7 Discrição é importante quando se persegue um assassino
— Para de me ignoraaaaar — Manu reclamou, arrastando a última vogal para chamar a atenção de Esther.
Manu estava deitade na cama de Esther, as pernas dobradas e a cabeça para baixo, o cabelo loiro brilhante balançando. Esther estava inclinada sobre a própria escrivaninha, as pernas em posição de lótus em cima da cadeira. O pé estava dormente e formigando, mas ela não se importava. Fazia algumas horas que estava ali, bebia uma poção energética e digitava sem parar para conseguir entregar o trabalho a tempo para Nadine. A professora havia prometido ler naquela mesma noite, assim Esther poderia fazer as correções e seguir para a próxima análise na manhã seguinte.
— Eu preciso entregar isso aqui hoje — respondeu Esther, porque fazia horas que Manu andava de um lado para o outro no quarto, tagarelando sozinhe enquanto Esther digitava num estado de concentração inabalável. Isso era resultado da poção energética ensinada por Nadine, que era uma receita do livro didático, mas com algumas adaptações dela para aumento de foco e concentração.
Aquele negócio era incrível, embora Nadine tivesse dito que perderia efeito se o uso fosse constante — assim como a maioria das poções. O efeito ia se perdendo na mesma proporção que o organismo se familiarizava com a mistura.
— O Ferraz tá terminando a aula dele agora — disse Manu.
Esther apertou a confirmação para enviar o e-mail com o arquivo da pesquisa. Tudo certo. Pesquisa entregue para Nadine.
— O que tem o Ferraz? — perguntou Esther, finalmente desligando o computador e voltando a atenção para Manu.
Elu ainda estava deitade na cama, balançando as pernas enquanto encarava Esther. Naquele dia, usava uma regata branca estampada com a bandeira LGBT e calças prateadas metalizadas. Os coturnos pretos estavam jogados perto da porta, junto do par de All-stars velhos de Esther. Manu reclamava com frequência que Esther precisava superar a "síndrome de Bella Swan".
— Você não ouviu o que eu disse? Fiz uma pesquisa. Lembra que ele foi acusado de abuso sexual cinco anos atrás, mas foi inocentado, mesmo a garota tendo todas as provas? Ela cometeu suicídio três dias depois do julgamento. Tá por toda a internet, fácil para o assassino encontrar. Se chamava Renata Gomes, as amigas ajudaram com os depoimentos, ela tinha os exames e tudo... mas não foi o suficiente — disse Manu, sentando-se na cama. A expressão estava séria demais para os padrões delu, e a postura rígida sugeria urgência.
— Então você acha que ele é o próximo alvo do assassino? — perguntou Esther, a mente ainda trabalhando rápido demais por causa da poção. Manu concordou com a cabeça.
— É o cenário perfeito. Final da aula, o professor Ferraz sempre fica até tarde para arrumar a sala, o colégio vai estar quase vazio por causa do toque de recolher... os protetores estão vigiando as entradas, mas nós sabemos que o assassino é alguém de dentro — disse Manu, levantando-se com movimentos agitados. — Nós deveríamos checá-lo.
Manu girou no colchão e se sentou corretamente para encarar Esther, os olhos brilhando como se aquela fosse a ideia mais genial do mundo. Esther piscou duas vezes. Checar o professor. Checar o professor que Manu acreditava ser o alvo de um assassino. Checar o professor porque, quem sabe, encontrariam o assassino.
— Manu, você enlouqueceu — constatou Esther, num tom muito óbvio.
Manu mais uma vez concordou com a cabeça, voltando a exibir muita seriedade.
— Sim, eu sou jornalista, o que você esperava? Cresci tendo a Gale Weathers como referência — disse, indo em direção aos coturnos e prestes a colocá-los.
Esther suspirou e se levantou também. Elu parecia ter tomado uma decisão, então Esther precisaria ir junto para diminuir os riscos.
— Sua calça é prata brilhante, não pode perseguir um assassino assim — alertou, apontando para as roupas chamativas delu. Qualquer um perceberia aquilo a quilômetros de distância, mesmo no escuro. E discrição parecia algo importante quando se persegue um assassino, considerou Esther.
— Tá, nisso você tem um ponto — concordou elu, e Esther já estava indo em direção ao próprio guarda-roupas.
Ela pegou uma capa marrom que era usada em cerimônias formais da escola. Parecia uma capa de chuva, como uma beca de formatura, então cobriria toda a roupa de Manu e serviria de camuflagem no escuro.
— Veste isso — disse Esther.
Manu colocou a capa por cima da própria roupa e fez uma careta.
— Cafona — comentou. Esther revirou os olhos.
— Tô salvando sua vida, idiota — provocou, colocando o par de all-stars e enfiando o celular no bolso da calça.
— Tá cometendo um crime enquanto investigamos outro, na verdade — murmurou Manu.
Os dois saíram para o corredor e fecharam a porta do quarto de Esther. Os corredores estavam vazios por causa do toque de recolher, Manu e Esther seguiram em silêncio e com cautela. Os seguranças da escola faziam rondas, mas era fácil evitá-los se seguisse com cuidado. Depois de tanto tempo morando na escola, era fácil se habituar com as rotas e horários que os guardas passavam.
— Nadine estava falando com um dos protetores hoje, parecia irritada e os dois estavam discutindo. Acha que ele é o pai do bebê? — perguntou Manu, numa voz tão sussurrada que Esther demorou um pouco para decifrar as palavras.
Esther deu de ombros.
— Não faço ideia. Ela nunca me falou nada sobre o cara, só confirmou que era um ele quando disse que estava grávida — disse, observando o corredor com atenção.
As luzes estavam acesas, o corretor cintilava em claridade. Manu e Esther observaram os murais de cortiça cheios de recados e anúncios, os vitrais enormes que refletiam luz colorida nas paredes brancas. Cada vitral exibia diferentes imagens de deuses de várias culturas. Não tinham como se esconder ali. Esther não sabia se gostava daquilo.
— Sempre achei que ela fosse lésbica — disse Manu, e Esther olhou para elu com expressão de interrogação. Queria que Manu se explicasse, principalmente porque sempre tinha ótimos palpites. Confiava nelu para localizar qualquer estudante ou professor queer no colégio. — A vida amorosa dela é um completo mistério, ela faz parte da panelinha LGBT do colégio, logo depois da Cíntia e do Ricardo e, além disso, tem fotos antigas com uma ex-namorada nas redes sociais. Tive de rolar muito para encontrar.
Esther não se sentiu surpresa. Aquilo fazia muito sentido, de alguma forma.
— Por que estava stalkeando a Nadine?
— Eu stalkeio todo mundo, não deveria estar surpresa — respondeu Manu, como se fosse óbvio. — Aliás, seu namorado não tem absolutamente nada nas redes além de letras de músicas dos anos 80 e trechos de filmes cult. Cuidado, ele pode ser um psicopata.
Esther franziu as sobrancelhas. Sabia que Manu se referia a Tiago, mas não era como se tivessem feito mais do que trocar alguns beijos. E o fato de pensar em Tiago como namorado fazia com que um misto de nervosismo e ansiedade surgissem da pior forma possível.
— Não é meu namorado. E eu não entendo a obsessão da escola inteira por descobrir quem é o pai do bebê dela — respondeu Esther, voltando ao comentário inicial dele sobre a professora. Manu revirou os olhos.
— Eu sou jornalista.
— Não pode justificar todas as suas falhas de caráter dizendo isso. — Esther parou antes de adentrar outro corredor. Parecia vazio, então fez um gesto para Manu e indicou que podiam seguir em frente.
— Tudo bem, eu amo fofoca — sussurrou elu. Esther riu.
Nadine contou que estava grávida depois de interromper a própria explicação no meio da aula e sair correndo para vomitar. Todos estavam perplexos, então ela voltou para a sala dez minutos depois, passou a mão pelos cabelos ao respirar fundo e disse "Bom, vocês saberão de uma forma ou de outra, então... eu estou grávida".
Esther ficou boquiaberta. Até onde sabia, Nadine tinha planos para o doutorado, morava sozinha e não tinha planos para se casar ou morar com alguém. De onde surgiu aquele bebê?
Obviamente, houve uma chuva de perguntas dos alunos agitados.
Quantos meses?
Três meses e meio.
Menina ou menino?
Não sei ainda.
Já tem nomes em mente?
Talvez Ítalo, se for menino. Ainda não tenho outras opções.
Quem é o pai? É algum professor da escola?
Nesse ponto, Nadine riu baixinho e interrompeu as perguntas sobre sua vida pessoal, dizendo que precisavam voltar para a aula e que já tinha se exposto demais. É claro que aquilo gerou burburinho: todos sabiam que Nadine não era casada. Bruxos casados tinham uma marca específica no pulso, um elo mágico feito durante a cerimônia do casamento, e Nadine não tinha uma. Também não tinha aliança de noivado, nem fotos com um namorado em qualquer rede social.
A principal teoria entre os alunos era que Ricardo era o pai do bebê, por isso ela evitava falar sobre o assunto. Ricardo era assumidamente gay e casado, as pessoas adoravam polêmicas e faziam tudo pela fofoca, então aquele foi o burburinho. Não havia como pensar num cenário mais chocante.
Muitas pessoas ainda acreditavam nisso, mas Esther e Manu acharam besteira desde o início. Ricardo e Nadine eram amigos demais para uma coisa dessas, viviam juntos e agiam com muita naturalidade perto um do outro. Esther sabia que, se eles estivessem transando nos bastidores, não conseguiriam simular uma amizade sincera com tanta facilidade.
Esther sabia disso por causa de Manu: as pessoas sempre supunham que tinham mais do que amizade, mas nunca aconteceu nada do gênero desde que se conheceram. Só viviam juntos e andavam juntos por todos os lugares, tinham uma intimidade despreocupada. Mas com Gaia... as pessoas nunca supunham haver algo entre Esther e Gaia, embora a tensão entre as duas fosse palpável. Era implícita no olhar. Esther e Gaia não viviam juntas, mas, quando estavam juntas, não conseguiam simular a mesma amizade despreocupada, sempre havia mais intensidade, menos conversa, mais troca de olhares. Gaia foi a primeira menina que Esther beijou, foi ela que fez Esther perceber que gênero não importava muito, amava pessoas.
Era engraçado pensar que Gaia foi o primeiro beijo de Esther. Isso aconteceu porque Esther ficou nervosa quando Tiago mostrou interesse e ela percebeu que nunca havia beijado ninguém. Gaia simplesmente disse por que não treina comigo?
As duas treinaram naquele dia. E mais algumas vezes durante as festas da escola.
Esther ia comentar algo sobre Nadine, mas um vulto chamou sua atenção. Era um vulto escuro atravessando o corredor, os passos ecoavam e chiavam alto por causa do silêncio. Manu tinha os olhos arregalados, Esther não precisou falar nada.
Quando Manu começou a correr, Esther se esforçou para acompanhar.
Foi fácil avistar a figura encapuzada quando chegaram ao corredor das salas de aula, afinal, era um vulto escuro no meio das paredes beges. Os calçados de Manu e Esther rangiam no piso enquanto perseguiam a pessoa misteriosa pelo colégio. Esther ofegou, pouco acostumada com o exercício físico. Os pulmões protestavam em ardor e falta de ar.
A figura encapuzada não entrou em nenhuma porta, continuou seguindo reto pelos corredores até a porta dos fundos do colégio. Não havia nenhum Protetor lá, provavelmente era hora da troca dos responsáveis pelo plantão.
Esther e Manu desembocaram na parte traseira da escola, onde havia um pátio que se abria para o bosque denso e escuro. A iluminação cobria só o início do pátio e, por isso, as árvores eram engolidas pela noite e pelo breu. Esther e Manu pararam para tentar enxergar alguma movimentação, procurar alguma pista sobre onde a figura encapuzada poderia estar. Esther viu a movimentação com o canto do olho, rápida e silenciosa como um farfalhar.
— Manu! — gritou quando o vulto encapuzado passou por elu.
Manu arfou e deixou escapar um ruído de dor. Esther viu a figura escura se afastar correndo e ir em direção às árvores. Não teve tempo de checar se Manu estava bem, correu para acompanhar a pessoa de capuz e não perdê-la entre as árvores escuras. Ouviu os passos de Manu atrás de si, esmagando as folhas secas do gramado.
Foram interrompidos quando a luz forte de uma lanterna os cegou. Esther parou, zonza e desorientada pela luminosidade alta. Alguém apontava a lanterna para a cara dela, a cabeça latejava por causa disso.
— Ei! Parados aí! — disse uma voz dura. Passos se aproximaram, então a lanterna foi apontada para o chão. — O que estão fazendo aqui? — perguntou um dos protetores.
Era um homem usando o uniforme preto com brasão brilhante no peito. Havia dois deles, o outro parecia ter notado a presença da figura encapuzada e seguiu para o meio do bosque com a lanterna. Esther ficou satisfeita. Talvez o fugitivo fosse encontrado.
Por trás das árvores do bosque, erguiam-se milhares de luzes urbanas, desde as luzes amareladas das janelas dos apartamentos aos postes e faróis do trânsito pesado. Esther observou o horizonte. Parecia um mundo à parte. O barulho chegava abafado até ali, assim como as luzes brilhavam distantes, como estrelas na escuridão.
— Nós... — Manu começou a falar, depois olhou para Esther com uma expressão de dúvida. Esther deu de ombros.
Não havia motivos para mentir, e as coisas ficariam complicadas se fossem pegos mentindo. No máximo, levariam uma bronca por desrespeitar o toque de recolher. Esther ainda resfolegava, tinha as mãos apoiadas nos joelhos para tentar se recuperar da corrida.
— Nós vimos uma figura encapuzada nos corredores, estávamos correndo atrás dela — disse Esther, as palavras entrecortadas pela respiração rápida. Manu assentiu de maneira entusiasmada. Os olhos brilhavam como os de uma criança.
O protetor franziu as sobrancelhas, então apontou a lanterna para as árvores e observou tudo ao redor. Vazio. Só árvores, o gramado bem aparado e o silêncio da noite.
— E por que estavam nos corredores? Tinham permissão para isso? — perguntou o homem. Tinha cabelos claros e olhos incisivos.
— Nós achamos que o assassino quer matar pessoas que foram responsáveis por outras mortes. Por isso, pensamos em checar a aula do professor Ferraz, que foi julgado por estupro, inocentado, e a menina que o acusou se suicidou pouco depois — Manu começou a tagarelar, exalava nervosismo e empolgação ao mesmo tempo. Depois apontou para o próprio ombro, onde havia um corte superficial, mas largo. Esther arregalou os olhos. Não havia notado o sangue escorrendo pelo braço delu, manchando a pele clara. — Olha, ele fez isso no meu braço, depois fugiu para lá. — Manu apontou para uma direção na floresta.
O protetor pareceu muito sobressaltado e pegou uma espécie de walkie-talkie no mesmo momento.
— Quero uma ronda completa na ala leste, parte traseira da escola. Mandem reforços agora. — Depois de mandar o recado, ele se voltou para Esther e Manu, muito sério. — Qual é a sala do professor Ferraz? Onde ele estava dando aulas?
Então os três voltaram para dentro da escola e começaram a atravessar a instituição para ir à sala de aula do professor. Era uma das poucas disciplinas ministradas no horário da noite, Ferraz só havia recebido permissão para dar aulas e passar por cima do toque de recolher porque a matéria utilizava a força da lua, das estrelas e dos planetas.
A questão era: se o assassino fosse alguém de dentro, não faria diferença alguma ter protetores vigiando só as entradas da escola.
— Eu nunca mais quero ver vocês infringindo o toque de recolher, estão entendendo? É extremamente perigoso, vão acabar se machucando. Aliás, o corte poderia ser muito pior e... — O homem continuou dando sermão por todo o trajeto. Disse que colocaria protetores nas portas do dormitório se os visse zanzando de novo pelos corredores durante a noite. Parecia realmente irritado e murmurava adolescentes... num tom aborrecido a cada dez passos.
Os corredores estavam vazios e estranhos, muito frios. Esther abraçou o próprio corpo quando subiram as escadas. A sala de Ferraz estava perto, só subir as escadas de madeira maciça e dar cinco passos.
Assim que saíram das escadas, perceberam a porta aberta. Tudo estava silencioso, não havia mais aula. O protetor pediu que Esther e Manu esperassem, mas é óbvio que os dois o seguiram até a porta da sala de aula. Manu ofegou, muito surpreso. Esther reprimiu um grito.
Ferraz estava no fundo da sala de aula, pregado na parede.
As mãos estavam perfuradas por duas lâminas que o prendiam num mural de camurça, agora todo respingado de sangue, como se o professor tivesse se debatido. Além das mãos, os dois olhos estavam perfurados, e filetes de sangue escorriam pelas bochechas como cachoeiras de lágrimas. Os panfletos com avisos haviam sido arrancados do mural e, com o canetão que Ferraz usava para anotar a matéria no quadro, foram escritas duas palavras, uma de cada lado de seu corpo: PORCO CHAUVINISTA.
Esther sentiu a respiração falhar e a visão escureceu um pouco. Achou que fosse desmaiar porque tudo ficou ondulado e borrado por alguns segundos. Manu a puxou para fora dali, obrigando-a a respirar fundo.
O protetor falava freneticamente no walkie-talkie, mas Esther não conseguia entender nada do que ele dizia. Tinha uma boa dose de desespero e irritação em cada palavra.
— A pixação... — Manu sussurrou, o rosto tão pálido e fantasmagórico que parecia a ponto de vomitar.
— Eu sei. — Esther mordeu o lábio e olhou para baixo. Nunca havia tido aulas com Ferraz, mas aquela era a imagem que tinha dele, pelos relatos de Gaia e de outras meninas que frequentaram suas aulas.
— Na lata — sussurrou Manu.
Esther concordou com a cabeça.
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