pertencer à caixa azul. Subia ao escadote de três degraus, esticava o braço, abria a tampa e guardava a coisa. Sem nunca a puxar, abri-la totalmente ou remexer em tudo o que acumulava ali. O que residia no fundo da caixa azul, residia também no fundo dos tempos – os primórdios da minha vida.

Naquela noite, estava disposta a mergulhar nesse tempo.

Tremia quando subia os três degraus do escadote. Sabia o que queria ir buscar à caixa azul e sabia que iria doer.

Carreguei-a nos braços com todo o cuidado. Estranhei no início, porque a julguei mais pesada, arreliada também pois julgara que a minha vida teria mais peso e seria mais farta. Poisei a caixa azul no chão da despensa. O compartimento era pequeno e quente, mas não iria sair dali para fora com a preciosa arca. As coisas que continha não deviam contaminar o resto da casa, deveriam confinar-se àquele cubículo abafado e amarelo da luz da lâmpada pendurada por cima da porta, que eu encostara.

A casa estava silenciosa. Todos dormiam, menos eu.

E menos o Tiago, que ainda não aparecera em casa depois de ter saído para a escola de manhã, o que motivara uma discussão feia entre mim e o meu marido.

Suspirei.

- Ora, cá vamos nós...

Retirei a tampa, pu-la de lado. A primeira coisa que vi foi a chupeta azul que pertencera ao meu filho. A segunda foi uma foto que tirámos todos juntos durante as férias em que viajámos até Londres, junto aos portões de Buckingham Palace. Éramos uma família feliz, dois anos antes... Engoli em seco e enfiei a mão dentro da caixa. Só pelo toque conseguia reconhecer as coisas que ali estavam – o primeiro caderno do Tiago, o peluche de bebé da Isabel, a medalha que o Luís ganhara num pedipaper de um dos convívios primaveris promovidos pela empresa onde trabalhava. Os meus dedos pararam... A cassete de vídeo do nosso casamento. Um livro. Uma moldura. Uma carteira velha com os bilhetes de cinema dos filmes que mais adorara ver quando era solteira.

Agarrei no livro e agarrei na moldura. Puxei-os. Deslizaram para fora, fazendo o seu caminho suavemente até ao exterior, sem arrastar outros objetos com eles, porque eram especiais, não se misturavam com as demais recordações. Primeiro veio o livro e, na capa... uma bola cor-de-laranja estrelada.

Fechei os olhos, a mão pousada sobre o livro, hesitante se o deveria abrir. Se o queria abrir.

Agarrei na moldura com mais determinação. Voltei a imagem para mim e contemplei-a num silêncio ambíguo. Era uma moldura preta, estreita, arredondada. Uma coisa simples e barata, comprada numa loja de chineses. O que interessava era o que a moldura iria enquadrar, não a moldura em si. O que interessava era tê-lo comigo, nem que fosse numa imagem estática e, de certo modo, inexpressiva, vazia... Morta.

Olhava para o pai do Tiago e havia séculos que eu não olhava para o pai do Tiago. Fazia-o mais vezes, no passado, quando ainda era sozinha, com o Tiago na barriga, com o Tiago recém-nascido, com o Tiago bebé, com o Tiago a crescer. Uma das primeiras coisas que fiz quando me separei do pai do meu filho foi ir até à Internet procurar por uma imagem dele. Nas primeiras tentativas não conseguia carregar a imagem até ao fim. Interrompia-a quando, a seguir ao cabelo e aos sobrolhos, começavam a aparecer os seus olhos azuis. Depois, arranjei coragem e fiquei com a primeira imagem em que cliquei. Era mesmo o pai do Tiago, não era o outro, o rapaz que tinha vindo do futuro... Estava vestido com um colete amarelo, t-shirt preta, calças também pretas, botas amarelas. Sorria-me, a imagem, e eu achei-a tão perfeita que chorava enquanto a guardava na moldura.

Passei a matar as saudades todas as noites, conversando com a moldura. Contava-lhe as novidades do meu dia, dizia anedotas, trauteava-lhe as canções da moda. Depois de saber que estava grávida, partilhava com a moldura todos os momentos mágicos desse estado de graça que é carregar uma criança dentro de nós. Eu falava-lhe das minhas dúvidas, dos meus anseios, revelava-lhe as minhas descobertas e todas as pequenas alegrias. Nunca me dei conta que a moldura não replicava e sentia-me preenchida partilhando a minha vida com uma imagem colorida de quem, nunca mais, iria ter ao meu lado.

O Tiago nasceu e eu continuava a conversar com a moldura. Naquelas noites longas de mamadas e de cólicas, eu adormecia agarrada a ela, balbuciando:

- O teu filho dá cabo de mim...

Então, conheci o Luís e, aos poucos, fui negligenciando a moldura. Até que a esqueci durante uma semana, pousada na cómoda do meu quarto, de imagem voltada para baixo. Lembro-me de a ter olhado, de lhe ter dito resoluta:

- Adeus.

Lembro-me de ter agarrado nela, ainda com a imagem voltada para baixo, e de a ter enfiado na caixa azul, onde já lá estava o livro. Ao vê-lo pousado no chão, voltei a colocá-lo na caixa azul, sem passar da imagem da capa da bola cor-de-laranja estrelada.

Quando lhe dissera adeus, havia doze anos, jurara à moldura que nunca mais iria falar com ela. Encerrava-se para sempre aquele capítulo ensandecido da minha vida. Quebrava a promessa, pela primeira vez, naquela noite, sozinha na despensa.

Respirei fundo. Disse:

- O nosso filho está a tornar-se num estranho. A culpa é minha, mas eu não sei o que mais posso fazer para o trazer de volta. Ele quer saber quem tu és... Quem é o seu pai. E posso dizer-lhe que o pai dele não pode vir ter connosco? Posso dizer-lhe que o pai vive comigo, impresso numa folha de papel, numa moldura de uma loja de chineses, dentro de uma caixa azul?

Calei-me. A sandice do passado regressava com uma força brutal que me fazia a alma tanger como as cordas de uma harpa. Passei os dedos pelo rosto descolorido do pai do Tiago. Os seus olhos azuis... Que lindos olhos azuis que o meu filho herdara...

Nunca poderia revelar a ninguém quem era o pai do Tiago. Muito menos agora, quinze anos depois dos acontecimentos. Julgar-me-iam louca. O diagnóstico seria claro e inequívoco: a pobre sofrera um trauma tão grande por ter sido rejeitada quando engravidara, que resolvera acolher uma realidade alternativa e inventara um pai para o filho, alguém perfeito e inatingível que nunca a poderia magoar, que nunca a poderia rejeitar.

Como estariam enganados. E como ficaria eu internada num hospício para sempre!

Acariciando a moldura, murmurei-lhe:

- Deixaste-me sem alternativas.

E que alternativas tínhamos nós os dois, eu e o pai do Tiago? Nenhumas. Nunca as tivemos. Nunca...

Pela segunda vez disse à moldura, sem pena:

- Adeus.

Voltei a guardá-la na caixa azul mas, desta vez e enquanto colocava a tampa na caixa, vi que ficava em cima de tudo o resto, com a imagem voltada para cima. Um soluço saiu-me do peito.

- Adeus... Nunca vou conseguir dizer-te adeus. Tu sabes disso, não sabes? Ainda tens a tua parte do medalhão? Eu tenho a minha... Já não o uso, mas não o encerrei nesta caixa azul, longe de mim. O teu coração está naquele medalhão... Sabes que continuo a amar-te e que nunca deixarei de te amar, até ao dia da minha morte. Amo-te... Amo-te.

Tapei a caixa. Fiquei tempos infinitos com as mãos apoiadas na tampa, braços esticados, dobrada, a recuperar a respiração. A alma deixou de ser harpa, a melodia do passado abandonou-me.

A porta da rua fechou-se devagarinho.

Num reflexo, olhei para o relógio de pulso. Marcava uma e trinta e sete da madrugada.

Saí da despensa de rompante, abandonando a caixa azul e o escadote. Ele sobressaltou-se por me ver aparecer. Encolheu-se todo, desviou a cara, resmungou.

- Tiago! Onde tens andado? O teu pai e eu estávamos preocupadíssimos. Não atendeste o telemóvel...

- Mãe, deixa-me. Estou cansado.

Segurei-lhe num braço, puxei-o para mim.

- Desta vez não vou admitir que fujas das tuas responsabilidades. Não me interessa que seja tarde, vais ouvir o que eu...

Calei-me, inspirando muito depressa, largando o fôlego acumulado com um meio berro, porque tinha consciência das horas tardias e não queria despertar o resto da casa – o que menos queria, naquele momento, era um festival de fogo-de-artifício numa noite de sexta-feira.

- Tiago! A tua cara!...

Ele tapou o olho esquerdo com a mão.

- Andaste à porrada?

- Se eu te disser que bati na paragem de autocarros, não vais acreditar, pois não?

- Com quem?

- Com um amigo.

- Os amigos... não fazem isso – arquejei. Ele estava bastante magoado e as feridas tinham o aspeto de não serem recentes. – Quando foi?

- Hoje de manhã.

- E foi por causa desse olho inchado que não vieste para casa?

- Sim...

- Tiago, tu sabes que não me iria zangar contigo.

- Uma novidade.

- Esse teu olho precisa de cuidados. Espera um bocadinho. Vou vestir-me e vamos já ao hospital.

- Não!

- Por que não? Isso deve estar a doer.

- Não, eu trato disto. Mãe, boa noite.

- Tiago – segurei-o novamente por um braço -, tu vais comigo ao hospital. E é já!

- Não vou! E para de me tratar como um bebé!

Enfiou-se no quarto dele, fechou a porta.

Descaí os ombros, totalmente derrotada. Olhei para o interior da despensa, para a caixa azul. Ainda equacionei fazer a loucura de agarrar na moldura, de entrar pelo quarto adentro, de lha mostrar e gritar:

- Miúdo imbecil! Este é o teu pai!! Era isto que querias saber? Era isto que querias ver? Acho que não!

Mas limitei-me a apagar a luz amarela do cubículo e de me enfiar na cama. Antes de adormecer pensei no Japão e na tragédia que tinha acontecido naquele dia – um brutal sismo seguido de um tsunami. As imagens a documentar o sucedido tinham começado a aparecer e os primeiros filmes eram aterradores, coisa do fim do mundo. As minhas preces, depois de ter rogado proteção para a minha família, foram para esse país onde tinha nascido o pai do meu filho.

Fim de entrada.

***

No domingo o olho estava menos inchado, mas ganhara uma cor arroxeada a descair para o preto que o afligiu um pouco. Mirou o ferimento com atenção no espelho da casa-de-banho, com a ponta dos dedos a milímetros de distância, com receio de lhe tocar, mas curioso para saber como sentiria aquele bolbo sanguinolento que tinha agora sobre a pálpebra. Naquela dúvida contemplativa, considerou a possibilidade de a sua mãe poder ter razão e que talvez ele devesse ir ao hospital para que um médico lhe visse aquilo.

Enfiou um boné, puxou pela pala para esconder o hematoma. Saiu de casa pois não estava a conseguir suportar mais uma discussão dos pais. Gritavam um com o outro sobre dinheiro e sobre contas por pagar, quando a batalha começara por causa dele e do seu olho roxo. Não adiantava mudarem de assunto. Ele sabia que era o principal problema, não a falta de dinheiro. Passou pela irmã que fugia da discussão cantarolando a acompanhar o leitor de MP3, os fios brancos a saírem-lhe das orelhas. Ele não era capaz de fingir como ela que estava tudo bem e que se podia cantar. A voz da mãe era tão esganiçada que pareciam voar agulhas desde a cozinha. A voz do pai era grave, repetia as mesmas palavras uma e outra vez, a cadência de um barco de condenados a querer afundar o histerismo da mãe. Não aguentava aquilo.

Agarrou na bicicleta, que estava presa ao gradeamento da escadaria do patamar do rés-do-chão do prédio com uma corrente e um cadeado. Montou a bicicleta e desatou a pedalar furiosamente pela rua afora. Quando viu que estava suficientemente afastado de casa, respirou fundo. O olho latejou.

A cidade estava vazia e preguiçosa ao domingo. Havia poucos carros na estrada, algumas pessoas passeavam pelas ruas desertas. Quase que se conseguia escutar o vento. Passou pelo Largo de São Francisco onde se viam os restos da manifestação do dia anterior, subordinada ao tema da Geração à rasca, e em que todos os que se sentiam à rasca se tinham juntado. Ele também se sentia à rasca – mas não fora à manifestação; passara o dia deitado na cama, a tentar descansar apesar de o olho lhe doer como o raio. Não sabia onde podia arranjar os trezentos euros e o seu tempo estava a acabar.

Enfiou a bicicleta pela estrada que ia dar ao cais novo, cruzou a linha férrea, pedalou com força para imprimir mais velocidade. Ele gostava de velocidade... Estava ansioso por tirar a carta, agarrar num automóvel e conduzi-lo na autoestrada sempre a acelerar, a acelerar, sem limite. As palmeiras passavam por ele, um par de cães correu atrás da roda traseira. Chegou ao cais onde alguns pescadores amadores, com ar indolente, tentavam a sua sorte nas águas modorrentas da ria. Rodeou os edifícios abandonados a respirar o ar salgado.

Travou de repente quando o viu. A bicicleta derrapou, mas o outro estava tão absorvido no que analisava no ecrã do computador portátil que nem se deu conta da derrapagem próxima. O Necas!

Tiago afastou-se um pouco para que não fosse descoberto, mas não demasiado, para não perder o Necas de vista. Agarrado ao guiador, apoiava um pé no chão, o outro calcava o pedal pronto para arrancar. Pensou em várias hipóteses: atropelar o Necas e roubar-lhe o computador; passar uma razia ao Necas, enchê-lo de pó e roubar-lhe o computador; parar com a roda da frente em cima do Necas e roubar-lhe o computador; sair da bicicleta, atirar-se para cima do Necas e roubar-lhe o computador. Ele via mais o computador que o Necas: o computador era o passaporte para a sua salvação.

Decidiu-se pela primeira hipótese: atropelá-lo era o que mais lhe agradava. Mas quando carregou no pedal para impulsionar a bicicleta assassina na direção do maldito traidor, reparou que este não estava sozinho. Um outro rapaz juntou-se-lhe, sentando-se ao lado dele. Os dois começaram a rir enquanto viam um vídeo que enchia o ecrã. Tiago pousou os dois pés no chão e começou a recuar, rangendo os dentes, as mãos suadas a escorregar no guiador, o olho dorido a contrair-se de dor.

Muito amigos, a verem filmes no portátil que ele tinha roubado, estavam o Necas e o Marado.

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