prólogo
— Ei, só estou ligando para avisar que não vou conseguir ir para a escola hoje. Não consigo dar dois passos sem vomitar — disse Nadine, encolhida no próprio sofá. Tinha as pernas dobradas, o braço livre em volta da barriga e a outra mão segurando o celular no ouvido. — Falei com Sâmia, nós trocamos os horários e ela consegue me substituir.
Nadine deu todas as informações antes que Cíntia pudesse falar. Sabia que ela não se importaria com a falta, desde que Nadine não a deixasse na mão com os alunos. Cíntia odiava ter de procurar um professor substituto em cima da hora.
— De novo? Tem certeza de que não está grávida? — Cíntia riu de leve, claramente brincando. Era a segunda vez em quinze dias que Nadine faltava porque não parava de vomitar.
Nadine não respondeu, apenas suspirou de leve e apertou as pernas contra o peito. Cíntia com certeza notou o silêncio evasivo, porque ficou em silêncio por um momento também.
— Pela Deusa, você está grávida, não está? — disse ela, depois de um tempo. Não estava brincando desta vez.
Nadine não tinha motivos para negar.
— Eu tenho consulta com uma obstetra hoje à tarde. Vou fazer exames para investigar os vômitos excessivos — respondeu Nadine, por fim.
Ela olhou através da porta de vidro da sacada, observou a infinidade de prédios altos que despontavam no céu cinzento, o Jardim Francês verde e chamativo do Jardim Botânico. Curitiba exibia um céu nublado e tempestuoso naquela manhã, mas Nadine apostava que o sol surgiria durante a tarde. Morar naquela cidade significava quase sempre encarar as quatro estações num dia só.
— Tudo bem, certo. Não se esqueça do atestado — respondeu Cíntia, e por um segundo adotou a voz de diretora que usava com todos. Então a voz dela suavizou um pouco, assumindo o tom mais íntimo de alguém que conhecia Nadine há anos. — Você está bem?
— Sei lá, só tentando cuidar da parte prática. Tenho consultas para marcar e mil coisas para planejar. — Nadine respondeu da forma mais sincera que conseguiu naquele momento.
Não disse para ela que demorou um mês inteiro para marcar uma consulta com a obstetra. Nem que, secretamente, esperava que a obstetra olhasse para o ultrassom com uma expressão confusa, depois afirmasse que não havia nada no útero de Nadine, que as alterações hormonais eram por causa de qualquer coisa, menos de um bebê.
Meio que estava passando pelos cinco estágios do luto desde que descobriu a gravidez. A primeira reação foi negar, tentar fingir que nada estava acontecendo porque aquilo era surreal. Depois veio a raiva, porque nada daquilo parecia justo, ela havia feito tudo certo, havia usado camisinha, não havia? Seguiu para a barganha, quando tentou enfrentar a realidade e se convencer de que aquilo tudo não destruiria sua vida tão profundamente como imaginava. Nadine estava desconfiada que havia congelado em algum estágio entre depressão e aceitação, embora a aceitação não parecesse perto de acontecer.
— Imagino. Conversamos amanhã? No café da manhã? — sugeriu Cíntia, ainda num tom confuso e abismado, provavelmente tentando digerir a notícia.
Nadine respirou fundo e acabou concordando.
— Claro. Te encontro na cafeteria — disse.
Era um costume delas. As conversas de manhã cedo na cafeteria do colégio, antes do horário de trabalho.
Quando Cíntia desligou a chamada, Nadine deixou o celular cair no sofá. Continuou encolhida ali, as pernas dobradas, o braço pressionando a barriga, incapaz de se mover. Todo mundo falava sobre como as contrações do parto doíam, ninguém nunca falava sobre como as cólicas e enjoos também doíam e queimavam de dentro para fora.
Por fim, Nadine levantou-se devagar e foi abrir a porta da sacada, esperançosa de que o ar fresco ajudasse a aliviar o enjoo. Nadine se apoiou nas grades do muro de proteção. Conseguia ver o Jardim Botânico dali, os corredores de plantas bem podadas do jardim de entrada, os caminhos floridos e cheios de cores, arbustos em formas geométricas e quadradas. Também via a estufa principal se aninhar no gramado verde, um monumento feito de aço e vidro que permitia a qualquer um ver o esplendor das plantas ornamentais abrigadas do lado de dentro.
Viu o ônibus de turismo da cidade parar bem ali na frente e despejar dezenas de turistas. Os turistas viam o mesmo que Nadine: arbustos em formas geométricas, flores coloridas, fontes ornamentais que jorravam água no jardim de entrada, a estufa de aço e vidro.
O que eles não viam é que, logo além do bosque fechado para turistas, havia um prédio enorme que se sobressaía à estrutura da estufa principal. Nadine também duvidava que os turistas percebessem que a maioria dos adolescentes em excursão escolar no Jardim Botânico eram bruxos. Nadine cresceu aprendendo e praticando magia, mas nunca deixou de se impressionar. O Colégio Sagrado de Atena estava logo ali, mas eles não viam. Os turistas e moradores não percebiam e nem ultrapassavam os limites da instituição. Tanta magia era necessária para aquilo que o feitiço de camuflagem era ancorado à terra. Era por isso que, no caminho para o colégio, Nadine via cristais translúcidos despontando da terra, símbolos desenhados com pedras grandes e esculpidos nas árvores mais antigas.
O colégio era imponente e grande, sua estrutura lembrava a do Colégio Estadual do Paraná, ostentando largas escadarias de entrada, grandes vigas brancas e ornamentadas que levavam às portas duplas quadradas e enormes. A diferença era que o Colégio Sagrado de Atena possuía uma fonte ornamental e uma estátua dourada da Deusa, que segurava uma lança e portava um escudo com elegância.
Nadine suspirou, observando o Colégio Sagrado. Do alto de seu apartamento no décimo segundo andar, ela tinha uma vista panorâmica do Jardim e do Colégio. Morava tão perto que não precisava ir de carro ao trabalho, o que facilitava tudo.
Era irônico ser professora num colégio que levava o nome da deusa da inteligência. Nadine não se sentia nem um pouco inteligente enquanto estava ali, presa no próprio apartamento porque não parava de vomitar. Costumava achar que coisas desse tipo não aconteciam com pessoas como ela, era o tipo de coisa que acontecia com adolescentes irresponsáveis e ingênuas, não com ela. Não com mulheres de vinte e oito anos que tinham todo um futuro traçado e eram cercadas de sucesso profissional e acadêmico.
Não era à toa que Cíntia pareceu tão confusa e perplexa.
Por fim, Nadine se arrastou para o banheiro porque precisava tomar um banho e se arrumar para a consulta. Teria um longo dia — meses — pela frente.
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