3 Um método não convencional para bruxos
Gaia se sentia leve quando saiu do banheiro, quase zonza. Notou que havia bebido demais, e uma parte de si gostava da sensação, a outra admitia que talvez estivesse entorpecida além do ponto. Ela parou na porta do banheiro e tentou lembrar qual direção tomar para encontrar Esther. Uma multidão de adolescentes se movimentava de um lado para o outro, constituindo uma massa suada e cheia de energia.
Gaia estava tão distraída pensando em como evitar passar pelo meio da festa que demorou para vê-la. Úrsula estava parada na frente de Gaia, tinha os olhos arregalados e estranhos. Ao mesmo tempo que arregalava os olhos, o resto do rosto exibia uma expressão vazia, estranhamente diferente do alarme presente nas pupilas. Os lábios entreabertos, ombros caídos e relaxados, o rosto estranhamente pálido, pálido demais...
Gaia estava prestes a perguntar se havia algo errado quando uma bolha de sangue escorreu da boca de Úrsula, líquido carmim manchando o trajeto e escorrendo para o pescoço. Gaia não teve tempo de reagir, Úrsula caiu logo em seguida. Quando ela desabou sobre o piso de concreto, Gaia percebeu a enorme mancha vermelha e escura nas costas dela, sangue carmim espalhando-se pelo vestido cor de pérola e brilhante.
Até então, Gaia não havia notado ninguém atrás de Úrsula, mas um movimento rápido prendeu sua atenção. Uma figura encapuzada avançou na direção de Gaia, usava um capuz cinzento, cheio de símbolos desenhados em tinta escura. A mão esquerda estava coberta por uma luva e segurava a adaga ensanguentada, a lâmina pingava sem parar. Era o sangue de Úrsula, percebeu.
Uma garota que passava por perto olhou para Úrsula caída no chão, percebeu a mancha de sangue no vestido elegante. Finalmente os olhos dela recaíram sobre a figura encapuzada, então gritou alto. Gaia se encolheu com o som. Aquilo foi o suficiente para que o pânico coletivo se instaurasse como uma bomba, todos começaram a correr.
Gaia tentou correr também, a onda de gritos abafou sua audição enquanto tentava se movimentar. A figura encapuzada estava próxima demais, Gaia não soube bem como aconteceu, mas a mão enluvada agarrou o pulso dela e a jogou contra a parede do banheiro. Mais gritos, mais passos pisoteando concreto e alunos apontando para o corpo de Úrsula caído com olhos abertos e arregalados. Úrsula havia caído de bruços, os braços dobrados atrás das costas, as mãos para cima numa posição desconfortável.
Gaia se distraiu por alguns segundos, a dor a trouxe de volta. Uma dor lancinante pouco abaixo do peito. Ela não conseguia respirar. Quando exalou, a dor explodiu por todo o tronco, uma bolha cheia de sangue veio junto e escorreu pelos lábios. Gaia tentou ver a figura por baixo do capuz cinzento, mas foi em vão. Só viu a escuridão profunda e emoldurada pelo capuz.
Gaia caiu de joelhos, o brilho da adaga chamou sua atenção. A lâmina estava enfiada no corpo dela, na altura do pulmão. Ela levantou inutilmente os braços fracos, então deixou-os cair. Tentou abrir a boca para pedir ajuda à multidão agitada, aos adolescentes em pânico que corriam de um lado para o outro, mas só saiu um murmúrio molhado e fraco.
A escuridão cercou-a pelo canto dos olhos, fechando-se aos poucos, fazendo com que a visão ficasse borrada e indiscernível. Vultos corriam de um lado para o outro, a figura encapuzada tinha desaparecido no meio da confusão. Gritos ecoavam ao longe, mas Gaia não os ouviu quando caiu contra o chão de concreto, curvando-se sobre a própria poça de sangue.
•••
Quando Nadine voltou para a sala dos professores com a enfermeira, Esther dormia sentada no sofá. Nadine sentiu uma onda súbita de preocupação, correu até a garota e se sentou ao lado dela. Estava tentando achar a pulsação de Esther, mas a enfermeira se aproximou com um estetoscópio.
— Deixa eu ver — disse a enfermeira, e Nadine se afastou. A mulher ouviu os batimentos de Esther por alguns segundos, colocou a mão no peito dela e sentiu a respiração. — Ela vai ficar bem. Deve ser algum sonífero ou entorpecente, algo assim. Nada muito grave.
Nadine suspirou aliviada, depois colocou a mão sobre a própria barriga quando a bebê deu um salto. Era como se a criança reagisse a todo o estresse e preocupação dela.
— Vou tirar o sangue dela para alguns testes e fazer com que tome um soro para ajudá-la a se recuperar mais rápido — disse a enfermeira. Ela se chamava Márcia e tinha uma habilidade absurda com ervas. Nadine às vezes recorria a ela para preparar alguma poção mais complexa ou para tirar dúvidas.
Antes que pudesse enchê-la de perguntas e se oferecer para ajudar a cuidar de Esther, o celular de Nadine vibrou. Eram duas mensagens de Ricardo.
vem para o banheiro externo do pátio
urgente!!!!!!!
A falta de letras maiúsculas e a quantidade de pontos de exclamação alarmaram Nadine. Ricardo sempre mandava mensagens com a gramática perfeita, então ela estranhou o tom dos textos. Nadine olhou para Esther, que continuava inconsciente, e mordeu o próprio lábio enquanto deslizava a mão pela barriga para acalmar a bebê.
A enfermeira tirava o sangue de Esther com uma seringa e dizia que tinha enviado uma mensagem para o médico. Ele traria o suporte para o soro e ajudaria Esther.
Nadine se levantou e agora andava de um lado para o outro, inquieta.
— Ricardo me chamou, disse que é urgente. Vocês vão ficar bem? Não pretendo demorar, só...
— Vai, tenho tudo sob controle aqui. Mas cuidado com o estresse, faz mal para o bebê. — Márcia lançou uma piscadela para Nadine, que sorriu e concordou com a cabeça.
Segundos depois, Nadine atravessava os corredores com pressa, ansiosa para chegar ao banheiro externo. Sentia a bebê se agitando cada vez mais, respondendo à movimentação e ao nervosismo dela. Finalmente o ar frio da noite a envolveu, Nadine atravessou o gramado em direção ao banheiro.
Não havia mais nenhum aluno ali, apesar de ser cedo demais para o final da festa. Aquilo foi um sinal de alarme. Por que mandaram todos de volta aos dormitórios? Isso só acontecia quando havia uma ameaça grave à segurança dos estudantes. Apesar do lugar vazio, bruxos com o uniforme padrão de protetores andavam de um lado para o outro, fazendo anotações e falando com os funcionários da escola.
A maioria das lanternas à luz de velas havia se apagado, o gramado e o pátio eram iluminados pelos postes convencionais. Ao longe, a estufa principal do Jardim Botânico continuava iluminada em rosa claro e verde, e por todo o caminho havia mesas abandonadas, copos perdidos no chão do gramado, até mesmo bolsas esquecidas e cadeiras tombadas. Resquícios da comemoração que parecia ter acabado subitamente.
— Nadine! — Ricardo a chamou, correndo na direção dela.
Nadine notou um círculo de pessoas em volta da porta do banheiro, aquilo a deixou ainda mais ansiosa. Ricardo pareceu anormalmente preocupado quando parou na frente dela, a expressão exalava urgência e boa dose de pânico.
— O que aconteceu? — Nadine ainda olhava para o banheiro, para o amontoado de protetores discutindo e conversando ali. Tentou respirar fundo, acalmar-se. Ricardo hesitou um pouco, os olhos dele desceram cheios de preocupação para a barriga arredondada dela.
— Preciso que você respire fundo — pediu ele.
Nadine revirou os olhos. Odiava que as pessoas a tratassem com tanto cuidado por causa da gravidez. Desde que a barriga começou a aparecer, todos pareciam tratá-la como se Nadine fosse frágil demais para lidar com certas coisas.
— Ricardo, o que aconteceu? — perguntou, impaciente.
Nunca o vira tão inquieto assim, havia um terror genuíno que iluminava seus olhos castanhos, sempre tão calmos. Nadine engoliu em seco e aceitou o conselho dele, respirando fundo para se acalmar.
— Elas estão mortas — disse, e Nadine abriu a boca para fazer perguntas, mas Ricardo completou antes que ela fizesse isso. — Gaia e Úrsula, mortas.
Nadine demorou um pouco para entender as palavras dele. Entendeu completamente o sentido, só não conseguiu internalizar, interpretar tudo aquilo. Quase como se fosse informação demais. A voz saiu num sussurro leve, muito inseguro:
— O quê?
— Com facadas, definitivamente um método não convencional para bruxos — Ricardo falou, e Nadine ficou em silêncio por um tempo.
Bruxos tinham formas bem mais rápidas e limpas de matar, não precisavam de uma lâmina. E Nadine mal conseguia imaginar como aquilo aconteceu, porque a celebração estava cheia de professores. Ninguém viu o assassino? Como ele entrou? O assassino era alguém de dentro?
— Pela Deusa. Com uma faca? Por quê? — perguntou ela, quando percebeu que estava há muito tempo sem responder. Ricardo deu de ombros, a expressão sombreada e dura de preocupação.
— Uma adaga, na verdade, uma lâmina longa. Ainda não sabemos o motivo, nem temos pistas sobre o assassino. Os poderes das duas parecem intactos, então não houve nenhum ritual para roubá-los, nem nada muito valioso parece ter sido levado das duas — Ricardo falava, mas a atenção de Nadine estava no círculo cada vez mais escasso de pessoas ao redor do que imaginava ser a cena do assassinato. Cíntia falava com um grupo de protetores, estava de costas para Nadine. Usava um vestido prateado elegante naquela noite, os cabelos afro caíam volumosos sobre os ombros.
— Eles deveriam saber sobre Esther. Você falou sobre ela? — perguntou, porque Esther estava bebendo do copo de Gaia. A informação de que o assassino estava dopando as vítimas era importante. Talvez pudessem rastreá-lo pela lista de ingredientes usados para a poção de torpor.
— Não tive tempo, estava esperando por você — disse Ricardo, e Nadine começou a se aproximar de Cíntia, ansiosa. Queria ouvir o que os protetores tinham a dizer. Os bruxos tinham uma polícia própria, pois a polícia dos humanos seria inútil ali. Os humanos até conseguiriam investigar a cena de assassinato, mas seria inútil sem enxergar a parte sobrenatural por trás daquilo.
— Vou até lá — murmurou, e Ricardo correu para alcançá-la, preocupado.
— Nadine, não...
Nadine não estava muito longe de Cíntia, outros professores estavam lá também, ajudando com os depoimentos. Ricardo colocou a mão no braço dela, como se para impedi-la. Nadine não precisou perguntar o motivo. O corpo das garotas. O corpo jogado de Úrsula, ensanguentado contra o concreto, deitado numa piscina escura e brilhante de sangue. Gaia estava sentada como uma boneca de pano que fora jogada contra a parede, os olhos vidrados, foscos e sem qualquer expressão.
— Puta merda, achei que estivesse coberto — murmurou, virando-se. A bebê deu um salto.
Era por isso que Ricardo não queria que Nadine se aproximasse. Ela passou a evitar filmes sangrentos depois do segundo trimestre de gravidez, também evitava lidar com carne crua ou qualquer coisa que pudesse envolver sangue. Nadine nunca foi sensível, mas isso mudou depois que uma criança começou a crescer em sua barriga. Ricardo sabia bem disso porque Nadine reclamava constantemente sobre a hipersensibilidade que desenvolveu na gravidez.
Uma onda de náusea a tomou, ela fechou os olhos por alguns segundos e tentou controlar a ânsia de vômito. O coração estava disparado, ela podia senti-lo na garganta.
— Você está bem? — perguntou Ricardo, encostando a mão de leve no braço de Nadine. Ela assentiu com a cabeça. Nadine respirou fundo antes de falar, tinha medo de vomitar assim que abrisse a boca.
Quando ia dizer que estava bem, Murilo apareceu no seu campo de visão. Usava uniforme cinza, exatamente como no dia em que se conheceram. Uniforme cinza, coturnos pretos e pesados, a insígnia dos protetores fixada no uniforme. Parecia brilhar contra o bosque tingido em verde sólido por causa da noite.
— O que ele está fazendo aqui? — murmurou Nadine, levando a mão à barriga de forma protetora. Nadine prendeu a respiração, os músculos reagiram e ficaram tensos no mesmo momento.
É claro que Murilo a viu também. Ele havia congelado, encarando-a de forma impressionada. Os olhos ficaram presos nela, desceram para a barriga arredondada e se demoraram ali por um momento.
— Deve ter insistido em vir quando a escola chamou os protetores. Pelo que sei, ele investiga manifestações de bruxaria presenciadas por humanos, não trabalha na área de homicídios. Provavelmente fez uma exceção por sua causa — comentou Ricardo, dando de ombros. Fazia sentido, Nadine pensou. Conheceu-o quando Murilo estava investigando o caso de dois alunos que brigaram com adolescentes humanos e usaram magia. Usar magia para ferir humanos era expressamente proibido, assim como deixar que humanos presenciassem manifestações de magia. — Me desculpe, eu devia ter avisado.
Nadine respirou fundo, o enjoo desceu e subiu como uma onda quente percorrendo do estômago à garganta.
— Está tudo bem — disse ela, tentando relaxar os ombros tensos.
Uma parte de si dizia que ela deveria se sentir esperançosa com o aparecimento súbito de Murilo, a outra fervia em raiva e mágoa.
Finalmente ele começou a se aproximar.
— Nadine. — Murilo soou ansioso quando a chamou. Parecia exatamente o mesmo. Mesmo cabelo escuro encaracolado, os malditos olhos verdes e profundos, o uniforme cinzento que combinava tão bem com a pele marrom.
— Quer que eu me livre dele? — sussurrou Ricardo.
Nadine não teve tempo de responder por duas razões: primeiro porque Murilo estava perto demais e ouviria a resposta, segundo porque Nadine precisou se virar e se afastar para vomitar num canto do gramado. Ela estava de cabelos amarrados, o que facilitou muito.
— Tudo bem? — perguntou uma voz, quando Nadine ofegou e finalmente parou de vomitar. Ela ficou em silêncio e esperou um pouco porque desconfiava que voltaria a vomitar a qualquer segundo. Por fim, quando as coisas pareciam ter se acalmado, Nadine ajeitou a postura e respirou fundo.
Ricardo e Murilo estavam lado a lado, os dois com os olhos arregalados e brilhando de preocupação.
— Tudo bem, eu vomito por qualquer motivo ultimamente — murmurou, limpando os lábios com o pulso. Na verdade, fazia semanas que não vomitava mais, mas o dia foi realmente estressante.
Murilo a encarava como um cachorrinho abandonado, Nadine queria socá-lo até aquela maldita expressão arrependida sumir dali.
— Podemos conversar? Vim por sua causa e... — ele começou a falar, mas Nadine foi mais rápida e o interrompeu.
— Não vou falar com você agora porque vou acabar vomitando na sua cara antes de ouvir qualquer justificativa. Aliás, você tem muito trabalho para fazer, não? — Nadine apontou para o grupo de protetores que agora cuidava dos corpos das garotas. Sentiu um nó na garganta. Gaia era uma aluna excelente e teria um ótimo futuro como artista. Ela amava usar as aulas de poções para criar tintas. Nadine não conhecia Úrsula muito bem, mas ela era tão nova e tão... parecida com Nadine naquela idade. Tão determinada e excelente em todas as disciplinas. — Falo com você quando estiver pronta. Não é uma boa noite — disse para Murilo, então se afastou sem nenhuma despedida. Ricardo a seguiu no mesmo momento, colocando a mão no ombro de Nadine como se para oferecer conforto.
Nadine se afastou para sair dali. Seria melhor que o médico ou a enfermeira falassem com os policiais, de qualquer forma. Não ela. Murilo era um problema que poderia deixar para outra hora.
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