23. Um epílogo
A formatura foi organizada no salão de eventos do colégio.
Era um salão enorme e luxuoso, o teto se erguia em uma abóbada elegante. O fundo da abóbada era bege claro, um tom suave contraposto por arcos dourados e brilhantes como ouro. Havia um lustre gigante composto por círculos abertos e cravejados de cristais translúcido no centro do salão, logo acima do tapete vermelho por onde os formandos entravam.
Mesas estavam dispostas ao longo de todo o salão, todas decoradas com camadas de toalhas beges e douradas, enfeites com flores vermelhas e taças finas em frente a cada uma das cadeiras, além de duas garrafas de espumante sem álcool. Nadine estava sentada perto do palco. Todas as mesas eram redondas, mas a dos professores era maior e quadrada.
Os formandos entraram no salão ao som de Para não dizer que não falei das flores, a versão de Charlie Brown Júnior. Era uma versão mais forte e animada da música, a letra era acompanhada por bateria e guitarra. Uma escolha apropriada, Nadine pensou. Achou surpreendente, porque a música de entrada era escolha dos alunos.
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Os formandos entravam conforme o mestre de cerimônias chamava os nomes. Todos traziam rosas brancas na mão, as flores contrastavam com os vestidos coloridos e smokings pretos. Cada formando tinha sua cadeira no palco e, no canto esquerdo, havia três cadeiras vazias. Em cada uma das cadeiras havia uma foto grande emoldurada, apoiada ali como se a cadeira fosse um cavalete. Ao lado de cada cadeira, havia um pedestal dourado com uma única vela branca. Uma cadeira para Esther, outra para Gaia e outra para Úrsula. Cada uma exibia a foto de uma das três.
Cada formando que passava distribuía a flor aos pés de uma das cadeiras, a fim de que a quantidade de flores se igualasse abaixo da imagem.
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Manu foi chamade por último. Elu usava camisa social branca com colete de alfaiataria bege, vestia pulseiras douradas e parecia o próprio sol encarnado. Nadine sorriu quando notou um colar pequeno e fino, quase escondido no pescoço de Manu. O pingente de sol era uma leve referência a Apolo, e Manu parecia Apolo em pessoa com os cabelos loiros penteados para trás, a elegância absurda fisgando a atenção de todos.
Elu tinha três rosas vermelhas na mão, subiu ao palco e distribuiu uma rosa vermelha para cada cadeira, deixando que o vermelho se destacasse no meio do branco.
Os amores na mente
As flores no chão
A certeza na frente
A história na mão
Manu ficou ali por um momento, observando as flores, as fotos, as cadeiras vazias preenchidas por imagens. Elu fez um gesto com a mão, as chamas das velas ao lado das cadeiras se acenderam, as fotos emolduradas foram cobertas de dourado pela luz do fogo.
Nadine havia conversado brevemente com Manu quando chegou ao colégio. Descobriu que elu havia passado em primeiro lugar no curso de Jornalismo da USP, estava com a mudança marcada para a próxima semana e tinha parentes em São Paulo. Aquilo deixou seu peito aquecido. Era bom saber que Manu estava seguindo em frente, que tinha planos para o futuro. Elu era tão jovem... era bom saber que não havia parado a própria vida depois de todas as tragédias.
Assim que Manu ocupou a própria cadeira, os holofotes do palco se apagaram e um projetor exibiu fotos de Ricardo, Antônio e Samuel na parede aos fundos do palco. Os formandos ficaram em pé enquanto a música tocava, a imagem dos professores brilhando aos fundos, as cadeiras com as fotos das meninas iluminadas pelas velas no meio do palco escuro. Foi uma homenagem bonita e bem organizada, Nadine ficou feliz por ter decidido ir e presenciar aquilo.
Cíntia foi chamada para discursar, parabenizou os formandos, fez um breve comentário sobre as perdas, mas sem se estender, e finalizou elogiando os alunos e projetos desenvolvidos por eles ao longo do ensino médio, como era de costume. Depois disso, Nadine foi chamada. Murilo estava ao lado dela e sorriu de forma encorajadora, apertando de leve o joelho dela. Nadine sorriu de volta e se levantou, ajeitou a saia do vestido preto antes de subir ao palco. Houve algumas comemorações dos alunos e da plateia quando ela subiu os degraus.
O púlpito de madeira estava no canto direito do palco, fora colocado na diagonal, assim era possível olhar para os formandos sem ficar de costas para o público. Nadine olhou para os alunos e sorriu enquanto ajeitava o microfone.
— Boa noite, terceiro ano. Não, não tive tempo para corrigir as provas. — Aquilo arrancou risadas tanto dos formandos quanto da plateia. Nadine respirou fundo e tentou dissipar o nervosismo. Quando voltou a falar, a voz soou calma e clara. — Eu pensei muito se deveria aceitar o convite para fazer este discurso, se eu era a pessoa certa, se teria coragem suficiente para pisar neste colégio de novo. É a formatura de vocês, é uma noite para relembrar as coisas boas e manter o otimismo, então não me pareceu correto discursar hoje. Mas eu acho que devo isso a vocês, que foram meus alunos por tantos anos. Devo isso a mim mesma, preciso de um final para fechar esse capítulo. E, como Cíntia bem lembrou, somos feitos de tragédias na mesma proporção que alegrias. Foi um ano difícil para todos, para o colégio também, Cíntia bem sabe. — Nadine olhou para a mesa dos professores. Cíntia levantou as sobrancelhas em concordância, depois a taça para simular um brinde, então entornou o espumante. Nadine conteve a risada. — Por causa disso, decidi começar minha fala relembrando as ausências. Trazendo os nomes de Esther, Gaia e Úrsula, que deveriam estar ocupando as cadeiras dos formandos. Os nomes do Ricardo, Antônio e Samuel, que foram professores de muitos aqui. Acho que acabamos perdendo uma parte de nós durante o ano, mesmo os que não tinham proximidade com os que se foram. Esse tipo de acontecimento afeta todos, provoca um vazio que é muito difícil de preencher, muito difícil de esquecer e ignorar. Só que em algum momento é preciso lidar com isso, notar a ausência e fazer algo a respeito. — Nadine fez uma pausa para recuperar o fôlego. Trocou olhares com Manu, deixou os olhos percorrerem as cadeiras com as fotos das meninas, observou as flores amontoadas. — O que eu quero dizer é: permitam-se se perder por completo. Só assim é possível reconstruir, escalar o poço. Ninguém sobrevive pela metade, então, relembrando as aulas de Poções Complexas, aceitem recomeços, mesmo que para isso seja preciso se desfazer do trabalho anterior. Dói, dá frio na barriga, mas o resultado só pode ser lindo. — Nadine abriu um sorriso quando encontrou o olhar de Murilo na mesa dos professores. Heloísa dormia no colo dele, a cabeça apoiada em seu peito. — Assim como vocês, eu não volto para a escola no próximo ano. É um recomeço para todos nós. Só posso desejar toda a sorte, a ambição e as oportunidades do mundo, que seja ótimo e nos traga um futuro melhor, e espero que nossos caminhos se cruzem novamente.
O salão todo explodiu em aplausos, Nadine esperou um momento antes de sair do palco. Assim que pisou no primeiro degrau, antes que pudesse voltar à mesa dos professores, o olhar foi fisgado por uma mulher conhecida segurando uma câmera. Ela sorriu, os olhos castanhos como uma tempestade sorriram junto. O flash da câmera a desorientou por um momento.
Graziela piscou, ainda sorrindo, e se afastou. Nadine continuava perplexa quando se sentou ao lado de Murilo. Não sabia que ela havia voltado à cidade, nem que estava fotografando a formatura. Tentou se concentrar na cerimônia de entrega de canudos, mas os olhos ficaram presos em Graziela no canto do palco, fotografando tudo.
Nadine a perdeu de vista durante o jantar, então manteve o foco em Murilo e Heloísa, em Cíntia e nos outros professores.
Foi inesperado quando Cíntia ligou para convidar Nadine para o discurso, principalmente porque já havia assinado a demissão e começaria em um novo emprego dali duas semanas. Por fim, ficou feliz por ter aceitado. Havia trabalhado ali por muitos anos, não queria que o encerramento fosse tão turbulento.
Não achou que fosse aproveitar tanto a noite, mas, quando viu, estava rindo e envolvida em conversas com os antigos colegas de trabalho. Heloísa dormia no carrinho ao lado de Nadine, Murilo segurava a mão dela por baixo da mesa. Estava sendo a noite perfeita, como não vivia há muitos meses.
Nadine se levantou para ir ao banheiro depois de algum tempo bebendo e se distraindo com as conversas. Aproveitou para trocar os absorventes dos seios, que estavam encharcados de leite. Ela fez uma careta. Heloísa ainda não havia acordado para mamar naquela noite, os seios de Nadine estavam doloridos.
Ela se sentou num divã de frente para o espelho, tirou os sapatos de salto para colocar as rasteirinhas que havia trazido na bolsa de Heloísa. Suspirou quando colocou os pés doloridos no chão. Olhou-se no espelho. A maquiagem estava intacta, menos o batom. O cabelo estava um pouco bagunçado, então ela penteou algumas mechas com os dedos para colocá-las no lugar.
— Bêbada? Já?
Nadine ouviu uma risada conhecida e não conseguiu conter o sorriso. Graziela costumava brincar que sabia o momento em que Nadine estava realmente bêbada porque ela sempre trocava o salto por algum calçado baixo.
— Acredite ou não, depois de só uma taça de vinho e meio copo de chopp — comentou Nadine, rindo também.
Graziela estava linda. Usava um vestido vermelho e sandálias douradas, os cabelos presos num coque elaborado. Ela atravessou o banheiro e se sentou ao lado de Nadine, ainda sorrindo, aqueles olhos castanhos brilhando tanto que Nadine sentia que podia derreter.
Era quase como no dia que a conheceu, ficou mais uma vez hipnotizada e encantada por aquela mulher.
— É a primeira vez que bebe depois da bebê? — perguntou Graziela, e Nadine assentiu. Graziela pareceu compreender de imediato. — Acontece. Tomei um porre enorme quando bebi depois de ter a Abby, foi como beber pela primeira vez. Quantos meses tem a sua?
Nadine deixou os olhos vagarem pela mão dela, percebeu a aliança. Ela havia conseguido tudo o que queria, afinal. Uma família, alguém que quisesse um casamento, que quisesse filhos.
Alguém que não era Nadine, pelo menos não até alguns meses atrás.
— Helô tem quase cinco.
— Abigail tem cinco e meio. Estávamos grávidas ao mesmo tempo. — Graziela pegou o celular e mostrou a foto de plano de fundo. Era uma bebê gorducha e sorridente, estava vestida de Minnie Mouse e mordia a tiara com orelhinhas de tecido. Nadine sorriu. Era uma graça, parecia-se muito com Graziela. Os mesmos olhos profundos, cabelos escuros com um brilho avermelhado.
— Grazi, ela é linda — Nadine murmurou, genuinamente impressionada.
Estava feliz por ela. Graziela merecia uma família, alguém que a fizesse feliz. Nadine sempre soube que ela seria uma mãe maravilhosa. Graziela sorriu e desligou a tela do celular, depois encarou Nadine com atenção.
— Eu tentei te ligar, sabe... depois de tudo — disse ela, agora num tom mais sério, o sorriso se esvaindo lentamente.
Nadine suspirou.
O período de tempo entre as mortes de Esther e Ricardo e o nascimento de Heloísa era um borrão para Nadine, havia se afastado de quase todo mundo naquela época.
— Me desculpe, deveria ter falado com você — disse com sinceridade, pensando em como o nascimento de Heloísa foi um puxão de volta para a realidade.
Só então Nadine começou a pensar com mais clareza. A procurar por empregos até ser contratada por um laboratório medicinal. A revisar a pesquisa de Esther até conseguir publicá-la numa revista científica renomada, e depois enviar o artigo impresso com uma carta para o pai dela. A rascunhar o projeto de pesquisa para a seleção do doutorado, que seria em alguns meses. Foi só depois do nascimento da bebê que Nadine conseguiu voltar a si mesma e pensar no futuro.
— Não se desculpe, é muita coisa, eu sei. É meio difícil não ouvir sobre tudo o que aconteceu. — Graziela abriu um sorriso leve e cheio de compreensão, mas os olhos brilhantes revelavam que ela realmente queria ter falado com Nadine naquela época.
— Você ficou bem depois das fotos? — perguntou Nadine.
As fotos das duas nuas haviam realmente se espalhado. Curitiba podia ser enorme, mas a comunidade bruxa, não. Só que nada como um escândalo maior para cobrir o outro. Ninguém se escandalizou com as fotos porque estavam ocupados demais achando que Nadine era uma espécie de heroína.
Uma heroína que havia deixado Esther morrer, que havia visto Ricardo morrer para protegê-la. Que havia matado um adolescente de uma forma horrível.
Todos sabiam sobre Tiago e, embora ninguém tocasse no nome dele, parecia que ele estava por tudo.
— Você está bem? — rebateu Graziela, a observando atenciosamente como se para garantir que Nadine fosse sincera.
Nadine abriu um sorriso pequeno.
— Acreditaria se eu dissesse que sim? — disse com sinceridade.
Estava retomando as rédeas da própria vida, se esforçando para seguir em frente. A sensação era boa, embora o sentimento morno e sufocante do luto continuasse ali, bem no fundo do peito. Nadine só havia se acostumado a ele.
— Você parece bem — comentou Graziela, sorrindo também. — Eu não me estressei muito com as fotos. Não estava nem na cidade e, se as pessoas quisessem comentar sobre como somos gostosas juntas, eu não ligo. Minha esposa não gostou muito, mas ela supera.
As duas gargalharam, era bom saber que as fotos não foram um grande caso para ela.
— Voltou a morar em Curitiba? — perguntou Nadine.
Pouco depois do término das duas, Graziela havia se mudado para Guaratuba. Sempre havia sido o sonho dela morar no litoral, e Nadine odiava o litoral. Abria algumas exceções para as viagens românticas das duas, já que as cidades litorâneas ficavam a uma ou duas horas de Curitiba, então era fácil chegar.
— Minha mãe meio que precisa de mim, então, sim, estou morando aqui agora — confirmou ela, e Nadine ficou estranhamente empolgada com o fato. — Deveríamos marcar algo, levar as meninas para passear.
— Eu adoraria. Minha vida social depende da Helô ultimamente — admitiu. Só agora ela e Murilo estavam desenvolvendo coragem para sair sem a bebê, e ainda assim Nadine decidiu trazê-la para a formatura, mesmo podendo deixá-la com Malu.
Achou que a bebê a protegeria das perguntas invasivas e conversas inconvenientes, as pessoas se empolgavam com Heloísa e se esqueciam de dizer sinto muito, coitadinha.
— Você me surpreendeu — confessou Graziela, encarando-a com um sorrisinho pensativo, uma expressão impressionada.
— Por causa da bebê? Foi surpresa pra mim também. — Nadine riu.
— Não por causa disso. — Graziela riu também e revirou os olhos. — Eu não sei, eu costumava pensar muito na nossa última discussão. Fiquei com medo de você ter levado a sério demais o que eu disse.
Nadine levantou uma sobrancelha.
— Quando você me chamou de egoísta, viciada em trabalho e incapaz de pensar em qualquer coisa que não fosse minhas metas profissionais?
— Eu disse rancorosa também? — Foi a vez de Graziela levantar as sobrancelhas, rindo. — Eu era muito nova e estava magoada, Nadine. Achei que você era o amor da minha vida.
Nadine desviou um pouco o olhar, pega despreparada por aquilo. Sentia-se estranhamente melancólica, e percebeu que entendia Graziela completamente. Foram quatro anos intensos de relacionamento, por isso o término foi tão doloroso e ruim.
— Também achei isso.
Graziela sorriu, mas os olhos estavam distantes, também um pouco melancólicos, como se as duas compartilhassem o mesmo sentimento.
— Bom, vou retificar e dizer que nada do que eu falei era verdade. Você sempre foi a pessoa mais atenciosa e sensível que já conheci, era por isso que me enlouquecia quando se recusava a falar de casamento e filhos — Graziela justificou com um riso anasalado. — Espero que minhas palavras não tenham pesado demais.
A preocupação dela era genuína, Nadine percebeu. Apreciou aquilo, e podia até admitir que as palavras dela assombraram e ecoaram por muito tempo em sua mente, mas não sentiu necessidade. Aquela voz já era bem pequena.
Murilo provara que essa vozinha irritante estava errada. Heloísa provara que nada do que Nadine pensava era verdade.
— Não foi só culpa sua, acho que eu tinha algum trabalho interno para fazer também — disse, e as duas trocaram olhares de quem se entendia mutuamente. Era tão bom conversar com ela de novo. Revisitar o relacionamento antigo com mais maturidade e encerrar aquilo sem mágoa.
Uma voz no microfone anunciou a valsa dos formandos com os pais. Graziela se levantou, provavelmente porque precisava fotografar aquilo.
— Preciso ir. Promete atender o celular? — perguntou ela. Nadine assentiu com a cabeça. Graziela estreitou os olhos de maneira desconfiada. — Se você não atender, eu encho sua caixa de e-mail com spam. Sei o quanto você odeia isso.
Nadine gargalhou e concordou novamente. Graziela deve ter ficado satisfeita com a ameaça, porque saiu e a deixou sozinha no banheiro. Nadine ficou ali por mais alguns segundos, depois se levantou também.
Estava exausta e era bom pensar que, além de uma casa, tinha uma família para a qual voltar também.
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