5 Um assassino justiceiro
Manu praticamente se mudou para o dormitório de Esther.
Elu dormia ali desde a celebração de Ostara, o que significava que o quarto consistia numa bagunça de roupas jogadas, louça suja, malas e travesseiros. Esther achava aconchegante. Lembrava-lhe de que ela não estava sozinha, também refletia o quão bagunçada se sentia por dentro.
— Ei, você sabia que Gaia já incendiou uma sala de aula aos cinco anos? — perguntou Manu. Elu tinha o computador no colo, concentrade na leitura de algum portal de notícias. Aquilo chamou a atenção de Esther. Gaia contava tudo para ela, mas Esther nunca ouviu nada sobre o incêndio.
— Sério? — Esther apoiou os cotovelos no colchão da cama, aproximando-se para ver a tela do computador.
Manu trabalhava para o jornal do Colégio Sagrado de Atena, e desde ontem pesquisava sobre Gaia e Úrsula para montar um obituário e homenagem para as duas. Esther não imaginava que Manu encontraria algo novo, pensou que conheciam tudo o que podiam sobre Gaia — especialmente se a informação fosse relevante o suficiente para sair em portais de notícia.
— Sim, o incidente saiu em vários sites de notícia. Até os portais de humanos comuns chegaram a noticiar um incêndio acidental — confirmou Manu, passando os olhos pela lista de reportagens publicadas. — Aparentemente, uma criança morreu por ter inalado fumaça demais. Aqui diz que Gaia estava irritada com um menininho que a provocou, o fogo apareceu quando ela tentou empurrá-lo... o garoto morreu por causa da fumaça. Foi a única morte no incidente, ela não foi considerada culpada porque crianças não conseguem controlar totalmente os próprios poderes, mas os pais dela e a escola pagaram uma indenização altíssima para os pais do garoto.
Manu e Esther ficaram em silêncio enquanto lidavam com as novas informações. Esther achava tudo muito estranho. Gaia era sempre tão gentil e prestativa... difícil de imaginar que tivesse se envolvido num acidente como esse.
— Que tenso. Você acha que foi por isso que a atacaram na festa? — perguntou Esther, mordendo o lábio. Desde que Gaia morreu, Esther se perguntava o porquê. Gaia estava no lugar errado e o assassino a matou aleatoriamente? Mas, se foi aleatório, por que havia entorpecente na bebida dela? Se o assassino a matou por algum motivo, Esther não conseguia nem imaginar qual era. Gaia era querida por todos ali, todos a adoravam.
— O quê? Você acha que foram os pais da criança querendo vingança ou algo assim? — Manu esbanjava confusão no rosto, os lábios entreabertos em perplexidade.
— Não, talvez estejamos lidando com um assassino justiceiro, alguém que mata pessoas culpadas de alguma morte — disse Esther, sentando-se na cama e encarando Manu com seriedade. Manu parecia relutante com a ideia, sem dar muito crédito a Esther. — Você se lembra da Fernanda? Ela saiu daqui porque Úrsula inventou vários boatos horríveis sobre ela e fez a turma inteira odiar a garota, não foi?
— Sim — confirmou elu, e imediatamente começou a digitar no computador.
— O que aconteceu com ela? — perguntou Esther.
Manu ficou em silêncio por algum tempo, digitando e mexendo no computador. Segundos depois, elu empalideceu visivelmente, tirou a mão direita do computador e cobriu os lábios.
— O que foi? — perguntou Esther, aflita. Manu balançou a cabeça, depois mostrou a tela do computador para Esther. Exibia o perfil de Fernanda no Facebook.
— Fernanda se suicidou no ano passado, um mês depois de ter pedido a transferência daqui — disse Manu. Esther recuou como se tivesse levado um soco no estômago.
— Que merda, eu não queria estar certa — sussurrou ela, encolhendo as pernas. Esther teve de respirar fundo para conter as lágrimas. Odiava as crises de choro repentinas que aconteciam depois que Gaia morreu. — Acha que os policiais já sabem?
— Talvez sobre Gaia, mas não sobre Úrsula — disse Manu. Parecia uma suposição lógica, pois duvidava que os policiais tivessem qualquer informação para conectar Úrsula e Fernanda.
— Vou falar com Nadine sobre isso. Fernanda era aluna dela, Nadine vai conseguir explicar melhor o conflito entre ela e Úrsula — disse Esther, por fim. Precisavam de alguma autoridade para lidar com aquilo, não podiam investigar sozinhos.
O silêncio que se seguiu fez o quarto parecer frio e grande demais. Manu suspirou alto e fechou o computador.
— É alguém de dentro — disse elu, mordendo o lábio inferior. Esther se ajeitou na cama, as sobrancelhas franzidas para lidar com a nova informação.
— O quê?
— O assassino é algum aluno, professor ou funcionário daqui. Primeiro porque a festa estava protegida, qualquer estranho tentando ser penetra seria notado, e segundo porque o assassino parece conhecer muito bem os dramas dos alunos matriculados no colégio — comentou Manu, e Esther não conseguiu responder. Achava a mesma coisa.
•••
Foram três dias sem aula por causa de um decreto oficial de luto. Nadine usou isso como desculpa para evitar Murilo e ignorar as tentativas de contato dele.
Por mais que Ricardo insistisse para que ela tirasse logo o curativo, Nadine não sentia a mínima vontade de responder às ligações e mensagens de Murilo. Ele a deixou esperando por sete meses, não deixou? Era uma infinidade para qualquer pessoa grávida. Que esperasse por alguns dias, então. Nadine sabia que ele ainda estaria trabalhando na escola quando voltasse a dar aulas.
A primeira aula depois do período de luto foi estranha. Nadine estava tensa e preocupada, os alunos estavam quietos e amedrontados. Ninguém imaginava que algo assim pudesse acontecer no colégio, que era sinônimo de segurança. Por isso, Nadine deixou a poção de invisibilidade de lado naquela aula, ensinou aos alunos uma poção simples, quente e doce que servia para conforto e diminuição de ansiedade. Todos pareceram gostar da ideia e aos poucos o clima ficou melhor.
Nadine não achou que Esther viria para a aula, mas ela estava sentada no fundo da sala, mal tomando notas sobre a poção, como costumava fazer. Esther também costumava sentar na primeira mesa, mas Nadine resolveu não comentar e deixá-la quieta. Ficou surpresa quando percebeu que Esther foi uma das últimas alunas a sair da sala. Mais do que isso: ela foi até Nadine ao final da aula.
— Prof? Você tem tempo? — perguntou, e Nadine assentiu no mesmo momento.
Na verdade, havia respondido às mensagens de Murilo. Deveria se encontrar com ele no Jardim Botânico, na Galeria das Quatro Estações, e tomariam café lá. Já estava atrasada, mas não se importava de deixá-lo esperando.
— Claro, por que não se senta? Como você está? — perguntou para Esther, sentando-se na cadeira da mesa dos professores. Esther puxou uma cadeira e se sentou de frente para Nadine.
— Indo, eu acho. Não estava planejando vir para a aula hoje, mas isso é importante — disse Esther, empurrando uma folha sulfite para Nadine. Havia uma notícia impressa ali, e Nadine sentiu o estômago embrulhando quando leu o título. Anunciava um suicídio, e o rosto sorridente estampado abaixo era conhecido por Nadine. — Você se lembra da Fernanda, não se lembra? Ela foi sua aluna por um ou dois meses, depois saiu do colégio por causa de problemas com a Úrsula.
Nadine ficou em silêncio por algum tempo. Só soube do que aconteceu entre Fernanda e Úrsula quando a garota saiu da escola. Nadine se sentiu culpada por meses, porque as duas foram suas alunas e ela não fizera nada para ajudar ou impedir a situação.
— Sim, me lembro disso — disse Nadine, com a voz pausada enquanto olhava para a folha de papel. — Por que me trouxe isso?
— Porque acho que Úrsula foi parte da causa do suicídio de Fernanda, também por causa disso. — Esther empurrou outra folha para Nadine. Nadine já estava familiarizada com a notícia estampada. O fato de que Gaia havia incendiado uma sala de aula não era novidade entre os professores. Nadine se lembrava do acontecimento sendo noticiado na época, foi um ocorrido notável. Gaia passou a ser acompanhada pelos melhores professores depois de ter chegado no colégio, porque a força dos poderes dela era um tanto acima da média. — Eu acho que as mortes da festa de Ostara foram premeditadas, como se o ataque tivesse um intuito justiceiro.
Esther mordeu o lábio, tensa. Nadine deixou os olhos passearem pela sala de aula vazia, observando a mesa branca aos fundos do lugar, onde Fernanda geralmente se sentava.
— Você acha que o assassino as matou porque elas tiveram envolvimento nessas mortes? — perguntou Nadine, finalmente entendendo o raciocínio dela.
Fazia muito sentido, afinal. Era a única coisa em comum que Nadine conseguia enxergar nas duas garotas mortas.
Esther assentiu com a cabeça.
— Eu pensei que talvez você pudesse levar isso para alguma autoridade. Não sei se os protetores têm essas informações, mas talvez possa ser útil — disse ela, num tom meio tímido e melancólico. Nadine assentiu.
— Claro. Muito obrigada, Esther, tenho certeza de que será útil. — Nadine poderia entregar para Murilo quando o encontrasse, com certeza ele faria perguntas sobre Úrsula e Fernanda. — Aliás, odeio fazer isso agora, mas... por causa da bebê, não estarei aqui por muito tempo para orientar seu projeto. Além de mim, o único professor especialista em poções é o...
— Yuri — completou Esther, afundando na cadeira. Nadine assentiu com a cabeça.
— Isso. Se não conseguir acelerar seu projeto e finalizá-lo logo, talvez deva considerar a situação — completou Nadine.
Tinha poucas semanas antes que a bebê nascesse e, mesmo que não quisesse tocar no assunto num momento tão delicado para Esther, não queria deixá-la desamparada quando se afastasse da escola para cuidar de Heloísa.
— Sem querer ofender, prof, mas eu começo um trabalho do zero em outra área de pesquisa antes de ser obrigada a escrever um agradecimento para ele no meu trabalho — Esther disse, fazendo uma careta.
— Eu posso não concordar com os métodos pedagógicos dele, mas nunca questionei a competência do professor Yuri como pesquisador. Tenho certeza de que ele faria ótimas contribuições para o seu trabalho, Esther — insistiu Nadine, com sinceridade. Já usara muitos artigos de Yuri como referência para os próprios trabalhos, conhecia a pesquisa dele. Entretanto, Esther parecia irredutível.
— Isso é importante demais para que eu concorde em trabalhar com ele — disse Esther, balançando a cabeça. Nadine acabou concordando ao sentir o peso nas palavras dela.
— Você parece tratar sua pesquisa de forma muito pessoal, posso perguntar o motivo? — perguntou com cuidado, e Esther afundou na cadeira.
Os olhos de Esther desceram para o chão, depois para o quadro cheio de anotações, só então ela se virou para Nadide e começou a falar, depois de muito tempo em silêncio.
— Quando eu tinha dez anos, minha mãe precisou fazer uma cirurgia cardíaca urgente, era uma cirurgia de alto risco. A cirurgia foi bem, mas ela teve uma hemorragia. O médico cirurgião aplicou uma poção bloqueadora de hemorragia, mas a poção foi preparada da forma errada, alguns ingredientes estavam mililitros acima da dose e ficaram mal misturados... a poção agiu de forma contrária, aumentando a hemorragia, e ela morreu. Meu pai recebeu uma indenização alta do hospital por causa disso, os funcionários responsáveis pela preparação e checagem da poção foram demitidos, mas... — Esther parou de falar. Nadine prendeu a respiração para evitar uma exclamação surpresa. Erros como esse não podiam ser cometidos. Os ingredientes não foram devidamente medidos no laboratório? Ninguém notou o erro na inspeção de rotina? Nadine sabia que era difícil de perceber um erro de alguns mililitros, mas ainda assim soava muito como incompetência. — Enfim, é por isso que decidi fazer minha pesquisa sobre as reações após o uso de poções sanguíneas, sobre como afetam o organismo principalmente no caso de falhas, tipo excesso de dosagem — concluiu Esther, com um suspiro largo.
Nadine assentiu com a cabeça, tentando se desfazer do nó na garganta. Depois de tudo o que descobriu sobre Fernanda e a mãe e Esther... a mente estava lotada de preocupação e pensamentos ansiosos.
— Sinto muito, eu não fazia ideia, de verdade. Obrigada por me contar — falou Nadine, com toda sinceridade e empatia que conseguiu demonstrar. Desejava que Esther tivesse contado isso desde o início, teria sugerido que ela pesquisasse sobre um assunto que não estivesse tão envolvida emocionalmente. Pesquisar já era exaustivo, ainda mais com todo esse peso pessoal envolvido. — Eu vou fazer o possível para que consigamos terminar a pesquisa antes que eu precise me afastar, tudo bem? Consegue me enviar a terceira análise hoje à noite? — perguntou Nadine, e Esther sorriu um pouco, assentindo prontamente.
— Acho que sim — disse Esther. — Muito obrigada!
Nadine apenas sorriu e assentiu enquanto Esther se levantava. A menina já estava quase na porta da sala quando Nadine a chamou.
— Esther? — Esther se virou, ajeitando a bolsa nos ombros. — Não perca sua sanidade fazendo essa pesquisa. Sei que é importante para você, mas você também precisa dormir, comer e viver um pouco. Me avise caso esteja sendo demais, tudo bem?
Foi a vez de Esther sorrir e assentir antes de desaparecer no corredor.
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